Crítica por Renata Serra.

Sinopse: Uma celebridade em decadência decide usar uma droga clandestina, uma substância que replica células e cria uma temporariamente uma versão mais jovem e melhor de si mesma.

A Substância, vencedor do prêmio de roteiro na mais recente edição do Festival de Cannes, é um filme que mistura body horror e sátira social. A trama gira em torno de Elisabeth Sparkles (Demi Moore), uma celebridade que recorre a uma substância química para rejuvenescer, duplicando sua consciência em um novo corpo, Sue interpretado por Margaret Qualley. O filme conta com a direção da francesa Coralie Fargeat e explora temas como a obsessão com a juventude e as pressões estéticas impostas às mulheres, especialmente no contexto da mídia e do showbiz.

“Quem trocaria 5 anos da sua vida pelo corpo perfeito?” é a frase que marca um dos primeiros momentos do seriado Fleabag, de Phoebe Waller Bridge. A protagonista e sua irmã são as únicas a levantarem a mão em meio à uma palestra feminista, um dos mais famosos momentos de comédia da série. Em A Substância, porém, Coralie Fargeat leva o princípio da pergunta além na figura de Elisabeth Sparkles, que, aos 50 anos e prestes a ser substituída, pelo estúdio em que trabalha, por uma figura mais jovem, tem um encontro com a solução para seus problemas: uma substância que cria uma versão mais jovem, saudável e bonita de quem utilizar sua dose única. Após contemplar suas escolhas e se sufocar com a perspectiva de desaparecer dos olhos do público, Elisabeth vai atrás da substância, dando início a vida de Sue, uma mulher de vinte e poucos anos, preparada para tomar o lugar de Sparkles sob os holofotes e sob a tutoria de Harvey (Dennis Quaid).

O longa cobre temas como envelhecimento, cultura de celebridades e culto à juventude sob os olhos do gore e das forças do body horror, utilizando o terror de forma irônica e perturbadora. É no conceito da mutilação do próprio corpo em prol da aceitação que a narrativa encontra suas forças e seu ponto de partida, e é no ato de se mudar constantemente para seguir um padrão que Elisabeth encontra um destino trágico. O filme se constrói nas lembranças do hagsploitation, uma variação do terror onde o horror se desenvolve justamente nas figuras de mulheres mais velhas é quase impossível não pensar na Norma Desmond de Gloria Swanson quando pensamos na Elisabeth Sparkle de Demi Moore e o que isso representa em termos de carreira para ambas as mulheres e suas respectivas personagens. Sendo um filme que existe dentro de uma sociedade pautada pelo consumismo sustentado pelo patriarcado, onde mulheres estão fadadas ao medo de engordar e envelhecer, a levar rugas e cabelos brancos como algo a ser temido e negado a todo custo, A Substância vomita o desenvolvimento catastrófico de suas personagens o final de Elisabeth e Sue é dado por como suas versões se sentem quando confrontadas com o que veem no corpo da outra, um eterno ciclo de comparação e autodestruição.

A abordagem de Fargeat não se sustenta em sutilezas e se orgulha disso: a sua mensagem é dada na cara de seu espectador, nos gritos das personagens, no enquadramento do rosto de Margaret Qualley em um outdoor ou no quadro quebrado de Demi Moore, nos litros de sangue que jorram sempre que possível. Mas o horror em si se desenvolve nas reações de todos os outros personagens em frente às mutações de Elisabeth, considerada o corpo matriz, e, principalmente, no comportamento dos homens que as cercam como abutres e as abandonam com a mesma facilidade. É, além de tudo, uma representação da indústria de Hollywood, uma máquina de criar estrelas e de esquecê-las ao menor sinal de imperfeição. Isso é escancarado no terceiro ato, o que pode vir a incomodar alguns, mas, para mim, elevou o filme a algo que muitos cineastas hoje em dia temem em fazer. 

O uso da fotografia e o trabalho de maquiagem durante as transformações de Elisabeth e Sue em A Substância são o ponto principal para a construção de uma mise-en-scène nada sutil. O corredor vermelho que é cercado por fotos de Elisabeth e, depois, de Sue, em dado momento é enquadrado afundado em sangue, o que remete ao trabalho de Kubrick em O Iluminado o filme possui fortes referências do cinema, mas é autossuficiente para criar sua própria atmosfera. A direção de Fargeat faz uso de uma estética exagerada, com referências aos anos 80 e uma crítica ao male gaze, ressaltando a exploração do corpo feminino no cinema. Tais elementos visuais são utilizados de forma consciente, muitas vezes de grotesca, para gerar desconforto e provocar reflexões.

Demi Moore entrega a performance de uma carreira, e Margaret Qualley prova que tem o star quality de uma verdadeira artista de Hollywood. O filme depende da atuação de ambas e, somadas com a persona de produtor executivo interpretado por Dennis Quaid, estabelecem mais um ponto forte do filme. As atuações das protagonistas se complementam, com Moore representando a vulnerabilidade de uma mulher que envelheceu diante das câmeras, enquanto Qualley encarna a figura jovem e sedutora, viciada na própria imagem e vaidade, com Elisabeth e Sue presas uma a outra, cada uma dependente de sua própria maneira a como a outra age.

Que mulheres sofrem com pressão estética não é novidade. Por milhares de anos, fomos ensinadas a odiar nossos corpos e sempre querer mudar algo que seja sobre eles. A Substância eleva a busca por esse ideal de aparência ao regurgitar tudo o que o ódio internalizado à própria aparência, ao envelhecimento e que transtornos alimentares, procedimentos estéticos e rituais de beleza nos causa: a eventual corrupção do nosso interior em busca de um exterior considerado valioso no olhar do outro. Esse ódio internalizado toma forma física na narrativa construída por Coralie Fargeat e transforma o gênero do body horror na destruição que compõe a experiência feminina.

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