Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do 26º Festival do Rio.
Sinopse: Ingrid e Martha eram muito amigas na juventude, quando trabalharam juntas na mesma revista. Depois disso, Ingrid se tornou escritora de autoficção, Martha virou correspondente de guerra e as duas foram separadas pelas circunstâncias da vida. Após anos sem contato, elas se reencontram numa situação extrema, mas estranhamente doce.
A eutanásia é um assunto seríssimo, que não pode ser meramente reduzido a uma questão de liberdade individual. Seja pelo viés social, filosófico ou religioso, o ato de tirar a própria vida traz implicações graves e, independente do viés, afeta profundamente a todos os entes queridos. Porém, tampouco é um problema que deve ser rejeitado, afinal de contas, enquanto seres humanos dotados de empatia, somos capazes de, ao ver uma pessoa passando por um enorme sofrimento — principalmente, mas não unicamente, físico — calçar seus sapatos e compreender tal decisão. Aliás, por decisão não me refiro à opção por meios legais, já que no Brasil e nos Estados Unidos, onde o novo filme de Pedro Almodóvar, O Quarto Ao Lado (2024), se passa, a eutanásia é crime. Nesse contexto, o filme nos apresenta Martha, uma mulher, em estágio crítico de um câncer cervical, que decide comprar uma pílula de eutanásia na dark web e que gostaria de realizar o ato de tirar a própria vida perto de sua grande amiga, Ingrid, que se conhecem desde jovens, mas que estavam afastadas devido ao trabalho. De início, claro, Ingrid hesita, mas acaba concordando. Assim, as duas alugam uma casa chiquérrima por um mês, como se estivessem de férias. Elas passeiam por livrarias, assistem filmes de madrugada, mas o obscuro segredo da eutanásia paira sobre o ar e isso torna o simples ato de acordar angustiante, já que, a qualquer dia, Ingrid verá sua amiga morta.
Não é segredo para ninguém que Pedro Almodóvar tem uma assinatura plástica muito identificável. Seus filmes são, frequentemente, recheados de cores vibrantes que saltam aos olhos. Contudo, me parece curioso que os principais filmes que me veem à mente, ao pensar nisso, sejam os de início de carreira, que, no geral, representam uma fase cômica e irreverente do diretor, enquanto O Quarto Ao Lado é um filme mórbido e melancólico, mas que também faz uso dessas cores saturadas. Se Maus Hábitos (1983) e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) são gargalhadas, o novo filme de Almodóvar é o último e áspero suspiro de uma pessoa à beira da morte. Então como pode um filme como esse querer ser tão colorido? É perfeitamente possível interpretar esse realce nas cores como condizente ao estado de lucidez antes da eutanásia de Martha, que aproveita seus últimos instantes ao lado de sua grande amiga, em uma linda casa; apesar de todos os problemas do planeta, o mundo parece mais bonito, parece ter-se feito bonito para a partida dela. Não obstante, é possível que a razão dessa decisão estilística seja pictórica, para, neste caso, emular um artista, e seu estilo, que trabalhou, como ninguém, as cores vibrantes de maneira paradoxal: Edward Hopper. Há uma série de quadros do influentíssimo pintor americano que retratam pessoas olhando para uma paisagem agradável, recebendo a calorosa luz do sol, mas que podem ser vistas como imagens carregadas de tristeza, solidão e frieza. Elementos como feições inexpressivas e corpos rígidos causam essa impressão, e O Quarto ao Lado trabalha com isso de maneira similar. Há vários momentos em que Martha observa o horizonte através de uma janela, como quando observa a penumbra da paisagem urbana do alto de um prédio, e quando recebe a luz do sol, sentada em um sofá e rodeada por uma linda floresta. A questão é que sabemos que a situação pela qual ela está passando não é das mais felizes, e esse embate entre a trama e o estilo é riquíssimo por isso. Por vezes, até há um vidro entre a câmera e a personagem, o que torna sua imagem difusa, fantasmagórica, como se estivesse a um passo do fim. A meu ver, essa aplicação das cores fortes no contexto sombrio da eutanásia é um ponto magistral na estilística visual do diretor, a qual é costumeiramente lembrada por sua vivacidade.
