Sinopse: No início da década de 1970, o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. No Rio de Janeiro, a família Paiva – Rubens, Eunice e seus cinco filhos – vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece.

Ainda Estou Aqui (2024) conta a história de Eunice Paiva, advogada que se tornou um dos símbolos da busca pela verdade sobre os mortos e/ou desaparecidos que foram vítimas da perseguição política durante a Ditadura Militar. Também esposa do ex-deputado Rubens Paiva, que foi sequestrado por agentes da ditadura militar brasileira, Eunice convive com repressão e precisa seguir em frente, na busca pela verdade, proteger e cuidar dos cinco filhos, após o inesperado desaparecimento de seu marido. O longa-metragem é dirigido por Walter Salles, o mesmo diretor de Central do Brasil (1998), e este é um ponto importante para a minha experiência enquanto espectadora, carregada de uma forte memória afetiva por esse filme. Não consegui deixar de fazer paralelos com relação à beleza singela que esses filmes têm em comum. Parecendo até a mesma fórmula de Central do Brasil, em Ainda Estou Aqui, a memória afetiva é o que lhe dá razão de existir com tamanha ternura, advinda da habilidade do diretor e da fortíssima atuação de Fernanda Torres. Há, é claro, o contexto histórico, a violência, porém é a afetividade que dá ao longa todas as nuances que o tornam tão tocante de maneira singular. Também está na tela a delicadeza e o carinho de seu diretor com a sua própria memória. Toda a obra demonstra um profundo respeito por essa família, pelas dores dessas pessoas e das que se sentem representadas por ela.

Para mim, a crítica não se faz escrevendo um texto em terceira pessoa. A voz nunca é de uma terceira pessoa; não existe um demiurgo, um ser etéreo capaz de captar a arte por completo. E assim também é o cinema: não existe uma equipe de demiurgos. Toda obra audiovisual discursa por meio de sons e imagens, sem que necessariamente um personagem diga algo. As cenas na casa, as cenas iniciais, mostram um cenário pelos olhos de quem já esteve ali. Walter Salles, em algumas entrevistas, diz que frequentou a casa, que conheceu seus personagens. Não à toa, o filme chega a parecer um documentário do cinema direto/verdade.

Durante todo o filme, o espectador pode ter a sensação de que está diante de imagens de arquivo ou de um documentário. A melhor maneira de exemplificar isso é por meio do cenário, que, por si só, conta quem são os personagens. As cenas externas são impressionantes: as ruas com carros de época, a casa cheia de objetos que mostram uma família que não era militante, nem engajada, mas tinha uma forte conexão com as artes e a música, buscava pensar e se expressar onde era seguro.

Existe uma ética por trás da imagem, seja na ficção, e principalmente no documentário. O diretor tem a virtude de conseguir transmitir, de maneira primorosa, algo que também está em sua memória pessoal, atrelada a um momento histórico muito forte, sem deixar de produzir discurso e, habilmente, mostrar que está ciente de seu discurso. 

Algumas pessoas têm criticado o fato de que esse filme conta a história de uma família branca e burguesa, e, por isso, consegue essa projeção. Claramente, o filme não tem intenção alguma de ser mais do que é: um filme sobre uma família burguesa que sofreu com a repressão na ditadura militar brasileira. E, em relação à projeção, essa é uma questão socioeconômica muito mais ampla sobre a desigualdade no fazer audiovisual dentro do Brasil. Assim como os atores e o diretor demonstram essa consciência em suas entrevistas, nenhum desses fatores diminui o filme ou faz dele um filme que só alcançou tamanha notoriedade por ser realizado por alguém que possui capital econômico e influência mais do que necessária para produzir um filme. Ele não pretende ser mais do que é, e é forte o suficiente sozinho. Nenhum filme, nunca, vai dar conta de representar perfeitamente e/ou reproduzir a realidade, e cabe a nós, pessoas políticas e atuantes no audiovisual brasileiro, termos a consciência de que é preciso mudar essa realidade de que apenas quem tem capital consegue chegar ao meio internacional.

De maneira mais técnica, o filme conta com habilidosos enquadramentos e dos sutis movimentos de câmera, mas é a atuação de Fernanda Torres que preenche a tela, não sendo apenas uma questão de talento da atriz, mas sim o que pede a personagem. Fernanda Torres é certamente uma atriz espetacular, mas o seu estudo sobre a personagem nos entrega a inteligência de sua interpretação, pois é nítido que, tanto da parte do diretor quanto da parte da atriz, Eunice precisa saber prender seus sentimentos e expressá-los com dificuldade. O que leva o espectador a entender toda a censura e repressão que ela está sentindo; faz com que a proteção de sua família seja algo urgente!

Selton Mello torna seu personagem carismático. Rubens Paiva é o bom pai de família que toda criança gostaria de ter e o homem que toda esposa iria amar. Neste filme, vê-se a perfeita e tradicional família brasileira sofrendo com aquilo que hoje é considerada uma época nostálgica para aqueles que dizem defender a “tradicional família brasileira”. O fator mágico do cinema, que sempre aparece nos mais diversos estudos artísticos, é a sua grande capacidade de trazer alteridade e também sensibilizar seu espectador. Esse filme tem o potencial de sensibilizar pessoas que consideram que um dia a ditadura foi “uma boa época”. Este, sim, pode ser um legado maior que o Oscar. Com uma grande distribuição internacional, presente em todos os principais festivais internacionais, conquistando premiações e notoriedade, Ainda Estou Aqui irá representar o Brasil no Oscar e tem uma grande possibilidade de ser selecionado para concorrer em algumas categorias. Seria incrível ver Fernanda Torres ganhando o Oscar, que sua mãe não chegou a trazer para o Brasil. Mas seria realmente perfeito se este filme, ao alcançar seu potencial poético, tocasse a quem mais precisa entender que defender sequestro, tortura e assassinato nunca deveria voltar a ser pauta política.

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