Vitória (2025) é um longa-metragem baseado em fatos reais que conta a história de uma senhora indignada com os crimes testemunhados da janela de sua casa. Revoltada com a negligência policial, compra uma câmera caseira para gravar o que acontece do outro lado da janela e provar suas denúncias para a polícia.
Ao sair da sessão de cinema, fiz algumas pesquisas para descobrir mais sobre a vida dessa mulher extraordinária chamada Joana da Paz. O filme deixa grande curiosidade sobre o caso real, mas principalmente sobre a história de Dona Nina, ou Vitória, ou Joana da Paz. E assim compreendi que o objetivo principal do filme foi alcançado: apresentar o grande feito de alguém que vivia no anonimato, mas que gostaria de ter tido o reconhecimento popular.
Grande parte da curiosidade sobre a personagem, sobre como foram os anos de vida subsequentes dela, se deve ao carisma e à atuação sempre primorosa de Fernanda Montenegro, que sempre tem o poder de sensibilizar com tremenda facilidade, ainda mais interpretando uma personagem como Dona Nina. Sua solidão e sua luta desarmam o coração acostumado com a sensação blasé da vida cotidiana. É impossível ver essa personagem tão frágil, mas tão corajosa e bondosa, e não sentir essa vontade de querer oferecer-lhe algo melhor do que aquela vida, de querer segurar sua mão e dizer que sua existência é importante.
Alguns personagens fictícios, como Suelen (Jeniffer Dias), Bibiana (Linn da Quebrada) e Marcinho (Thawan Lucas) são acrescentados para aprofundar a dramaticidade, simpatizar mais com Dona Nina pela forma como ela convive com seu entorno e não vê-la apenas como uma senhora solitária. E que grande atuação a do jovem ator Thawan Lucas. Com isso, o filme deixa claro que o problema de Dona Nina não se trata de algo classista, mas sim do crime. Além disso, o filme faz discursos através desses personagens, e parte interessante desse filme é entender como todos à volta são impactados por essa violência. Dona Nina quer se ver livre da violência, não das pessoas.
A fotografia do filme busca ser mais realista, na verdade, tem a intenção de retratar uma realidade, e por isso é mais crua. A iluminação e o enquadramento seguem o estado de espírito da personagem, mas também trazem as sensações que o filme busca passar para o público. Às vezes, é uma fotografia claustrofóbica, com um quadro mais fechado, mais preenchido em torno do assunto, recorrendo a um zoom, que também traz angústia e urgência. A montagem parece sempre tensa; suas poucas cenas sem movimento são, mesmo assim, sobre uma sensação de agitação silenciosa, tentando reproduzir uma realidade que vai se impor, que virá. Não há calma. Sabemos que, por mais cabeça-dura que Dona Nina possa ser, a realidade, a violência, irá se impor contra ela.
A arte soma na construção de seus personagens. A falta de maquiagem na personagem principal é um acerto na sua representação, mostrando novamente uma imagem crua e expondo a fragilidade dessa senhora, que surpreende a todos com sua força de vontade. Os objetos, principalmente as xícaras, contam a história dessa personagem, isso se vê pela forma como estão dispostos e como participam do roteiro. Ao discutir o filme, fui apresentada por Matheus, meu namorado, a uma percepção interessante sobre a cena da xícara enquanto uma metáfora para o que ocorria em tela e para o que acontece na realidade: a xícara representa uma realidade que essa personagem tenta remendar, mas ela vaza de suas mãos, ela até pode querer fazer diferente, mas é maior que ela, não vai se resolver apenas com o seu sacrifício. De fato, talvez a arte esteja falando ainda mais narrativamente ali nas cenas da xícara do que na ambientação, no figurino e na maquiagem.
Com relação aos outros personagens, a arte faz o seu trabalho. A ambientação é muito bem feita, mostrando uma Copacabana bem segregada, claustrofóbica, com ruas estreitas e muita movimentação, como é na realidade. Naquele lugar, circula uma grande diversidade de pessoas, porém algumas são invisíveis, limitadas aos “seus espaços”, onde o único local de convivência de todas essas diferenças é a praia.
O som traz a urgência do perigo. Dentro do quarto de Nina, ouvimos os tiros, também ouvimos gritos, as discussões. É certo que, daquela distância, talvez não se escutasse tudo que o filme mostra; as gravações originais não chegam a ser tão boas, são limitadas pela tecnologia da época. Mas essa escolha, além de nos colocar no lugar de Vitória, também traz a sensação de que isso precisa ser resolvido o quanto antes. O som sai de fora para dentro de maneira violenta. Afinal, há uma boa pessoa, uma senhora, sofrendo com a violência que invade sua casa.
A direção se sai bem, mas falha por ser muito técnica, parece focada demais ou apenas na atuação de Fernanda Montenegro. Decisões mais ousadas, como movimentos de câmera criativos, um toque de humor mais refinado (já que o filme investe nesse gênero também), ou uma abordagem mais irreverente à violência, poderiam tornar o filme mais criativo e interessante. Embora tecnicamente competente, a direção não aparece, limitando-se a uma condução funcional das cenas. Se a intenção era ser discreta para dar espaço à personagem, o objetivo foi alcançado, mesmo assim faz falta uma assinatura artística mais marcante para fechar o filme enquanto experiência cinematográfica.
Alguns aspectos do roteiro são questionáveis ou poderiam ser mais explorados. A violência, embora sempre mencionada, parece distante. Talvez pelo conhecimento prévio da história real, ou talvez por essa violência ser sempre uma ameaça, mas nunca uma presença, sabemos que a força do protagonismo nunca deixaria a violência se manifestar contra Dona Nina. O filme poderia ter usado mais criatividade para intensificar a sensação de perigo, que só se materializa de fato nas cenas finais. Na vida real, os conflitos eram mais diretos, o que poderia ter sido usado para equilibrar o protagonismo e aumentar a tensão de maneira mais inteligente. No entanto, quando a violência finalmente se manifesta, na sequência da Kombi, ela surge de uma forma que prejudica a narrativa, enfraquecendo a tensão e os antagonistas ao tentar trazer um alívio cômico.
Além disso, o roteiro foca tanto em Dona Nina que negligencia personagens importantes. O personagem do repórter Fábio Gusmão, interpretado por Alan Rocha, é subaproveitado e pouquíssimo presente; assim como os bandidos filmados, deixando o discurso centrado apenas em um lado. Marcinho tenta equilibrar isso, mas ainda sob a perspectiva de Dona Nina. A falta de desenvolvimento da investigação ou até de elementos fictícios que poderiam explorar a política local e o que acontece “do outro lado da janela” deixa a impressão de que o filme é raso.
O roteiro representa bem a história da pessoa, Joana da Paz, e a apresenta para um grande público que agora está de fato interessado em sua história e na sua importância enquanto cidadã. Ou seja, essa história, esse filme, atinge o tão querido reconhecimento que Dona Nina gostaria de ter recebido em vida.
O filme se encerra com uma sensação de que foi uma boa experiência. É um filme legal, mas falta algo mais: faltou um pouco mais de ousadia, um pouco mais de profundidade.
Indico o podcast do Globo, que está disponível no YouTube: Os bastidores da história de D. Vitória, a idosa que filmou o tráfico em Copacabana | AO PONTO.