Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Sinopse: O filme EROS acessa a intimidade vivenciada na maior instituição de sexo do Brasil: o motel. Pessoas frequentadoras foram convidadas a se filmar durante uma noite e compartilhar os seus vídeos para fazer parte de um filme.
Rachel Ellis, com a ring light e a câmera posicionadas em frente ao espelho do quarto de um motel, aguarda um homem que demora a chegar. Ela faz poses para a câmera, apenas de lingerie, troca o enquadramento e lentamente nota que aquele com o qual iria filmar suas fantasias eróticas não viria mais. Contudo, a noite não está perdida. Como se os gemidos abafados do quarto ao lado fossem sussurros de uma inspiração, a cinegrafista tem uma ideia: pedir para pessoas diversas filmarem suas noites nos moteis. Claro, não necessariamente uma mera sextape, mas que sejam reveladas, nas filmagens, a intimidade dos participantes, por meio de conversas que poderiam muito bem ocorrer em um divã de psicanálise — que, aliás, para uma cadeira erótica basta apenas um salto —, as performances sexuais genuínas e diversas — seja no gênero, na idade e na raça, ou na forma de se fazer sexo, do tradicional ao fetiche — e os detalhes particulares desse espaço tão farsesco — da decoração suntuosa aos serviços fornecidos pelos moteis Brasil afora. Assim, Rachel Ellis realiza uma das obras experimentais que mais se aproxima do popular que assisti nos últimos anos, um exercício de intimidade e empatia em um espaço que se comunica com o público, despindo o motel de seus tabus, exibindo a diversidade humana que passa pelas seus lençóis todas as noites, mas também elevando-o a um espaço mítico, com seus dogmas e suas idiossincrasias.
Logo de cara, é fato que o simples ato de ligar uma câmera implica uma performance daqueles que estão sendo filmados. Decerto, todos os participantes têm uma ação ativa nos efeitos que proporcionam ao espectador, seja no gesto, no diálogo ou no enquadramento. Contudo, já é extraordinário o que se consegue extrair da interação desses vários casais, grupos, e até de um único indivíduo, que dialoga com o público porque é justamente esse o propósito. Não se trata de uma filmagem amadora privada de um casal, guardada a sete chaves, tampouco de um filme pornô, com todos os seus artifícios. É exatamente o ponto de partida proposto por Rachel Ellis que direciona a atuação dos envolvidos para nós: eles têm consciência de que estão em um palco e comportam-se de acordo. Que felicidade, inclusive, é o fato de que os participantes são diretores, atores e roteiristas de sua própria cena, todos amadores — o que, por sinal, ainda traz o frescor daquele que não está lá pela profissão cinema, mas que, pode-se dizer, está “amando” filmar sua noite de “amor”. Há, por exemplo, uma sequência emocionante, carregada de amor: é a de de um casal, composto por um homem negro cisgênero e uma mulher negra transexual. Nela, a mulher conta sua história de vida, marcada por rejeição e abandono após sua transição, expulsa de casa e recorrendo à prostituição, até conhecer o rapaz, que a aceitou e a amou. Sendo assim, a cena de sexo deles, com a câmera enquadrando uma piscina centralizada que cobre até a altura dos ombros do casal, é marcada por um abraço firme, íntimo, que reforça o amor profundo que ambos sentem um pelo outro. Quaisquer pressões sociais ficam para fora dos corredores soturnos dos motéis, esse espaço erótico existe além do tempo e do julgamento afora, como um templo a Eros, deus do amor e do erotismo.
