Sinopse: Baseado na escandalosa história verídica de um menino judeu, Edgardo Mortara, que foi sequestrado da casa de sua família em Bolonha, em 1858, por ordem do Papa Pio IX. Durante anos os pais dedicam seus esforços para recuperar seu filho, mas, apesar dos apelos desesperados da família e da indignação pública, o Papa permanece irredutível. A história deles revela um capítulo sombrio da tirania histórica na Igreja tendo como pano de fundo uma nação à beira da revolução.
Em 23 de junho de 1858, em Bologna, na Itália, uma criança judia de apenas 6 anos foi levada dos pais para Roma pelo Governo do Vaticano, cumprindo ordens do Papa Pio IX, que via nessa prática uma oportunidade de reforçar a autoridade da Igreja Católica sobre o país. Nesse contexto, que ficou conhecido como Caso Mortara, Marco Bellocchio retrata o acontecimento no longa O Sequestro do Papa, trazendo consigo a dramaticidade necessária para ilustrar o episódio.
“O dogma é uma verdade de fé, em que se acredita sem questionar e sem discutir, porque vem diretamente de Deus”.
Centralizando tudo desde o início do filme, a fotografia apresenta uma simetria que é evidenciada não só pelo seu jogo de iluminações, como também pelos enquadramentos de figuras religiosas que em maioria dos momentos estão na base do quadro, preenchidas pelos elementos fílmicos restantes. O contraste de sombras na casa da família que se esconde com medo do Santo Ofício e na própria Igreja que é subvertida, ganham um caráter mais gótico e assustador, bastante barroco em sua linguagem artística. Não só isso, como também o próprio design de produção – que usa cenários montados, mas também aproveita a própria arquitetura do país e suas antigas igrejas, centros históricos, etc. – mostrando a grandiosidade que o filme se propõe a ser com suas quase 2 horas e 30 minutos de projeção.

A figura de Edgardo (Enea Sala e Leonardo Maltese) também se mistura em conflito com seus pais judeus Momolo (Fausto Russo Alesi) e Marianna (Barbara Ronchi) e a própria figura do Papa (Paolo Pierobon), que recebe uma complexidade suave o suficiente para expor sua repulsa e violência sobre todos abaixo dele, mas igualmente bruta ao retratá-lo como figura messiânica e burocrática de um governo teocrático, fruto de anos cristianizados da Europa. O drama da produção se mistura com terror psicológico, a opressão dos desejos, transformando o filme em uma penitência não só para quem assiste, como nos próprios personagens. Em um certo momento, Pio IX sonha com judeus tentando circuncidá-lo, ou o próprio Edgardo contemplando a imagem de Jesus crucificado, causando uma das cenas mais simbólicas do filme. Certamente, de primeiro olhar pensamos “talvez haja suavidade na forma de retratar a própria Igreja Católica”, entretanto, são esses micros espaços e agressões deixam tudo menos maniqueísta e mais claro ao espectador de que a religião também faz parte de um jogo político e de interesses, até porque da metade ao ato final, o filme se transforma em um caso jurídico, saindo da perspectiva mais infantil (pensando isso com a própria missão de catequização da história) e assumindo a postura madura através do olhar da família Mortara, que se sente cada vez mais desestruturada, seja pelo crime cometido, seja pela a trilha sonora carregada de violinos altos e desarmônicos ao fundo. Marianna ainda consegue visitar seu filho algumas vezes, contudo, na segunda oportunidade temos uma mudança de perspectiva, na qual Nossa Senhora de Nazaré está no foco da imagem, indicando quem é a nova mãe de Edgardo.

Sendo assim, embora O Sequestro do Papa perca fluidez ao decorrer da projeção pela própria proposta de reconstituir fatos ao longo dos anos, ganha muitas camadas não só pela sua história, como principalmente pelo cuidado, sensibilidade e precisão de um diretor experiente nas suas escolhas estilísticas. A catequização através da educação bancária e a opressão por um espaço estranho a alguém, através de diversos ângulos, são mostrados aqui por vários recursos técnicos e narrativos. Todavia, não prende o protagonista num jogo maniqueísta, afinal, oprimidos podem se tornar opressores, seja por vontade própria ou pela própria imagem do crucifixo que separa Edgardo de seu pai quando tentam se abraçar em certo plano do filme. Se na história de Samuel, o menino foi separado de sua mãe Ana e levado ao sacerdote como benção à Deus, na promessa de guiar e prosperar uma nação, Edgardo e diversas outras crianças judias foram amaldiçoadas para sempre ao viverem como prisioneiras, governadas e repetindo séculos de exploração e violência.
A partir do dia 18/07, O Sequestro do Papa encontra-se disponível nos cinemas.