Crítica escrita por Guilherme Corrêa para a cobertura da 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto.
A 19ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto aconteceu entre os dias 19 e 24 de junho, com uma programação de mais de 150 filmes exibidos em dois pontos da cidade: na praça Tiradentes e no centro de convenções da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Três eixos temáticos foram escolhidos para guiar toda a programação do festival: preservação, história e educação. O eixo “preservação” busca reconhecer o cinema como patrimônio e a importância dele no registro histórico, as rodas de debate e “Encontro de Arquivos” caracterizaram a programação. A temática “história” direcionou-se à animação brasileira em sua perspectiva histórica, homenageando o longa-metragem O Menino e o Mundo (2013), realizando rodas de conversa com animadores de todo o Brasil e exibindo inúmeros curtas e longas-metragens animados . Já em “educação”, a tentativa é de visibilizar e consolidar o cinema como ferramenta educativa e catalisadora do processo de ensino, por meio do “Encontro da Educação” e das “Sessões Cine-Escola”.
A abertura oficial do evento aconteceu no dia 20 de junho, quinta-feira, às 19h30, com a encantadora apresentação da Sociedade Musical Senhor Bom Jesus das Flores, seguida de uma performance teatral com diversos elementos circenses e artísticos, um monólogo de exaltação à cidade de Ouro Preto e todas suas características culturais, históricas e naturais, e finalizando com um vídeo de abertura sonorizado com música ao vivo. Antes da tão esperada exibição dos primeiros filmes do festival, houve também a entrega de homenagem à animadores brasileiros.
A Saga da Asa Branca
O curta de animação A Saga da Asa Branca (1979), escrito e dirigido por Lula Gonzaga, retrata a ave de mesmo nome que, quando percebe a seca, foge do sertão. O filme, segundo o próprio festival, pode ser entendido como um semi-documentário que retrata o período de estiagem e suas consequências para aqueles que vivem nesta região.
A locução, ao longo de toda a história, cria essa atmosfera de animação documentária e é necessária para a fluidez da narrativa ao apresentar a ave como mais que um indivíduo mas também como uma alegoria, um simbolismo de todo o povo do sertão que se depara com sua terra natal, de cores vibrantes e rica em natureza, agora totalmente monocromática e seca, sendo, portanto, obrigado a deixá-la como mecanismo de sobrevivência.
O voo do pássaro para o infinito, enquanto a terra arde em fogo, ao som da icônica música de Luiz Gonzaga, acompanhada da morte de toda a biodiversidade local é de transbordar emoções para aqueles que, mesmo que apenas durante os 8 minutos de filme, colocam-se na posição daqueles indivíduos.
Misturando diferentes elementos gráficos, como a colagem e o grafismo, em um único sentido narrativo, cria-se uma textura, para a peça, muito característica e demonstra a liberdade artística, tomada pelo diretor, na escolha estética da animação.
Respeitável Público
Respeitável Público (1987), dos Irmãos Wagner, é um curta que se apresenta como uma espécie de metalinguagem, em que aquilo que é visto na tela é uma propaganda de um paraíso, rico em belezas naturais e intocado. O comprador (figura do estrangeiro) é atribuído sonoramente à uma sátira do Pato Donald, personagem que é automaticamente relacionado aos Estados Unidos. Enquanto esse paraíso se revela, na verdade, como um lugar povoado e repleto de desigualdades sociais, o vendedor coloca “Zé”, protagonista desse filme, como encarregado de comandar o local e foge com o dinheiro. A partir daí, o curta se desenvolve com o personagem lidando com a insatisfação do povo, frente à miséria, e do comprador, frente à incoerência entre o que foi dito do lugar e a realidade.
É um filme bastante rico em informações e sátiras, abordando questões de extrema relevância na atualidade, como a marginalização da população e a gentrificação de grandes cidades. Em certo momento, é possível fazer um paralelo entre A Sociedade do Espetáculo, proposto por Guy Debord em 1967, quando o circo é inserido em cena. Além disso, também permeia o doutrinamento religioso como tentativa de controle de massa, com a figura do Cristo Redentor dizendo: “bem-aventurado é o reino dos mansos porque deles é o reino dos céus”.
