Artigo de Pedro Lauria, originalmente lançado em 2017 nos Anais do XIV Seminário de alunos de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio. Ele conta com atualizações de números e referências.
Obs: Apesar do contexto do artigo se referenciar primordialmente ao TCG (Trading Card Game), sua exibição no Observatório de Cinema e Audiovisual se aplica, pois toda sua discussão aqui feita se estende aos games da franquia (como o Magic Online e o MtG Arena) – que se utilizam destas mesmas cartas e suas ilustrações.
Contextualização
Magic: The Gathering é considerado o pai dos jogos de cartas colecionáveis modernos e foi criado pelo matemático estadunidense Richard Garfield em 1993. Nele, dois ou mais jogadores duelam entre si se utilizando de cartas que representam heróis, criaturas fantásticas e magias, com o objetivo de levar a vida de seu oponente à zero.
Apesar de ser reconhecido pelo seu sistema de regras bem consolidado, é graças a sua abertura contínua para desenvolvimentos de novas mecânicas, através do lançamento trimestral de novas edições (coletâneas de novas cartas) que o Magic sustenta sua relevância no mundo dos jogos. Para se ter uma ideia de seu escopo, em 2021 o Magic atingiu a marca de 35 milhões de jogadores em todo mundo e baseado em sua expansão contínua para o mercado online (através dos jogos Magic Online e MtG Arena), mobile e com uma série em estágio de desenvolvimento para Netflix.
Entretanto, o foco desse artigo não parte do componente mecânico nem estratégico do Magic, mas de seu flavor, ou seja, de seus componentes imagéticos e narrativos que apesar de não afetar o funcionamento das partidas são partes fundamentais da “atmosfera” do jogo. Falo dos aspectos estéticos e diegéticos que criam uma identidade singular ao jogo: suas ilustrações, as histórias que contam, etc. Identidade essa que é primordial no que se diz ao poder de atração e retenção de jogadores, como defendido pelo seu antigo ilustrador chefe e ex-colunista do site da Wizards of the Coast, Matt Cavotta (2005). Para ele, antes mesmo do novo jogador ser atraído pela qualidade do jogo em si, sua atenção será capturada pela ambientação fantástica com magos, zumbis, dragões, etc.
Mantendo-se fiel apenas a se manter sempre na temática de fantasia, o jogo se renova ao trazer mundos completamente diferentes a cada nova edição, sejam locais inventados do zero ou baseados em mitologias, civilizações e/ou momentos históricos inspirados no mundo real. Dessa forma o conjunto de cerca de vinte mil cartas desenvolvidas nos últimos 24 anos trazem consigo representações de diversas culturas, eventos e personagens, o que, aliado a toda relevância do Magic: The Gathering, no mundo dos jogos faz dele um rico objeto de estudo sobre representação na cultura pop e nerd. Nesse artigo focaremos nas representações femininas e LGBTQIA+ devido à decisões recentes por parte da Wizards of the Coast, que trazem essa discussão a tona.
Elementos de análise
Considerando que a discussão abordada nesse artigo não necessita de um conhecimento prévio sobre as mecânicas de Magic: The Gathering, creio ser fundamental uma rápida apresentação ao leitor sobre o que compõe uma carta de Magic. Aproveito também para elencar quais são os diferentes elementos que definem o flavor de uma carta e que serão utilizados como ponto de partida de toda nossa análise. Para isso nós utilizaremos como exemplo a carta Kari Zev, Incursora das Aeronaus (abaixo).

