Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
Sinopse: Sofia se encontra em um momento de vulnerabilidade após ter que deixar o apartamento onde estava hospedada. Entre a vida acadêmica e a necessidade de apoio, a jovem decide se esquivar das obrigações universitárias para trabalhar como tatuadora no campus. A noite cai e ela permanece à deriva, sozinha, entre os espaços da Universidade de São Paulo.
Raros são os filmes em que a longa passagem do tempo é apreciada como elemento fundamental da narrativa, disparador de reflexões profundas sobre a vida. Desde que ao cinema foi apresentada a ideia, vinda de Andrei Tarkovsky, de que a essência do trabalho de um diretor é esculpir o tempo, a percepção do fazer cinematográfico expandiu-se. Como um dos representantes canônicos do – hoje comumente chamado – cinema moderno (ou modernista), Tarkovsky propunha um cinema da reconstrução da vida em um sentido cronista, livre, para além da dramaturgia da narrativa clássica. Um cinema da observação, contemplação, da arte que é a nossa vida. De sua maneira, o longa Sofia Foi (2023), dirigido pelo estreante Pedro Geraldo, exibido na Mostra Aurora da 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, atende a essas ideias: um filme que permite a passagem do tempo fazer-se sentir e livre em sua observação da vida de sua protagonista. Não houve – em toda a Mostra – um filme mais capaz de esculpir o tempo quanto este.
Na obra, Sofia vai para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, na qual ela estuda, para trabalhar como tatuadora e para vaguear pela austera arquitetura modernista do campus, encontrando pessoas conhecidas e desconhecidas pelo caminho. De porte pequeno e vestida de boné, camiseta vermelha e short azul, poderia ser confundida com alguém bem mais jovem. Aliás, há uma questão na idade dos estudantes universitários, por vezes no limiar entre a adolescência e a adultez, que é sutilmente colocada aqui. Além das vestimentas, há uma cena, antes dela sair do apartamento, em que está passando Bob Esponja na TV. Em outro momento, ao encontrar uma figura alta e esguia, um rapaz vestido todo de preto, o assunto da idade é discutido, pois são estudantes com uma diferença considerável de idade fazendo o mesmo curso. “Nem sei porque entrei”, diz Sofia ao rapaz misterioso, referindo-se à faculdade. Há uma melancolia inerente à idade do universitário, um processo de amadurecimento que pode não ser tão brusco e assustador quanto o da adolescência, mas é mais vagaroso e sombrio. Sofia estampa um semblante frio e duro, mas por dentro não só está passando por uma fase incerta da vida e também guarda uma dor profunda que,, após o filme revelar a origem desse trauma, perpassa o resto do filme por inteiro: o luto.
Sofia conta a uma colega, enquanto a tatua, que uma amiga dela faleceu de febre amarela. Descobre-se em seguida que a amiga era na verdade sua namorada, isso se dá por meio de uma sequência em que as duas estão no mato, como se em um recanto natural encantado, trocando carinhos e transbordando confidência com os olhares. A partir da descoberta, todos os elementos estilísticos passam a ser construídos com base nessa dor. Por exemplo, enquanto Sofia aparenta estar divertindo-se em uma choppada, a forte iluminação vermelha traz um desconforto tremendo, aliado ao desconforto sonoro do heavy metal (desconforto, é claro, ocasionado dado o contexto da personagem, não inerente ao gênero musical em si).
Aliás, Sofia Tomic, além de protagonista, é creditada na Direção de Arte, desempenhando um papel fundamental tanto na escolha dos espaços na FAUUSP, o que contribuiu para a atmosfera fantasmagórica, quanto na dialética entre vermelho e azul do filme. No caso, o universo de Sofia pode ser dividido entre fora e dentro da USP. A iluminação vermelha e laranja é constante na universidade, em contraste com a iluminação naturalista do mato em que elas costumavam passar suas tardes, verde, ao lado de um límpido lago, azul. Também o ruído da música na choppada alta choca com o som dos insetos da mata e as respirações e risadas do casal. Além disso, o diretor não poupou esforços em buscar os planos mais liminial possíveis para retratar o campus. Esse caráter longilíneo das imagens, os estudantes avulsos a vagarem, a iluminação baixa, tudo isso traz um teor fantasmagórico ao filme que é sutilmente perturbador, remetendo àquilo da soturna época da vida universitária.
Sofia Foi é um impressionante exercício de criatividade constante: cada quadro é um “quadro” a se admirar pela composição visual. Cada escolha sonora é um deleite aos ansiosos por frescor imaginativo no cinema, mas, acima de tudo, com o elemento do tempo em jogo, esse é um filme em que o tempo é também protagonista. A sensação de fantasmagoria só é possível com o incômodo de assistir jovens perambulando por toda a madrugada aqueles espaços vazios e escuros, a dor de Sofia só é tão sensível por assistirmos o tanto de tempo em que ela evita demonstrar seus sentimentos e por aí vai. Pedro Geraldo faz um filme que parte de elementos comuns à toda a humanidade, vida, amor e morte, mas com uma sensibilidade ímpar comparável a – sem medo algum de parecer exagerado – Tarkovsky, já que escolhe explorar profundamente esses elementos. Afinal de contas, como o próprio cineasta russo disse em seu livro Esculpir o Tempo, o verdadeiro sentido da vida é o amor e o sacrifício.