Crítica escrita por Victor de Almeida para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

O segundo dia da Mostra Foco Minas começa animado. Percebo que as torcidas de cada filme estão bem estabelecidas e fazem suas presenças serem sentidas – o que pessoalmente me encanta. Cada crédito em tela é acompanhado por gritos de apoio, o que torna a sala de cinema um pouco como um estádio de futebol – como se a grande tela fosse uma arena diferente, de onde só pudessem sair vencedores.

Lapso (2023) é um curta de 24 minutos dirigido e roteirizado por Caroline Cavalcanti. A narrativa acompanha o encontro de dois jovens negros e periféricos que, após a prática de atos de vandalismo, são obrigados a cumprir medidas socioeducativas na mesma biblioteca. Bel e Juliano compartilham suas vivências e constroem afeto um pelo outro.  É bonito e delicado o estabelecimento de uma relação entre dois jovens que ousam, como ato máximo de rebeldia em uma sociedade que os estigmatiza, a amarem-se rodeados por livros.

A personagem Bel – tal como a atriz que a interpreta, Beatriz Oliveira, a diretora Caroline Cavalcanti e parte da equipe do filme – é PCD auditiva. Apesar da questão não ser central na narrativa, o silêncio é trabalhado de maneira especialmente inteligente no filme, como um elo de conexão entre os protagonistas.

A fotografia compõe com eficiência a narrativa, esquadrinhando a cidade sob o ângulo do excluído. Pontuo especificamente uma cena em que Bel picha a vitrine de uma galeria, para depois acompanharmos as pessoas em seu interior – brancas e ricas – estupefatas. Como se em dois planos, o filme apresentasse a credencial de seu agenciamento político-estético.

O segundo curta dessa sequência é Altar (2023), dirigido e roteirizado por Carol Fonseca. É também o trabalho mais curto, de apenas 3 minutos, mas provavelmente a obra mais experimental e visualmente inventiva das duas séries. Em tela, três mulheres oram em memória de um ente querido que se foi. As imagens construídas por Carol Fonseca e seu diretor de fotografia, Pedro Milagres, constroem um lugar sagrado, onde a fé é presentificada através de sua dimensão estética. A escolha pelos planos detalhes de partes dos corpos dessas mulheres, de alguma maneira, fazem extrapolar a força da manifestação religiosa congregada.

O terceiro trabalho exibido é Água Rasa (2023) curta brilhantemente dirigido por Dani Drumond. Trata-se de uma docuficção que discorre sobre os efeitos da tragédia ambiental de Brumadinho sobre o Rio Paraopeba. As águas que antes representavam vida e prosperidade, agora são o símbolo de uma memória difícil. O grande momento do filme se dá enquanto seu protagonista navega e o rio confessa suas dores; dores reais, de pessoas que tiveram suas vidas devastadas. Ao terminar sua travessia, ele finca seu remo feito de bambu em terra firme, como se marcasse ali um recomeço. Talvez esse seja o grande acerto do filme, aprender como navegar na dor e não estancar diante dela.

Finalizando a sessão, o curta Noite Neon (2023) é também uma docuficção e dirigido por Pedro Estrada e Claryssa Almeida. O filme brinca com a ideia de uma realidade transformada em sonho. Duas histórias diferentes se entrecortam e tecem o que parece ser um delírio musical. Duas pessoas comuns, anônimas, que possuem em comum a paixão pela música. A direção de fotografia emoldura esses personagens como se fossem estrelas de um tempo suspenso, que de fato não existe, mas que o filme se esforça em dar forma. Há um mistério na condução da obra que lembra Twin Peaks (1990-91) de David Lynch.

Esse é um desfecho curioso para esse segundo dia de exibição de curtas. Apesar de estarem em uma mostra competitiva, os trabalhos são substancialmente diferentes e formam um caleidoscópio belíssimo, mas de alguma maneira difícil de abordar. O público certamente há de escolher seu preferido, mas os filmes partem de propostas, formatos e dispositivos heterogêneos; talvez esse seja o trunfo da curadoria. Penso que o grande deleite dessa mostra é olhar para Minas Gerais de múltiplos ângulos e por fim, enamorar-se por cada um deles.

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