Crítica escrita por Thales Huebra.

Sinopse: No início da década de 1970, o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. No Rio de Janeiro, a família Paiva – Rubens, Eunice e seus cinco filhos – vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece.

Em Ainda Estou Aqui (2024), Walter Salles constrói um retrato sutil, mas devastador, dos efeitos da ditadura militar brasileira sobre uma família dilacerada pela violência do regime. A narrativa segue Eunice Paiva, interpretada de forma solene e magistral por Fernanda Torres, que entrega uma das atuações mais profundas do cinema nacional contemporâneo. A fotografia, claramente influenciada pelo pintor dinamarquês Vilhelm Hammershøi, confere ao filme uma atmosfera de isolamento e silêncio angustiante, onde a presença e a ausência se entrelaçam.

A obra aborda o desaparecimento do deputado Rubens Paiva em 1971, sequestrado e morto pelo exército brasileiro, e o impacto dessa perda abrupta na vida de sua esposa e filhos. Através de um roteiro sensível, vemos Eunice ser forçada a se reinventar, assumindo sozinha a responsabilidade por cinco filhos em um país que, sob a opressão do regime militar,  ferecia apenas medo e silêncio como resposta à tragédia. A narrativa não recorre ao sentimentalismo; ao contrário, sua força está nos detalhes silenciosos – o olhar vazio de Eunice, o tom sombrio das cenas, e o eco doloroso da ausência de Rubens na casa e nos momentos de intimidade familiar

A fotografia traz constantemente um jogo de luz e sombra e um enquadramento que remete a Hammershøi, e essa escolha artística é fundamental para a construção da atmosfera, oferecendo a cada cena a sensação de uma casa assombrada pela memória e pela perda. Como as pinturas de Hammershøi, a composição de cada quadro enfatiza o vazio e o peso do passado. Os espaços que Eunice e seus filhos habitam tornam-se personagens em si mesmos, refletindo o desespero, a espera e a saudade, compondo um ambiente que traduz as emoções dos personagens de maneira visual e poderosa.

O filme alterna entre os momentos presentes e as lembranças, pontuando com flashes da convivência familiar com Rubens antes do golpe militar. Essa alternância intensifica o contraste entre o passado e o presente e o impacto da transformação de Eunice, que, já idosa, é vencida pelo Alzheimer. Esse destino trágico representa, simbolicamente, o apagamento forçado da memória, uma analogia ao esquecimento que o próprio país impôs à violência do regime.

Ainda Estou Aqui é uma obra notável sobre o silêncio imposto e a resiliência que emerge dessa dor silenciosa. A interpretação de Fernanda é essencial para o êxito do filme, pois ela traduz com exatidão o desespero e a luta interna de Eunice. É um filme que, embora retrate a dor pessoal de uma família, ecoa o trauma de uma nação. Ainda Estou Aqui é um tributo à memória daqueles que foram silenciados e uma lembrança àqueles que ainda resistem ao esquecimento imposto.

Spoiler: Sem falar uma única palavra sequer, Fernanda Montenegro entrega uma das cenas mais lindas do cinema, quando reage (ao ponto de sua pupila dilatar) quando escuta, pela TV, o nome de Rubens Paiva citado como símbolo da resistência à ditadura militar no Brasil .

De fato, um filme e uma atuação dignos de estatueta.

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