Crítica escrita por Gabriel Cine para a cobertura do 26º Festival do Rio.
Sinopse: Líbano, 1949. O país enfrenta uma guerra iminente. Dois irmãos católicos, Emilie e Emir, embarcam em uma viagem rumo ao Brasil em busca de dias melhores. Durante a jornada, Emilie se apaixona por um comerciante muçulmano, Omar. Emir sofre de um ciúme incontrolável e usará suas diferenças religiosas para separá-los.
Em Retratos de Um Certo Oriente (2024), dirigido por Marcelo Gomes, presenciamos uma ode à fotografia como método de recordação e linguagem artística, envolta em uma perspectiva sociopolítica que aprofunda temáticas sensíveis sobre diferenças culturais. O longa conta a história de dois irmãos libaneses, Emir e Emilie, que se veem diante de uma iminente guerra no Líbano e decidem partir para o Brasil, em busca de refúgio e uma nova vida.
Emir, o irmão mais velho, já perdeu as esperanças no país. Embora seja católico, assim como sua irmã, demonstra ao longo do filme uma apatia crescente, contrastando com Emilie, que mantém um forte apego às suas raízes e questiona a viagem. Desde o início, essa disparidade de opiniões sugere que os personagens possuem visões de mundo diferentes, apesar da proximidade familiar. O conflito se intensifica com a chegada de Omar, um comerciante muçulmano por quem Emilie se apaixona perdidamente, o que desperta em Emir um ciúme corrosivo e preconceituoso, alimentado pelas diferenças culturais entre ele e Omar.
Além do trio principal, o filme adota uma linguagem quase documental ao retratar outros refugiados do Oriente, explorando suas vivências e experiências diversas. Esse olhar plural reforça o “Certo Oriente” do título, destacando os protagonistas como sobreviventes em busca de um novo lar, mas ainda presos às suas origens.
Baseado no livro Relato de Um Certo Oriente, de Milton Hatoum, a obra literária era considerada inadaptável pelo próprio autor. No entanto, Marcelo Gomes viu na complexidade da história o desafio perfeito para uma adaptação cinematográfica. Uma das principais dificuldades está na amplitude dos temas abordados: o contexto político-cultural, o conflito religioso e moral entre Emir e Omar, a travessia geográfica dos protagonistas e a criação de memórias por meio dos registros fotográficos. No material original, essas questões permeiam toda a narrativa, e a adaptação cinematográfica precisou condensar essa pluralidade temática em pouco mais de uma hora.
No livro, Emilie escreve sobre suas experiências durante a viagem, narrando seus conflitos com o irmão e o desenvolvimento da paixão por Omar. No filme, Gomes escolhe transmitir a construção dessas memórias por meio da fotografia, que permeia a história de maneira quase invisível, mas crucial. A fotografia não é apenas uma ferramenta narrativa, mas se torna parte da própria estética do filme, que é rodado em preto e branco, no formato 4:3, emulando a estética das fotografias da década de 1940. Com poucos movimentos de câmera e uma estabilização constante, temos a sensação de observar fotografias em movimento.
A direção de arte é meticulosa na construção de cenários que refletem o estado mental dos personagens, colaborando com a fotografia para criar imagens que são, ao mesmo tempo, belíssimas e cheias de significado. Essa abordagem estética, que dá centralidade ao olhar da câmera, lembra o filme Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, pela maneira como a escolha visual está profundamente interligada com a narrativa.
O desenrolar do conflito entre os personagens gera intrigas que prendem a atenção. A montagem mantém essa tensão constante, conduzindo o espectador a querer saber o que acontecerá a seguir. A curta duração do filme sugere que cada cena foi cuidadosamente escolhida para estar ali, tornando cada frame significativo. O longa explora três cenários principais: o Líbano, a Amazônia e Manaus, cada um representando uma fase distinta da jornada dos personagens. Emilie, Omar e Emir são personalidades complexas, cujas diferenças culturais ora os aproximam, ora os afastam. Marcelo Gomes captura cada uma dessas etapas de maneira singular. No Oriente, a vastidão da paisagem e a opressão iminente são transmitidas por meio de enquadramentos amplos e uma atmosfera sufocante. Na Amazônia, o uso exuberante de grandes angulares transmite a ideia do Brasil como uma terra de possibilidades, especialmente em seu contato com as religiões indígenas, que evocam espiritualidade e ancestralidade. Por fim, em Manaus, a câmera registra a região urbana com uma delicadeza que reflete a sensação de pertencimento que os personagens buscam, embora seus conflitos internos continuem.
O ritmo contemplativo do filme permite uma apreciação cuidadosa das imagens e das interações entre os personagens, fortalecendo cada ação. Quando os créditos finais sobem, há uma sensação de completude — uma jornada íntima e particular que é agora imortalizada pelos registros fotográficos. Retratos de Um Certo Oriente é uma obra tocante sobre a perpetuação de momentos por meio da fotografia, ao mesmo tempo em que reflete sobre o que motivou esses registros e o que era sentido por aqueles que foram capturados pela lente.