Ainda assim, há a presença de traços familiares no cinema de Almodóvar, como o fascínio do diretor pela fofoca. Considerando que as duas amigas não se viam há décadas, era de se imaginar que parte dos assuntos sejam pessoas alheias, em especial a filha de Martha, Michelle, que não tem uma relação boa com a mãe devido à sua criação sem pai. Essa trama secundária é particularmente potente especialmente no final, quando, sem entrar em terreno de spoilers, a atriz que interpreta Michelle aparece pela primeira vez. Contudo, para além da fofoca, há toda uma gama de personagens secundários que formam um pequeno mosaico a fim de tratar de temas de sexo e guerra, assuntos que, segundo as opiniões em comuns dessas personalidades, regem o planeta. São eles: Damian, ambientalista e ex-amante compartilhado das protagonistas, interpretado por John Turturro; os carmelitas, voluntários espanhóis na Guerra do Iraque; e o pai de Michelle, que aparece em um flashback da época em que ele e Martha eram companheiros. Damian, na época em que namorou as protagonistas, era um rapaz cheio de energia, que acreditava que um dia sem sexo é um dia incompleto. Porém, à medida que em que foi envelhecendo, foi tornando-se cada vez mais militante da causa ambiental e, por isso, atualmente, mal tem relações sexuais — trocou o sexo pela guerra. Os carmelitas espanhóis, casal de homossexuais, dizem que veem tanto horror na guerra que o peso de se relacionar com outro homem é muito menor; e um colega de Martha diz que o sexo é necessário para persistir em um contexto apavorante como esse — fazem sexo para continuar na guerra. Já o pai de Michelle, ex-namorado de Martha, perde todo o viço após retornar da Guerra do Vietnã e abandona a companheira, não antes de engravidá-la e sumir do radar — o último sexo após a guerra. Essa última história, inclusive, têm um desfecho trágico, construído à imagem e semelhança do quadro Christina’s World, de Andrew Wyeth, mais um aceno de Almodóvar que revela sua admiração pelas artes plásticas, assim como na cena em que Martha vê o quadro People in the Sun, de Edward Hopper. Enfim, é importante notar que enquanto as personagens de Demi Moore e Tilda Swinton carregam a carga emotiva do filme, é por meio dos coadjuvantes que Almodóvar insere seus comentários políticos, sua visão de mundo. Por vezes, esse discurso é evidente até demais, e, ainda que, por tentar abarcar uma série de questões, alguns personagens interessantes não recebam maior atenção, como o personal trainer que, com poucos segundos de tela, tirou boas risadas da plateia, assim são as fofocas, não é mesmo? Nem sempre teremos o privilégio de recebê-las por completo.
Acrescento que toda a representação da doença de Martha é de uma confortante solenidade. Temia que o filme tivesse imagens gráficas dos sintomas, do sofrimento, e há casos em que é preciso ter, sem dúvidas, mas, como O Quarto ao Lado é sobre mais sobre o amor entre duas amigas, e, talvez mais importante ainda, sobre o amor de Martha consigo, admiro a decisão de suavizar as consequências físicas na personagem. Há, sim, evidências de seu cansaço físico ao caminhar ou ao realizar tarefas simples, como regar plantas, mas até parece que Ingrid é quem está sofrendo mais. Seu corpo exprime a dor de estar prestes a perder a amiga, como se ela fosse a escolhida para carregar esse fardo pela amiga, para deixar sua passagem mais tranquila. Enquanto jovem adulto próximo de uma pessoa delicada de saúde, não pude deixar de me identificar com os dilemas que as doenças trazem, com o esforço hercúleo de tentar amparar alguém com um sorriso no rosto, ainda que a vontade maior seja a de chorar. O Quarto ao Lado é delicadíssimo nesse sentido, as atrizes são espetaculares e o estilo visual do diretor, que já era consagrado, impressiona mais uma vez. Que excelente começo para o 26º Festival do Rio.