Para melhor compreensão, destrinchei a análise dos componentes que influenciam no flavor em cinco partes. São eles:
1. O Nome: Kari Zev, Incursora de Aeronaus. O nome define o que é a carta: um personagem, um local, um evento, uma magia, etc. No caso da carta em questão, fica claro que se trata de uma personagem específica (ou seja, não é o nome de uma figura genérica dentro da narrativa);
2. A Ilustração: o mais marcante elemento de flavor em uma carta. Elas são importantes em questão de design (pois tornam as cartas facilmente reconhecíveis durante o jogo), além de um componente estético e semiótico daquilo que está sendo representado. No caso acima, temos a arte de uma jovem pirata cujo olhar, posição corporal e o ângulo de enquadramento (de baixo pra cima, ou contra plongée) passam uma ideia de superioridade e auto confiança da personagem. Ela também estabelece que se trata de uma jovem com traços indianos e que carrega um macaco de estimação.
3. O Flavor Text: se trata do texto em itálico na parte inferior da carta. Criado com objetivo de ocupar os espaços em branco, eles trazem citações ou trechos da narrativa que auxiliam na contextualização dos elementos representado pela carta. No caso, da carta em questão, o flavor text “A bordo de sua nau, Sorriso do Dragão, Kari segue apenas suas próprias regras” nos ajuda a compreender um pouco mais da personagem;
4. Atributos Mecânicos: o custo (parte superior direita, onde se tem o número “1” ao lado de uma bola de fogo), o tipo (parte central, onde está escrito “Criatura Lendária – Humano Pirata), as habilidades (corpo do texto, começa com iniciativa e acaba com a palavra combate), e o poder e resistência (parte inferior direita, onde está escrito 1/3) são questões intrinsicamente mecânicas do jogo e não nos interessam para essa análise. Entretanto, é valioso perceber que mesmo um leitor desconhecedor de Magic pode retirar informações de flavor de suas mecânicas, como o fato de ser uma personagem ameaçadora e seu macaco se chamar Ragavan (cujo sucesso faria que ganhasse uma carta própria em 2021);
5. A História: único dos elementos discutidos que não está presente na carta (salvo alguns trechos que possam vir a aparecer no flavor text) mas no site oficial da Wizards of the Coast. No site são lançados contos relativos a diversos personagens do jogo, aprofundando suas narrativas.
Público alvo, “atitude magic” e a sexualização do corpo feminino
Historicamente associado ao jogo de RPG (Role Playing Game, ou jogo de interpretação) Dungeon & Dragons, com o qual compartilha a temática de aventura e fantasia, o Magic: The Gathering é notoriamente ligado à chamada cultura nerd. Esse termo “Nerd” é relacionado a pessoas interessadas por tecnologia, jogos, leitura e outras atividades de cunho intelectual. Entretanto os nerds sofrem de persistentes estigmas negativos em relação às características físicas e sociais que são constantemente reforçados pela forma como são representados na cultura pop. Eles são geralmente retratados como homens cis héteros e detentores de um físico pouco saudável, infantilizados e com pouco tato social (SILVA, 2015: 4).
Ao atribuir determinados hábitos e características a esse público e as rotulando como nerds, eles acabam se tornando um segmento de mercado – ao quais são vinculados determinados produtos culturais. Produtos esses cujo consumo passa a ser relevante para a a integração de um grupo, a partir da constituição de uma moral e um sistema de comunicação próprios (BAUDRILLARD, 2011: 91). Esse grupo age como uma “redoma” (ou bolha) que atrai tanto pessoas que se encaixam nesse perfil, quanto repele pessoas que não queiram ser relacionadas a esses estigma ou hábitos.
Apesar da discussão sobre a criação dessas comunidades fechadas abrir gancho para discutir sobre os obstáculos sociais que existem para mulheres e o público LGBTQIA+ a ingressar no Magic, para esse artigo o principal é deixar claro como a “homogeneidade aparente” do público nerd vai impactar nas decisões mercadológicas da Wizards of the Coast. Afinal, são em cima das caracterizações desse público alvo que são definidas a narrativa e os aspectos de flavor do Magic. Isso fica ainda mais evidente em uma coluna escrita pelo ex-ilustrador chefe da empresa, Matt Cavotta (2005), quando ele explica algumas das diretrizes dadas aos novos artistas:
Magic é uma batalha de raciocínio em que dois guerreiros conjuradores de feitiços lutam até a morte com mágicas e exércitos de criaturas “duronas”. A ilustração de cada carta deve funcionar nesse contexto: ativa, agressiva, legal, ousada. O conceito “mago punk” funciona para nós. Lembre-se, sua audiência são GAROTOS de 14 anos ou mais. (CAVOTTA, 2005).
Esse posicionamento revela, em termos mercadológicos, um olhar pragmático da empresa para seu público: a principal preocupação é manter e expandir aquele segmento de mercado que o jogo já conquistava. Para ilustrar o tom das artes de que Matt Cavotta sugere em seu artigo, separei alguma das artes da expansão Ravnica: A Cidade das Guildas lançada em 2005 (figura abaixo), mesmo ano em que a coluna onde ele expõe as diretrizes supracitadas foi publicada. Aqui vale deixar claro que se trata de uma seleção mínima de cartas (3 dentre as 293 que compõe a edição) mas que se encaixam exatamente na descrição de Cavotta, e dão uma boa ideia do tom geral da edição. Sugiro que para ter uma contextualização geral e não limitada ao recorte que aqui foi feito, o leitor acesse ao próprio site oficial para ter a possibilidade de visualizar todas as ilustrações da edição em questão.

Porém, apesar de não constar escrita na definição de Matt Cavotta, uma outra característica se destaca nas ilustração de Ravnica (e que não são restritas a ela): o foco no público de adolescente masculino parece ter como uma de suas consequências a questão da sexualização do corpo feminino. Na edição em questão, a tom de comparação, absolutamente nenhum personagem masculino tem uma ilustração cujo corpo esteja aparentemente sexualizado. Ao contrário, geralmente estão cobertos por túnicas e armaduras. O mesmo tratamento não acontece nas ilustrações que apresentam personagens femininas (figura abaixo).

