Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do 26º Festival do Rio.
Sinopse: México, hoje. Superqualificada e desvalorizada, a advogada Rita trabalha em uma empresa que prefere encobrir crimes a servir à justiça. Um dia, ela recebe uma proposta inesperada para ajudar um chefe de cartel a se aposentar e desaparecer.
Há um plano fundamental em Emilia Pérez (2024) que é tão breve que pode passar desapercebido. Na abertura do filme, antes de qualquer personagem aparecer, enquanto o filme nos envolve em uma trilha musical de um coro distorcido eletronicamente, aparece um grupo de mariachis, iluminados por pisca-piscas, em um cenário completamente vazio e escuro. As luzes dos pisca-piscas tornam-se as luzes da Cidade do México à noite, e a introdução do filme é feita. Somos entregues, pela presença dos mariachis, à narrativa a seguir, e isso é muito relevante se considerarmos o que eles simbolizam para a cultura mexicana. Pois bem, os mariachis, dentre vários estilos musicais, cantam corridos, um gênero narrativo tradicional mexicano que narra histórias, geralmente, com um protagonista que realiza grandes façanhas — lembra da abertura de Rango (2011)? Mais especificamente, durante os anos 80 e 90, o subgênero musical narcocorridos ganhou popularidade por contarem histórias de traficantes e chefes de cartéis — à título de comparação, abro espaço para lembrar do tema musical de Chumbo Quente (1977), que continua sendo usada até hoje como símbolo do combate ao tráfico e da violência policial. Por isso, Emilia Pérez, uma aventura explosiva, cheia de episódios absurdos, e comovente, devido às suas protagonistas carismáticas, sobre mulheres envolvidas com o cartel, não poderia ter sido mais bem apresentada.
O filme, dirigido por Jacques Audiard, na verdade, não é só sobre tráfico e cartel, mas faz comentários amplos sobre problemas conhecidos da sociedade, como corrupção, impunidade, desaparecimento de indivíduos, e mais. Para dar conta de tamanho panorama, entram as várias cenas musicais, com letras bastante diretas quanto aos temas que trata e com coreografias e cenografias bastante elaboradas — até me fez lembrar Quarta-Feira (2023), média-metragem musical brasileiro sobre uma ação policial em uma favela do Rio de Janeiro. Porém, uma ou outra cena musical fica um pouco deslocada da narrativa principal, mesmo que funcione bem, isoladamente, pela rica composição musical e inventividade estilística. O principal exemplo disso é quando Rita viaja até uma clínica luxuosa de cirurgia estética em Bangkok, e ali ocorre um número musical opulente, com vários figurantes enfaixados e em macas. Apesar de ser um momento divertido, o comentário sobre a cultura da cirurgia estética fica um pouco supérfluo, pois serve apenas como contraponto, um ponto de tangência, aliás, a um elemento da narrativa principal. Ainda assim, essas cenas empolgam e impressionam, seja pela quantidade de figurantes fazendo complexas coreografias, seja pelas luzes teatrais que tornam todas as cenas um espetáculo — ademais das músicas marcantes, cantadas com empenho por Zoë Saldaña, Selena Gomez e Karla Sofía Gascón. Não à toa, as atrizes dividiram o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes 2024, e ressalto: a versatilidade de Zoë Saldaña que, ainda que não tenha uma voz musical potente, destaca-se pela entrega entusiasmada a cada palavra; a intensidade de voz de Karla Sofía Gascón, que proporciona um dos momentos mais emocionantes do filme mesmo quando canta melodias suaves; e a atuação de Selena Gomez, que interpreta muito bem esse tipo de personagem, daquelas que dá gosto de sentir raiva. Por sinal, senti que podiam ter aproveitado a atriz um pouco melhor, ela não é protagonista, mas é Selena Gomez! É certo que sua sequência musical é muito boa, mas, para mim, merecia um pouquinho mais.
É realmente difícil escrever uma crítica sem spoilers para este filme, que anseia por debates, dos mais espinhosos até. Porém, minha experiência ao assistir o filme na noite de abertura do 26º Festival do Rio foi arrebatadora por saber pouquíssimo sobre a trama, de modo que, logo nos primeiros vinte minutos, eu já estava pasmo com o caminho que o filme estava tomando. Portanto, recomendo a leitura da crítica com spoilers de Victor de Almeida após assistir ao filme e indico, àqueles que ainda não assistiram, que tenham em mente que esta história é um narcocorrido de primeira: uma aventura de grandes façanhas, para bem e para mal, com reviravoltas de cair o queixo e dilemas complexos, divertidos e estimulantes, mas difíceis, e com aquele toque de melodrama tão essencial para uma autêntica experiência mexicana. Por aqui, dias após a sessão, sigo pensando na saga de Emilia Pérez e ouvindo as músicas do filme no Spotify — uma e outra vez!