Crítica escrita por Victoria Silveira para a cobertura da 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.
Sinopse: O filme retrata a trajetória e a vida dos povos “agudás” atualmente. Trata-se de um grupo de descendentes de africanos escravizados no Brasil, que retornaram à terra natal com o fim da escravidão, e também de descendentes, brasileiros e portugueses, de traficantes de escravos, que se instalaram naquela região da África nos séculos XVIII e XIX. Presentes em Benim e Togo, os “agudás” assimilaram o sobrenome e parte da cultura de seus senhores.
Um pouco antes da sessão começar, a cineasta Maria do Rosário Caetano fotografava a sorridente diretora Aída Marques na plateia do Cine Teatro, no Centro de Convenções da UFOP. As duas amigas de longa data estavam acompanhadas de outros colegas da profissão e todos esperavam ansiosamente para a projeção do documentário Agudás – Os Brasileiros do Benin (2023) na Mostra contemporânea de longa-metragens da 19ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, MG. Esta é uma produção brasileira da MP2 Produções, filmada no Benin e na França com auxílio do Fundo Setorial do Audiovisual. O roteiro é creditado por Milton Guran, antropólogo que estuda os agudás há anos, e Gustavo Pia.
Por meio de relatos pessoais e narrativas poéticas e literárias, somos apresentados à comunidade Agudá da África Ocidental, cuja história é muito pouco conhecida. Trata-se de um grupo de descendentes de africanos escravizados no Brasil que, com o fim da escravidão, retornou ao Benin e ao Togo, mas também de descendentes de brasileiros e portugueses traficantes de escravos que ali se instalaram nos séculos XVIII e XIX.
A ocorrência de sobrenomes de origem lusitana e espanhola (como Nascimento, Silva, Assunção e outros) entre beninenses-brasileiros é introduzida de maneira sutil no filme — através dos nomes descritos em tela acompanhados das entrevistas —, ainda mais para espectadores desavisados e que desconhecem a história dos agudás. Este é o único episódio de matriz cultural brasileira longe da fronteira e também de união dos antigos escravos com os algozes, o que chamou a atenção de Aída Marques. Em seu discurso na Mostra, a diretora afirmou que “os agudás sentem, ao mesmo tempo, orgulho e vergonha do seu passado”.
Se, pelo lado do orgulho, a perpetuação da cultura afro-brasileira é entendida como um movimento de resistência do povo agudá, o lado da vergonha a tem como um lembrete dos anos da escravidão e da mixagem forçada à qual os ancestrais foram submetidos. A escolha de representar as tradições culinária, musical ou festiva e arquitetônica agudás, tanto positiva quanto negativamente (a depender da significação de cada sequência ou cena), é uma excelente sacada de tratamento temático desse filme.
Positivamente, as tradições desempenham um papel comunitário, como numa cena em que se dá uma festa de máscaras muito semelhante ao Carnaval brasileiro. Ali é tocada burrinha, um estilo de música beninense que remete ao Bumba meu boi e outros ritmos semelhantes do Nordeste do Brasil, e o público dança e se diverte. Negativamente, essas tradições podem, se em custódia de um grupo seleto, ser via de segregação e humilhação. Esse é o caso de uma cena excepcional, que indubitavelmente é a de maior força significativa em todo o filme: uma família agudá, de maior poder aquisitivo e provavelmente descendente dos senhores, é servida por um cozinheiro particular — também agudá, mas de origem humilde e provavelmente descendente de escravos.
Os dois meninos, com uniformes escolares, almoçam feijoada e cozido de legumes juntos à mesa. O cozinheiro particular que os serve apresenta os pratos típicos falando diretamente com a câmera. Nesse primeiro momento, ele aparenta ser um cozinheiro importante (mais do que as próprias crianças), mas isso muda com a chegada da avó dos meninos. Ela é uma senhora de terceira idade com os braços enfeitados com pulseiras espalhafatosas e vestindo um conjunto de alaká (este é um traje tradicional costa-marfinense que posteriormente deu origem à indumentária das baianas brasileiras). Logo, o cozinheiro particular se senta numa cadeira ao canto e, com um pandeiro em mãos, começa a cantar burrinha para a família enquanto ela se alimenta em silêncio.
Essa cena deixa claro que os agudás com mais dinheiro se sentem superiores aos demais. A dobradinha de funções do cozinheiro/músico demonstra uma espécie de desespero por dinheiro. E a dinâmica segregacionista que se sucede beira à humilhação. Esse momento do documentário, ainda que seja uma filmagem de um acontecimento real, é narrativo e consegue emocionar os espectadores muito mais eficientemente do que os poemas que uma vez ou outra servem de interlúdio no corpo do filme.
A tentativa de incorporar poesia de resistência à narrativa, como uma forma de fugir da mesmice do documentário clássico e também de se aproximar do público afro-descendente, é falha. Ela também não confere nenhuma grande inovação estética à obra, justamente por sua desconexão com a história sendo documentada — os poemas parecem boiar dentro da linha temática do filme. Além disso, a fluidez do documentário não é favorecida pelo número exagerado de entrevistas que atropelam umas às outras. Realizar uma montagem mais inteligente e esparsa, com redução ou entrelaçamento de falas de um mesmo assunto e com uma maior variação de imagens de descanso (no filme, a mesma filmagem de uma rua grafitada aparece em todo intervalo), poderia resolver esse problema.
Sem ser aquela cena, há outro momento do documentário que inova ao citar mais uma particularidade da experiência agudá em solo africano: essa é a sequência em que é tratada a tradição arquitetônica da comunidade. As casas de patrimônio agudá são seiscentas propriedades em seiscentos hectares de terra em Porto Novo, capital do Benin. A cidade é conhecida por seus cursos profissionalizantes na área artesanal e de construção. Alguns aspectos como a espessura das paredes e a presença de muitas janelas facilita a circulação do ar nas casas preservadas, não havendo a necessidade de instalar ar-condicionado.
As janelas venezianas, que permitem a observação de transeuntes, e os balaústres são de origem portuguesa e foram incorporadas nessas casas nos séculos XVIII e XIX. Rosetas talhadas na portas de entrada simbolizam a etnia afro-brasileira; moldes de espada em casas africanas comuns indicam que a arquitetura agudá se tornou tendência. Em realidade, todos esses incrementos dessa casa indicam a importância de uma parcela dessa comunidade no Benin, desde o Chachá Francisco Félix de Souza até a família presidencial atual.
O grande diferencial deste documentário é a constatação não só de uma divisão dentro da comunidade agudá entre descendentes de escravos e descendentes de senhores, mas também de uma hierarquia econômica e política que terminou surgindo. O filme mostra que a dualidade entre orgulho e vergonha não se limita ao passado, mas também permeia a vida atual dos agudás. As cenas e sequências mais emocionantes e informativas tornam Agudás – Os Brasileiros do Benin (2023) um bom documentário, apesar de os métodos de montagem adotados para evitar o estilo clássico do gênero não tenham sido tão bem-sucedidos quanto o esperado.