Crítica escrita por Renata Serra.

Sinopse: Após anos de raiva reprimida, Kid, um lutador anônimo de clubes clandestinos interpretado por Dev Patel, descobre uma maneira de se infiltrar na elite da cidade. À medida que seu trauma de infância ressurge, ele embarca em uma campanha de vingança para acertar as contas com os homens que tiraram tudo dele.

Fúria Primitiva, longa de estreia do ator britânico Dev Patel, é uma agradável surpresa para o cinema em 2024. O filme é um conto de vingança protagonizado por Patel no papel de Kid, um homem que participa de um clube de luta clandestino em Mumbai sob o pseudônimo de Kong ou “Monkey Man” – título original do filme em inglês. Combinando elementos do cinema de ação ocidental e do cinema indiano, a história acompanha o personagem em sua jornada de infiltração na elite política da Índia a fim de concretizar um plano de vingança e a razão pela qual ele a busca. 

As cenas iniciais, completamente opostas, tonalizam os dois lados da obra: o filme se inicia com o personagem principal ainda criança, tendo um momento com sua mãe, e em seguida há um flashforward para o presente, o mesmo personagem com uma máscara de gorila perdendo lutas por dinheiro em um clube da luta underground indiano. A história de Kid, também referido como Bobby ou Kong, é um reflexo de um indivíduo cansado de ser derrotado em sua vida. Ele, literalmente e figurativamente, passara sua vida lutando e sempre perdendo, dentro e fora dos ringues, o que o leva a um estado de, como o título em português sugere, fúria primitiva – uma necessidade de vencer sob os termos de sua raiva antes contida e agora liberada e colocada em prática. A partir disso, o filme se estabelece entre a jornada de vingança de Kid e flashbacks de seu passado, revelando os traumas por trás de sua explosão.

O filme é, em muitos momentos, clichê – o que não é necessariamente ruim. Se clichês existem é porque, quando bem feitos, funcionam. O que é o caso de Fúria Primitiva – em sua essência, um filme de vingança como qualquer outro, mas com o coração de uma narrativa convincente em sua construção. Patel parece dominar os limites do roteiro com que trabalha: em tela, vemos uma construção de planos cativantes que ressoam no gênero cinematográfico de ação e na jornada do personagem, como o uso de câmera na mão nas cenas de perseguição ou de planos ponto-de-vista de Kid durante as disputas com seus inimigos. 

Sendo assim, as cenas de ação do filme são bem coreografadas e empolgantes, apesar de que, em momentos, confusas – a fotografia opta por uma quantidade exagerada de planos borrados, que dificultam a identificação dos acontecimentos mais vezes do que deveria. Isso acontece, também, devido a uma montagem dinâmica e acelerada criada para gerar a sensação de adrenalina, que acaba prejudicando o desenvolvimento em alguns pontos. Ainda assim, somada com uma trilha sonora diversa que, nos momentos de luta, constrói um certo divertimento em ver aquela violência em tela. Violência essa que é explícita, mas não gratuita. O espectador torce para que ela se concretize, e simpatiza com a jornada da figura anti-heróica do personagem de Patel. Imagina-se que virão as comparações com o John Wick de Keanu Reeves, e com o precedente que este abrira no cinema contemporâneo e, mais especificamente, no gênero da ação.

Além do tom violento e das sequências de ação, Fúria Primitiva também tem sua parcela de drama social com tons de comédia, que às vezes torna-se monótono. A performance do ator e humorista indiano Pitobash e a relação de amizade inesperada criada entre o seu personagem e o de Patel é o maior acerto da comédia do filme em termos de timing, e um dos destaques da obra no geral. Em termos da carga dramática, o passado do protagonista carrega essa função no longa, fazendo-nos simpatizar com sua jornada de vingança e redenção por meio de flashbacks de sua infância com sua mãe e a origem de seus traumas na sua história com, principalmente, o chefe de polícia Rana, interpretados, respectivamente, por Adithi Kalkunte e Sikandar Kher.

Além disso, o longa desenvolve um comentário social ao ter como pano de fundo da retaliação do protagonista o papel da elite indiana, como policiais, líderes religiosos e políticos, na corrupção do poder político no país. Ao adentrar aquele mundo, Kid observa a vida de luxo e luxúria acompanhada de tráfico de drogas e prostituição que os VIPs levam as custas da população. Personagens como o da atriz Sobhita Dhulipala, uma acompanhante de luxo que estabelece uma relação de proximidade com Kid (como a cena em que aparece em tela com a canção Roxanne, The Police, de fundo, estabelece) refletem outra parcela da população vitimada por um sistema capitalista ganancioso e injusto, a crueldade que esse sistema acarreta e o que as pessoas fazem para sobreviver. Imagens simbólicas como o sangue do protagonista marcando o andar dos convidados VIPs do restaurante onde trabalha pode soar brega, mas funciona dentro da proposta do filme nas mãos de Patel. Porém, além disso, Fúria Primitiva traz, também, uma representação bonita da cultura hindu. Kid não só encontra-se com o lado cruel de uma sociedade corrupta, como também com pessoas de uma forte crença, uma cultura valiosa e essencial que existe há séculos no país e auxilia o protagonista em sua jornada interior de libertação através da fé.

A estreia de Dev Patel na direção é, fundamentalmente, boa, e se mantém dentro do que se propõe: um longa empolgante que combina ação e profundidade emocional, refletindo as complexidades da reintegração social e da busca por justiça pessoal. Fúria Primitiva é o retrato de uma sociedade corrompida e das consequências dos traumas na vida de um indivíduo e, acima de tudo, é um conto de vingança acompanhado de gratificantes sequências de ação e das habilidades multifacetadas de Dev Patel.

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