Crítica escrita por Mateus José.
Sinopse: A Alegria é a Prova dos Nove é iconoclasta e político, mas nada politiqueiro no sentido tradicional. É uma ode aos movimentos underground e da contracultura, é um hino à liberdade e seu título é uma homenagem a Oswald de Andrade, um dos principais nomes do modernismo brasileiro.
Em A Alegria é a Prova dos Nove, acompanhamos a personagem Jarda Ícone (Helena Ignez), artista, sexóloga e roqueira octogenária, seu companheiro Lírio Terron (Ney Matogrosso), defensor dos direitos humanos, e suas conexões. Após os eventos de uma viagem ao Marrocos, nos anos 70, Jarda Ícone decide dedicar sua vida à sua arte e ao seu trabalho como sexóloga, em seu projeto “Orgasmo Como Fonte do Autoconhecimento”. Assim, ela se reúne com seu grupo de discípulas e amigas: Ana Brasil (Thais de Almeida Prado), Sheyla Fernanda (Bárbara Vida), Caroline Sylvie (Michele Matalon) e Lakshmi (Danielly Kaufmann). Juntas, desenvolvem projetos feministas e artísticos autossustentáveis.
Uma das principais abordagens do filme é gerar uma reflexão acerca do papel da mulher na sociedade. No primeiro ato do filme, acompanhamos Jarda e Lírio, já idosos, divertindo-se na praia. Eles se deparam com algumas fotos e um espelho na areia, remetendo-os a memórias do passado. Então, entra um flashback de uma viagem que fizeram ao Marrocos. Na viagem, Lírio foi drogado pelos militares que, posteriormente, estupraram Jarda. Na cena seguinte, há um diálogo entre eles, onde fica claro que Lírio, por estar dopado, não sabe o que aconteceu, evidenciando que apenas Jarda carrega essa dor consigo. O início do filme parece tentar trazer uma reflexão acerca da violência que as mulheres sofrem, muitas vezes caladas, oprimidas, e sem apoio social. Contudo, após esse flashback, nunca mais voltamos a essa discussão, uma marca constante no longa, que não consegue concluir seus debates.
O filme lança mão de uma estrutura não linear e de um tom de ironia e deboche para contemplar a reflexão sobre as pautas que lhe são caras, como: a autonomia da mulher, tabus sociais, preconceito e a ascensão da extrema-direita. Até o primeiro ato, essa fórmula funciona, por exemplo, quando Jarda se apresenta e fala pela primeira vez sobre o prazer feminino. Contudo, conforme saímos do foco “Jarda e Lírio”, e somos introduzidos aos demais núcleos e personagens, a direção parece perder a mão ao querer abraçar o mundo e, assim, não consegue nem terminar o que tem a dizer. Helena Ignez, que assina a direção e o roteiro, parece ter clareza sobre a ideia que quer passar, mas não sabe exatamente como executá-la. O roteiro tem personagens que aparecem e somem sem o devido desenvolvimento; falas e diálogos apressados, repetitivos e expositivos; e a direção, por sua vez, quer falar de tudo sem falar de nada profundamente.
Um exemplo disso é a cena em que Escovado (Fransérgio Araújo), Ana Brasil e Sheyla Fernanda, ao saírem da academia onde acabaram de se conhecer — e mal trocaram cinco palavras —, vão caminhar no parque, e começam um debate sobre um livro de poliamor e sexo. Ana Brasil fala de uma forma totalmente didática, enquanto Escovado e Sheyla Fernanda adotam um tom adolescente e exagerado, dando gritos e citando, de maneira solta, a frase “é preciso reinventar o amor” do poeta simbolista revolucionário do séc.XVII, Arthur Rimbaud, que chocou a sociedade poética da época com seu amor homossexual, sua vida boêmia e seus versos livres. A citação poética busca fazer uma conexão entre o poliamor e outras formas de amar, porém em momento algum é contextualizado quem foi Arthur Rimbaud, limitando o sentido da cena a um público restrito.
Outro exemplo é a cena em que Caroline Sylvie está falando com uma mulher trans (Julia Katherine), que cria sua sobrinha, Juno (não aparece nos créditos), desde os nove anos de idade, pois o pai dela assassinou sua mãe genitora. Ambas são esquecidas no filme a tal ponto que sequer têm nome. Nos créditos, Julia está com a alcunha de “Mãe de Juno”, e a própria “Juno” nem mesmo é citada. O roteiro passa rapidamente por essa história; ela diz que sofre preconceito quando são vistas juntas, e logo depois corta para uma cena do padre tocando violão para Jarda, outros personagens e alguns integrantes do MST. O longa não consegue se aprofundar e, ora se repete copiosamente, ora pula de pauta em pauta como se tivesse que falar um pouco de cada coisa, o que tira a seriedade do filme e das pautas que ele aborda, deixando-o com um tom desinteressante, caricato, forçado e maçante.
Em uma das cenas boas e diretas de A Alegria é a Prova dos Nove, Escovado imita um porco e realiza uma performance com teor escatológico, que discute o animalesco, o corpo, o ser social e a relação de quase controle do homem por seu pênis. O enquadramento mais fechado no personagem, acompanhando parte de seus movimentos, gera uma sensação de claustrofobia, nojo, tensão e aflição.
Sobre os aspectos técnicos, a fotografia, assinada por Toni Nogueira, Flora Dias, Mirrah da Silva, Matheus da Rocha Pereira e Lucas Eskinazi, tenta passar uma naturalidade ao filme, usando muita câmera na mão e planos de ângulos variados, o que, por vezes, é interessante. Porém, também peca ao dar zooms abruptos que causam a impressão de que foi preciso tirar algo do plano de última hora. A direção de arte, assinada por Fábio Delduque, e o figurino de Sonia Ushiyama roubam a cena, entregando cenários ricos em detalhes e cores, e figurinos ousados que contrastam bem com o background. A montagem, assinada por Sergio Gag, é um dos pontos mais fracos do filme, pois não consegue costurar a narrativa e várias vezes parece cortar as cenas ainda em desenvolvimento.
O filme se encerra de maneira subjetiva, com Jarda caminhando em direção ao mar. Em suma, Helena Ignez possuía uma boa ideia e é ousada ao trazer para debate uma série de concepções críticas acerca de diversos temas que borbulham na sociedade contemporânea. Contudo, sua abordagem é pouco abrangente e a falta de contexto em suas referências torna seu filme raso e restritivo.