Crítica escrita por Victor de Almeida para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
O clima na tarde de domingo da 27° Mostra de Tiradentes começou um pouco diferente: na fila de espera do cine-tenda, além dos costumeiros cinéfilos e suas expectativas e projeções sobre as obras, o local estava recheado de crianças. Não era difícil perceber a ansiedade de todos, e o motivo era a exibição do longa-metragem de animação Bizarros Peixes das Fossas Abissais (2023), dirigido e roteirizado por Marcelo Fabri Marão — ou somente Marão.
Aclamado e reconhecido por mais de uma dezena de curtas, entre eles Eu Queria Ser um Monstro (2009) e Até a China (2015), o cineasta Marão estreia seu primeiro longa-metragem com um trabalho que carrega, indiscutivelmente, sua marca e estilo. Ambientado na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, o primeiro ato do filme trata de apresentar seus três protagonistas: uma mulher com superpoderes — entre eles o de transformar seu bumbum em um gorila —, uma nuvem com incontinência pluviométrica, e uma carismática tartaruga com Transtorno obsessivo-compulsivo (TOC).
Os peculiares amigos partem em uma jornada para buscar uma espécie de cura para um quarto personagem, ainda desconhecido, e, para tanto, devem batalhar contra um grupo de rinocerontes espaciais. A narrativa retira do absurdo todo o seu charme. Natália Lage, Rodrigo Santoro e o lendário Guilherme Briggs emprestam aos protagonistas suas vozes e seu carisma. Como um grupo de desajustados que buscam juntos algo do qual pouco sabem, o trio faz lembrar de Dorothy e seus amigos em O Mágico de Oz (1939). Cada um dos obstáculos impostos pelo roteiro exige deles uma superação individual e uma confiança na amizade recém estabelecida.
O último ato é também aquele que justifica a escolha pelo nome do longa. É curioso perceber que um filme que aborda importantes temáticas relacionadas à saúde mental, como o TOC e a doença de Alzheimer, escolhe como cenário principal as fossas abissais — grandes fendas oceânicas, caracterizadas por uma ausência total de luz, e habitada por criaturas pouco conhecidas. O filme é corajoso o suficiente para não fechar em si sua analogia e permitir que as imagens levem o espectador rumo ao desconhecido. A desproporcionalidade entre os seres, o surgimento de novas ameaças, a imensidão do vazio, e a tela escura fazem desse momento o maior acerto da obra.
O longa é realizado em animação tradicional 2D e levou 10 anos para ser produzido. Para quem não está acostumado à assinatura de Marão, o cineasta mescla, cena após cena, diferentes estilos, cores e construção de cenários. Ora o espectador acompanha os personagens em uma imersão de texturas e iluminação refinados, ora o que está em tela assemelha-se a um esboço em preto e branco, daqueles trabalhados nos estágios iniciais da produção. Assistir a um dos seus filmes é como um passeio em um sketchbook de um talentoso artista, que entende — mais do que qualquer um de sua geração — que o processo de criação artístico não é linear — e justamente aí reside sua beleza.
É por não explicar suas alegorias que se trata de um trabalho tão maduro. Há de se enxergar aqui um excelente momento para a animação brasileira, como uma estrada de tijolos amarelos. A experiência de assistir Bizarros Peixes das Fossas Abissais em nada se assemelha à experiência muitas vezes previsível de se assistir a uma animação da Disney-Pixar — ainda bem.