Crítica escrita por Victor de Almeida para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

A mostra Foco Minas traz consigo um desafio considerável. Reunir um conjunto de filmes que de alguma maneira dialogam com uma identidade e uma estética mineira, mesmo que essas não sejam claramente definidas, é um objetivo e tanto. Acontece que a curadoria parece ter sido modesta em suas pretensões. O que, de fato, a mostra alcança é uma miríade de trabalhos que tecem um Brasil que urge por se ver em tela. E tal reconhecimento se estabelece não somente em termos de dramaturgia e representatividade, mas também de acordo com uma visualidade estética que desafia o lugar-comum. A sensação deixada é a de que talvez seja na experimentação e ousadia que o cinema brasileiro encontra-se mais pujante e se alinha definitivamente ao seu potencial revolucionário.

O Lado de Fora Fica Aqui Dentro (2023) é um belíssimo trabalho dirigido e roteirizado por Larissa Barbosa. A primeira parte da ficção, de aproximadamente 25 minutos, apresenta duas mulheres negras, Mariana e Núbia, irmãs que debatem sua ancestralidade a partir dos processos de exclusão de corpos negros ocorridos na capital Belo Horizonte. Em uma cena de diálogo franco, que se descortina como um apêndice pedagógico na obra, Núbia explica a Mariana que entende o povo negro como a estrutura metálica da cidade: são a sustentação de tudo aquilo que é visto, mas mesmo assim há um esforço efetivo para apagá-los.

Marina, a protagonista grávida, tem um encontro com uma peculiar figura feminina chamada Maria, que conhece em uma visita noturna ao Palácio da Liberdade, antiga sede do governo de Minas Gerais. Na obra, esse encontro é um importante ponto de virada para a narrativa e para uma guinada ascendente de um arrojo estético proposto pela equipe. O que se vê em tela é uma aposta no sobrenatural e na simbologia. Nasce desse momento a cena mais icônica do filme, quando em um plano zenital, acompanhamos Marina a ter pesadelos em sua cama, enquanto uma goteira molha as roupas de cama e seu corpo. A cena, muito bem composta pelas direções de fotografia e de arte, apresenta um corpo bruxuleante que parece alternar entre uma dança e uma cólera. Tal compasso é repetido algumas cenas depois, quando o movimento da câmera, solta como o balançar de um navio, dá vida a um oceano pintado em quadro.

Aos créditos do filme, remeto-me instantaneamente aos Blueprints de Terry Boddie. A referência à estrutura metálica e à construção da cidade; o tom de azul utilizado na arte dos créditos e no vestido de Marina; o esforço pela reconstrução de uma memória que remete a um passado diaspórico; está tudo ali. Tudo no mar de Marina e no Atlântico Negro de Paul Gilroy. O passado e o presente se misturando o tempo todo.

Nação Comprimido (2023) é um curta-metragem de ficção do gênero comédia, dirigido e roteirizado por Bruno Tadeu. A obra conta a história de Dante, um homem idoso e gay, que luta por tirar do campo das ideias o sonho de construir o primeiro lar para idosos LGBTQIAPN+ do Brasil. Para seguir com seu desejo, Dante precisa do apoio de sua amiga Francesca, que está hospitalizada em uma casa de saúde. Aqui acontece um importante embate de discursos e que dá corpo e sustentação ao filme. Francesca entende que os dias de militância já acabaram, que a velhice chegou e é hora de descansar e cuidar de si. Por outro lado, Dante se revolta com esse destino fatalista. O personagem atrela à narrativa seu corpo como discurso; enquanto houverem forças ele estará lutando. Ele sintetiza em si um ideal revolucionário: dar corpo à luta até às últimas consequências.

Para além do roteiro, o filme é extremamente eficiente em sua direção de arte. O robe de seda azul do protagonista esvoaça pela tela como uma bandeira de múltiplos e poderosos significados. A cena da pílula é um deleite visual, onde a direção de fotografia sente-se à vontade para criar planos que carregam em si uma visualidade onírica. Em dado momento, 3 personagens dançam juntos como em um transe e a câmera se aproxima deles como uma subjetiva de um outro alguém ainda não revelado; a quarta parede é quebrada e o público sente-se então incluído a embarcar nessa dança.

