Crítica escrita por Victor de Almeida para a cobertura do 26º Festival do Rio.

Sinopse: México, hoje. Superqualificada e desvalorizada, a advogada Rita trabalha em uma empresa que prefere encobrir crimes a servir à justiça. Um dia, ela recebe uma proposta inesperada para ajudar um chefe de cartel a se aposentar e desaparecer. Há anos ele planeja se transformar na mulher que sempre sonhou ser.

Caro leitor, essa crítica tem spoilers. Muitos spoilers!

FILME DO ANO

Caro leitor, peço sua permissão para fazer um exercício de futurologia. É irresistível pensar que em 5 meses, lá pelos idos de março de 2025, quando a temporada de premiações terminar, as mesas de bar em Botafogo estarão apinhadas de jovens cinéfilos defendendo com unhas, dentes e ecobags seus filmes favoritos do ano. E eu ouso afirmar que pelo menos duas obras estarão nessa acirrada “disputa”: A Substância (2024), de Coralie Fargeat, e Emilia Pérez (2024), de Jacques Audiard.

Confesso que esse texto é completamente dedicado ao segundo, mas, com respeito e cuidado, tomo emprestado a obra de Fargeat por motivos comparativos. E por que inicio meu texto pareando filmes tão idiossincráticos? Por que há neles características estéticas e discursivas que entram em ressonância. Ambos apostam em uma hiper estilização da imagem e do desenho de som, além de tematizarem a transformação do corpo feminino, cada qual sob seu próprio prisma e motivação. Há algo de zeitgeist, ou o espírito de nosso tempo, nesses filmes. Sei que o termo é exaustivamente repetido, mas creio que seja pertinente ao realizar que o debate público acerca das questões de gênero, ao mesmo tempo que inflamado e carregado de preconceito, também se torna mais refinado e vertical.

O filme do ano, portanto, não é o melhor filme do ano. Ou pelo menos, não necessariamente; até porque esse é um título efêmero. O filme do ano é aquele que indiscutivelmente carrega a luta de nosso tempo, e que em qualquer outro período da história do Cinema estaria deslocado e não encontraria par. Mas esse, felizmente, não é o caso.

O ano de Emilia Pérez e A Substância chegou.

 ÉTICA, NÃO MORAL

Os primeiros minutos desse longa, caro leitor, são uma loucura! Uma ótima loucura! Eu fui beneficiado pela delícia de não estar posicionado pelo material de propaganda do filme e, portanto, não saber absolutamente nada sobre a narrativa e sobre as escolhas estéticas feitas. Que sorte! Afinal, ser arrebatado por um musical de alma mexicana e dirigido por um francês não acontece todos os dias.

Rita é uma talentosa advogada que se sente subestimada pelo escritório de advocacia onde trabalha. Na primeira cena, acompanhamos sua angústia por ter de construir a defesa de um homem acusado de assassinar sua mulher, sem acreditar na inocência de seu cliente. Essa é a primeira questão ética levantada pela obra, mas voltaremos a ela em breve. Poucos minutos após a vitória no tribunal, Rita é levada ao encontro de um violento e famoso chefe de cartel mexicano, Manitas. Ele pergunta se ela aceita trabalhar para ele, sem mesmo saber o que terá de realizar. Sentindo-se menosprezada por seu empregador atual, ela aceita. Segunda questão ética levantada pelo filme. O desejo de Manitas revelado, para a surpresa de Rita e de boa parte da plateia que assistia o filme comigo, é tornar-se uma mulher – Emilia Pérez – e deixar seus dias de mafioso para trás. Para tanto, Rita deve ajudar Manitas a encontrar um grande cirurgião disposto ao feito, e dizer à esposa e filhos de seu contratante que ele foi morto por inimigos.

Por seus primeiros 30 minutos, esse filme já angariará para sim bastante crítica negativa. O que dizer, então, de sua conclusão? Mas por enquanto me atenho a coragem até aqui demonstrada. Percebam que os dilemas aqui são éticos – de alma especulativa e individual.  Rita e Manitas, principalmente, questionam aquilo que se espera de suas formas de vida. Não há espaço para a moral e sua métrica externa e generalista. O roteiro do diretor Jacques Audiard, e também de Thomas Bidegain e Nicolas Livecchi, é preciso ao propor perguntas que só podem ser respondidas de dentro para fora, de maneira imanente e não transcendente.

Minha dica, amigo leitor, é que guardemos momentaneamente nossos julgamentos – não vivemos aquelas vidas, naqueles corpos. Rita é menos virtuosa por aceitar a proposta de um mafioso? Mesmo nos tendo sido apresentado que antes trabalhava na defesa de feminicidas? Manitas é condenável? Absolutamente. Mas pode ele, a partir de um novo corpo e uma nova identidade, encontrar a redenção que o filme propõe? Não creio que sejam perguntas fáceis de serem respondidas. Mas também desconfio que não seja esse nosso trabalho.

QUATRO MULHERES NO TOPO

Cannes inovou em 2024 e premiou pelo trabalho de melhor atriz do ano as quatro grandes protagonistas do filme. O trabalho de Zoe Saldana é provavelmente o melhor de sua carreira. Sua missão é difícil, pois carrega durante a trama o ponto de vista do espectador frente às reviravoltas do roteiro. Selena Gomez já havia se mostrado competente em outros trabalhos, mas aqui encontra uma maturidade assombrosa. Ela faz o papel de “viúva” de Manitas, e precisa lidar com a presença desconfortável de Emilia em sua vida – talvez sejam da dupla as cenas mais memoráveis do filme. Adriana Paz tem o tempo de tela mais modesto, mas é importantíssima na trama ao assegurar uma faceta de Emilia sensível e apaixonada, raramente trabalhada na obra. Mas é preciso dar às estrelas a quem de fato lhes pertencem – Karla Sofía Gascón é uma força da natureza. A atriz espanhola, que anunciou em 2018 ser trans, faz aqui um trabalho primoroso e que certamente será definidor em sua carreira; a violência de Manitas e o mistério que envolve Emilia são lindamente interpretados. A cena em que Emilia descobre que Jessi – personagem de Selena Gomez – traía Manitas, é de um apuro técnico e domínio de intenções espetacular.

APOTEOSE

O fim é apoteótico. Talvez simplista demais para a complexidade levantada antes; mas ainda melodramático e apoiado nas raízes que escolheu seguir. A sugestão de uma Emilia Pérez santificada me parece mais provocadora do que diegética. Me parece mais como um sorriso de Audiard à tela, ao antecipar as críticas que sabe que receberá de uma audiência mais conservadora. Mas convenhamos, ele não está nem aí para isso!

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