Uma obra bem colorida, que passa muitas informações através da paleta de cores ao longo da narrativa e com o som muito bem desenhado, além da música que cria uma atmosfera de tensão e expectativa.
Novela
Com retoques de comédia do início ao fim, o filme Novela (1992), do muitíssimo talentoso Otto Guerra, é uma ironia à grande indústria cinematográfica brasileira: a teledramaturgia — e é feita de forma muito genial, substituindo a figura humana por jacarés antropomorfizados e extremamente caricatos. É impressionante pensar na quantidade de clichês que o autor consegue trazer para apenas 8 minutos de tela: a paixão devastadora dos protagonistas, a ambição de grandes empresários, a traição desmascarada, dramas familiares de separação, ausência paterna, etc. Isso nos faz pensar o quanto as novelas brasileiras apostam na repetição e na saturação de certos arquétipos: mocinha, galã, vilã, corrupto, entre outros.
Além disso, todos esses arquétipos são acompanhados de uma trilha sonora ainda mais cômica. O som nesse curta é muito bem bolado, capaz de transformar o produto audiovisual em uma sátira ainda mais verossímil ao estereótipo de novela brasileira. A identificação talvez seja o ingrediente principal desta obra, qualquer pessoa que já tenha passado por uma novela na TV de casa, enquanto procura algo para assistir, vai se identificar com tamanha ironia à teledramaturgia.
Destaque para a excelente animação de ações e expressões dos personagens que, em alguns momentos, torna possível crer que aquele jacaré na tela é de fato um ser humano.
Castelos de Vento
O quarto filme exibido, Castelos de Vento (1998), de Tania Ayaua, foi caracterizado por uma animação bastante original em estilo de sketch, como se fosse um rascunho do desenho — e, em sua maior parte, é realizado com um frame rate baixo, ou seja, poucos frames de animação que compõem uma sequência, o que cria a ideia de algo fixo, engessado, demorado. A sonoplastia é bem demarcada, amplificando todos os ruídos ao longo da cena, e a trilha sonora, Juízo Final, de Nelson Cavaquinho, muito bem escolhida e posicionada na narrativa, põe o espectador em uma posição de imersão perante a paixão crescente.
Um contraste interessante é que conforme essa paixão — geralmente representada por cores quentes — entre os personagens ia intensificando-se, a paleta de cores ia esfriando-se, uma possível consequência da tempestade de vento que era a personificação de toda aquela emoção.
Passo
Com a 19ª CineOP homenageando seu trabalho em O Menino e o Mundo, não poderia faltar na abertura a exibição de mais uma das obras de Alê de Abreu. Dessa vez o filme escolhido foi Passo (2007), um curta de 4 minutos, o mais curto da sessão, mas não menos rico em narrativa e detalhes autorais.
O curta mistura elementos de animação e live action para criar uma narrativa intrigante sobre um pássaro e sua relação com sua gaiola. Conforme o animador intensifica os traços desenhados, quase que como um exercício criativo, o desespero do pássaro por liberdade aumenta, tendo como único resultado prático sua própria autoflagelação, até ser finalmente liberto da mente humana, mas de fora pra dentro, não de dentro pra fora como tentou.
O som de atrito gradativo e a montagem dinâmica são responsáveis pela atmosfera de tensão e desconforto que envolve o espectador.
Até a China
Fechando a sessão com chave de ouro, exibiu-se o curta Até a China (2015), de Marão, um dos animadores que recebeu homenagem no festival. O filme mostra a experiência do protagonista em sua primeira vez na China. A história é guiada pela narração do próprio personagem e é, em sua essência, uma comédia sarcástica com questões do cotidiano e de fácil identificação, é leve e entretém.
Porém, o bom filme de comédia é aquele que, além de fazer rir, também transmite ensinamentos, e o filme cumpre muito bem essa função. Abordando questões de choque cultural, o curta mostra com um olhar de fora os hábitos dos chineses e as diferentes formas de lidar com questões do cotidiano, e como aquela cultura, de alguma forma, transforma quem visita o país.
É uma animação feita com traços simples, mas que trazem uma sensação de proximidade com o espectador. Uma sacada muito boa da direção de arte é representar todo o estrangeiro, tudo que vem de fora da China, em preto e branco, enquanto os elementos pertencentes àquele meio são coloridos.