O epílogo, que funciona como uma espécie de virada da trama, é na verdade uma abertura de possibilidades. Nada ali se encerra. De certa maneira, o filme de Bruno Tadeu é a materialização do lar de idosos que nunca chega a acontecer. Como se o filme fosse o próprio refúgio desses personagens excluídos e que a partir de agora, encontrarão na obra o lugar seguro para repousar suas lutas e dores…

O terceiro filme desta primeira série é, talvez, o mais anárquico. Eu não posso fazer nada (2024) é um curta de ficção dirigido por Tiago Tereza. Por conta de uma doença terminal, a protagonista Erika e sua mãe precisam voltar a conviver juntas em uma mesma casa. A história se localiza em Macacos, distrito mineiro ameaçado por 7 barragens de exploração de minério. Há ali, portanto, um inevitável olhar para o fim; uma espécie de enfrentamento a um destino incontornável.

O roteiro de Tiago Tereza e Erika Rohlfs, que também trabalha como atriz principal, é surreal, autorreferente, e um tanto quanto charlie kaufmaniano. Há um filme dentro do filme. A certa altura, Erika confessa à mãe que esse roteiro é triste demais, e que uma colega nem conseguiu terminar de lê-lo. A direção de fotografia de Vagner Jabour é madura e muito eficaz. Dois planos em especial saltam aos olhos por sua composição: o primeiro é uma cena em que Erika dá banho em sua mãe, e vemos os corpos recortados pela luz que entra através da janela. O segundo plano se dá quando Erika sai ao quintal a procura da mãe com uma lanterna e a encontra de pé segurando uma espingarda. A cena funciona como um pequeno thriller capaz de assombrar o espectador.

Nos momentos finais da obra, Erika diz à mãe que sua real intenção em realizar esse filme é a de eternizar esse momento e criar um espaço em que sempre será possível retornar para lembrar de seu tempo juntas. Em uma declaração no palco do cine-tenda, minutos antes da estreia do filme na 27° mostra de Tiradentes, o diretor compartilha com o público que o processo de gravação do curta se deu enquanto vivia um luto por um familiar próximo. Após a exibição da obra fico com a impressão de que, através de uma dor particular, a produção nos entregou um presente que pode ser compartilhado: a possibilidade do cinema como canal/dispositivo para a superação de uma perda.

Soneca e Jupa (2024) foi o último filme desta sessão, e também aquele que me fez baixar o caderno de anotações. Pelo tempo de sua projeção, me esqueci que estava naquela sala à trabalho e pude simplesmente sonhar. O curta dirigido e roteirizado por Rodrigo R. Meireles é de um nível de execução precioso. Na simplicíssima trama, Soneca convida o amigo Jupa para uma viagem de alguns dias com o intuito de vender uma kombi. A fotografia dividida pelo próprio Meireles e Paulo Crisóstomo é extremamente sensível em captar a beleza das paisagens do interior mineiro e sua dimensão solitária. O trabalho de Bárbara Goulart na direção de arte também merece especial atenção; a kombi é ao mesmo tempo um refúgio do mundo e a materialização de uma conexão especial entre os amigos.

A obra é um clássico roadmovie que não se deixa incorrer em alguns vícios corriqueiros do gênero: o filme pode até apresentar uma ciclicidade quanto ao seu ponto de partida, mas a transformação ocorrida no processo é significativa. Muitos trabalhos de nosso tempo parecem preocupar-se com as questões da consolidação de uma masculinidade tóxica e como isso prejudica a comunicação entre homens, mesmo amigos. Jupa inicia sua trajetória como um bloco de gelo imenso, um iceberg que esconde uma dor. Aos poucos a intimidade entre eles cresce e com o passar dos dias e das noites, juntos, eles parecem transpor barreiras tão difíceis de serem reconhecidas na vida fora da tela. Em uma das cenas finais do curta, Jupa confessa que o que ele sente é saudade de alguém que perdeu. Simples assim, mas tão profundo.

Apesar de dois nomes comporem o título do filme, um terceiro personagem surge indiscutivelmente como o foco de empatia principal da trama: um cachorro encontrado na estrada pelos dois amigos. O animalzinho aqui ocupa uma função nobre: toda a tensão das palavras não ditas entre os dois é diluída em cada uma de suas aparições. A direção propõe um instigante jogo com sua audiência. Toda cena em que o cachorro é incluído, surge o perigo de que ele não volte mais a aparecer e se perca na viagem. Ele é a alegoria daquela conexão tão sutil e frágil entre os dois amigos.

Ao fim da sessão, ouço os aplausos eclodirem com um entusiasmo ainda não presenciado no fim de semana. Tenho a impressão de que aqui temos um favorito. E não digo isso em detrimento dos outros excelentes filmes, mas como sustentação da habilidade de uma curta-metragem em mover paixões tão rapidamente. São filmes como esses que nos fazem lembrar porque amamos cinema, e porque sempre voltamos à essa tão doce sala escura. E sim, vira-lata caramelo é covardia.

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