Crítica escrita por Otávio Leocádio.

Sinopse: Aisha está de partida e atravessa um dia especial na companhia das melhores amigas, Igui, Bramma e Willa. Entre risos e lágrimas, confissões e encontros afetuosos, é hora de celebrar até o limite, quando o nascer do sol se irradia sobre a beleza tocante e sincera dessa amizade. Borrando os limites entre o real e o ficcional, Tudo o Que Você Podia Ser é um retrato autêntico da mais plena liberdade queer. Pelo olhar das personagens, viajamos pela experiência sensível e brilhante de corpos dissidentes que nos tocam pelo reconhecimento do que nos torna melhores, humanos: o amor, os laços de amizade, a alegria de ser o que se é.

Partindo da premissa de mostrar o último dia de Aisha, uma mulher trans, em Belo Horizonte, antes de se mudar para São Paulo para fazer faculdade, o filme faz o uso de uma estrutura simples, tratando, sem dar voltas, do tema que ele se propõe. Aisha passa esse último dia na companhia das amigas Igui, Bramma e Willa, também pessoas queer que possuem suas próprias vivências e têm seus momentos de destaque no decorrer do filme. E cada uma tem seus momentos antes de todas as personagens finalmente se reunirem no final do dia.

Narrativamente falando, o filme mistura o factual e o fictício, tratando de pessoas reais — elas interpretam elas mesmas — e de suas próprias vivências de uma forma bastante crua, usando os artifícios da ficção nesse processo. Além disso, a dualidade de ficção e documentário traz a tentadora dúvida que acompanha esse tipo de obra, de nos fazer perguntar frequentemente, enquanto assistimos, o que ali é real e o que é ficção. 

Com isso, acredito ser praticamente impossível para quem já assistiu Baronesa (2017), de Juliana Antunes, não lembrar do filme logo nos primeiros minutos de Tudo Que Você Podia Ser. O filme, que mistura ficção e documentário, segue uma tendência do cinema mineiro de pretender apresentar, na narrativa, o cotidiano em obras modestas, que não precisam de muito para dizer muito, o que é bastante feito, por exemplo, pela Filmes de Plástico, produtora também mineira. E o filme faz isso muito bem. Com uma cena simplíssima de uma conversa, por meio de uma ligação, que Igui tem com sua mãe, que ouve a possibilidade da filha se mudar para a Alemanha para realizar o doutorado, o filme trás, nesse conforto, um aconchego que dificilmente seria alcançado sem o sotaque e os maneirismos da fala mineira, tão carregada na voz da mãe de Igui. 

Apesar de alguns pontos fortes, como o citado acima, o filme deixa a desejar no fio condutor da narrativa, que não é tão interessante quanto as tramas paralelas. A obra apresenta essas personagens e desenvolve, em diferentes profundidades, as histórias dessas amigas. Uma linha narrativa que, com certeza, chama bastante atenção é a de Bramma, a personagem com mais conflitos durante o filme e que tem um dia nada fácil, acompanhado da despedida de Aisha. Vivendo com HIV há três anos, temos um momento bonito de Bramma falando na terapia sobre a aceitação de se viver com HIV, fator que será trazido novamente lá na frente, quase no final do filme. Em um momento de descontração, onde elas brincam de verdade ou desafio, a revelação de Bramma para Igui e Willa do diagnóstico e de ter testado indetectável é uma lindíssima cena que concretiza a beleza da amizade desse grupo e que faz, para mim, questionar se a partida de Aisha era a melhor escolha para ser o fio condutor do filme, quando a história de Bramma é muito mais forte, traz um conflito muito maior e poderia ser muito melhor aproveitada se colocada nesse lugar de protagonismo. 

E Aisha é uma personagem que traz consigo, sim, uma história, e entende-se que a pessoa real, por trás daquela personagem, tem suas vivências que valem a pena ser contadas. O ponto aqui é que ela tem esse desenvolvimento satisfatório quando se trata de uma narrativa audiovisual de 80 minutos. O fato de ela se mudar para outro lugar, por si só, não consegue sustentar o filme. Os conflitos da Aisha não são explorados o suficiente e ela funciona mais como esse elo que liga as outras personagens e um meio para que as histórias delas sejam contadas.

No final das contas, com o fim de todos os momentos simples daquele dia especial, o filme termina de forma leve e esperançosa, fazendo-nos lembrar desse lugar onde amigo passa a ser família, tão importante para tantas outras pessoas LGBTs, assim como é para aquelas personagens. Essa sensação de pertencimento e apoio mútuo se torna o verdadeiro fio condutor do filme, destacando que, mesmo em meio às despedidas e aos novos começos, as memórias e os laços construídos permanecem como uma âncora emocional essencial. 

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