Por falar em pressão social e deuses, a religião é um assunto que surge em diversas instâncias, devido a questões envolvendo desde questionamentos sobre praticidade e culpa cristã até fetiches profanos. Por exemplo, “De Gênesis a Apocalipse, a Bíblia não fala de motel”, diz um casal hétero de evangélicos que pensam no motel de maneira prática. É meramente um espaço onde conseguem ter um momento para ler um livro na banheira de hidromassagem em paz, além de, óbvio, fazer sexo — nesse caso, com uma reza prévia. Em outra sequência, um casal gay discute sobre culpa cristã, envolvendo diretamente a orientação sexual deles e, também, o sexo dentro de um motel, “crente também transa”. Por fim, há uma cena em que há um grupo filmando uma cena ficcional mesmo, com direito a fantasia de freira e confessionário, um sacrilégio tão explorado na pornografia que mais revela privações históricas da Igreja com relação ao sexo do que a moralidade da fantasia — afinal, qual instituição teve domínio maior sobre as concepções de sexualidade na humanidade? Por isso que, ao mesmo tempo, é curioso que o Cristianismo seja assunto tão presente ao longo do filme, em que o foco maior é o sexo e o motel, mas não é uma surpresa dada a conjuntura na qual vivemos.
Outro denominador comum entre as várias sequências é o interesse no ambiente que cerca as camas do motel, a variedade de apetrechos, os espelhos enormes, a arquitetura direcionada para despertar a libido, “a luz difusa do abajur lilás”. Os cinegrafistas amadores exploram o ambiente com a câmera, esse universo distinto e fetichista, às vezes com o entusiasmo da primeira vez, outras, com experiência para decupar as cenas. Por exemplo, uma das cenas envolve um rapaz, com a câmera na mão, explorando a área da hidromassagem, com decorações com pedras enormes, fonte de água e até com teto retrátil para ver o céu noturno, tudo isso com uma surpresa e uma jocosidade que fez a plateia da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes gargalhar. Já mais para frente, um casal tatuado, adepto ao BDSM, é quem mais demonstra variedade estilística na construção dos planos. O uso de closes na mulher, presa em um móvel de madeira, câmera na altura dos pés quando ela está presa em uma “gaiolinha”, e por aí vai, um verdadeiro playground sexual, um quarto de motel equipado para tais práticas. Aliás, a estrutura desses motéis fetichistas é um diferencial para atrair nichos diferentes, desde os quartos de bondage, com objetos que parecem saídos de uma masmorra medieval, até os quartos de voyeurismo, como apresenta uma mulher sedenta por ver, uma fresta que seja, do casal do quarto ao lado, através da janela voyeur — tem para todo mundo!
Agora, o que também não falta em Eros (2024), haja vista o “exercício cardiovascular” que todos realizam, é a fome. A comida dos motéis é tema constante, reclamam da demora para chegar, pedem estrogonofe porque estava na promoção, hamburgão com fritas — é um verdadeiro festival culinário. Junto a isso, também há a escolha das músicas: forró, sertanejo, funk. O que circunda o ato sexual, que, por vezes, é a parte de menor duração da estadia de um motel, é tratado com muito interesse e sinceridade pelos cinegrafistas. Aliás, é tão relevante à narrativa que há segmentos inteiramente sem sexo, deixados para o final do filme. Em um deles, um homem com seus cinquenta anos, aproximadamente, mas viril e cheio de energia, contrata uma garota de programa para que ouça seus desabafos, sua história com vícios, suas seis ex-esposas — o divã simbólico que mencionei no início—, e por aí vai. A profissional ouve com atenção, dá alguns contrapontos, mas, na realidade, o homem que se põe no palco, ele é o assunto, e a mulher que está ao lado é como se não existisse, um mero apoio às suas lamentações. Inclusive, na outra cena, sequer há um outro alguém: no quarto, há apenas um artista nu declamando poemas em seu solilóquio, um “nude da alma” (quem lembra daquele fatídico tweet?).
Eros, enquanto cinema, é uma experimentação fascinante, traz diversos registros interessantes sobre as noites nos moteis, filmados pelos próprios participantes — o que, também, enquanto estudo antropológico, é riquíssimo — e o principal: ainda é capaz de dialogar tão bem com o popular, um filme ousado e corajoso como esse. Rachel Ellis pode ter perdido uma noite erótica, mas, ainda bem, ganhou essa ideia — e tenho certeza de que foi Eros, diretamente do Olimpo, quem lhe deu a inspiração.