Como veremos posteriormente, a questão da permissividade na sexualização de personagens femininos nas ilustrações vai ser posteriormente revisada pela Wizards of the Coast, o que terá como consequência direta uma mudança de sua política. Entretanto, se nos chama a atenção a sexualização do corpo feminino presente em ilustrações lançadas em 2005, há de se ressaltar que esta situação era ainda mais presente em edições lançadas em anos anteriores. Assim, não nos causa surpresa que seja ainda na primeira edição do jogo, Alpha (1993), que se encontre a mais polêmica arte no que tange à esse assunto: a carta Earthbind.
Na carta em questão vemos uma fada com atribuições femininas, manifestando desespero ao ser presa em uma posição de cunho sexual contra sua vontade, fazendo uma referência, mesmo que não intencional, à uma cena de alegoria ao estupro. É importante citar que por mais que a ilustração dessa carta em específico se trata de um caso isolado (no que se diz a natureza gráfica desse tipo de violência), ela é um exemplo de como a ótica fetichista em relação a sexualização do corpo feminino figurava nas ilustrações do Magic desde sua origem.

Planeswalkers e a representação do feminino
Em 2007, a expansão Lorwyn trouxe consigo umas das maiores e mais impactantes inovações da história do Magic, a criação de um novo tipo de carta: o Planeswalker (figura abaixo). Elas representavam poderosos personagens com poderes de atravessar os variados mundos retratados na narrativa do Magic. O sucesso foi imediato. Pela primeira vez na história o Magic teria protagonistas “vitalícios” que não ficariam presos em histórias ou sagas fechadas em um mundo específico, já que como o próprio nome sugere (Andarilhos de Planos ou Planinautas), eles poderiam se deslocar entre os mundos e, assim, fazer parte integral da narrativa. Essa estratégia da empresa foi motivada justamente pela dificuldade de conseguir dar rostos fixos ao jogo (e que com o tempo pudessem ser identificados com facilidade), uma vez que a dinâmica de ter vários mundos dificultava na elaboração de personagens que pudessem ser mantidos durante anos a fio. Em resumo, os planeswalkers seriam a “cara do jogo”.

Esses personagens mudaram completamente a forma como a Wizards of the Coast passou a vender o seu jogo. Novos planeswalkers passaram a ser criados todos os anos, sempre tendo preponderância na história e interagindo com planeswalkers mais antigos e famosos. Eles também passaram a ser utilizados como capa das novas edições e suas cartas sempre estão entre as mais cobiçadas, se tornando a principal peça de propaganda da marca Magic. Pelo seu uso ostensivo na publicidade e por suas cartas sempre aparecendo em campeonatos, a empresa conseguiu com que os jogadores, geralmente receosos com grandes mudanças no Magic, abraçassem a novidade e, mais do que isso, criassem uma identificação com os personagens. Os planeswalkers, por exemplo, são quase uma unanimidade entre os cosplayers, que vão a torneios e convenções fantasiados do personagem que eles mais gostam. Dessa forma, fica claro que os planeswalkers se configuram como um importante elemento de análise para levantamentos sobre representações dentro do jogo.
Partindo dessa premissa, um levantamento simples nos revela uma situação emblemática: dentre os 35 planeswalkers existentes até a edição Revolta do Éter (lançada em janeiro de 2017), apenas 13 são do sexo feminino (com o lançamento de Innistrad: Caçada à Meia Noite em setembro de 2021, essa discrepância caiu para 30 personagens do sexo feminino contra 36 do sexo masculino),. Isso se torna chamativo ao considerarmos a importância da representação para aquele que está sendo representado, como ressalta a pesquisadora Kathrin Woodward:
A representação compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas (…) Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos pode sem posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2000: 17)
Quando questionado sobre essa discrepância (na ocasião a diferença era de 12 planeswalkers do sexo masculino para apenas 5 mulheres) o head desginer Mark Rosewater (2012) disse que “A razão de existirem mais planeswalkers homens tem muito a ver com o percentual de jogadores masculinos”. Ainda mais esclarecedor é que o principal personagem da marca, Jace Beleren (figura acima), se trate de um jovem homem branco cis hétero que usa sua inteligência e poderes mentais para alcançar seus objetivos. Dessa forma fica visível a manutenção do pensamento por parte da empresa de focar em representar o seu público alvo sem se preocupar com a questão da subrepresentação feminina. Nessa época, a questão LBGTQIA+ ainda nem era abordada de forma direta pela Wizards of the Coast, mostrando um claro descompasso com sua época e um possível receio que isto pudesse afetar suas vendas.
Um acontecimento ainda nesse ano de 2012, porém, obrigou a empresa a se posicionar de forma mais enfática no que se dizia a representação do corpo da mulher. A polêmica se deu com a publicação da imagem de um playmat promocional (tapete para jogo) para um Grand Prix em Indianapolis (torneio com milhares de jogadores). A imagem escolhida pela organização, que era terceirizada, causou grande repercussão por mostrar várias mulheres sexualizadas em posição subalterna (figura abaixo).

Diante da polêmica Elaine Chase (2012), a então brand manager do jogo, soltou uma nota em seu twitter anunciado a proibição da distribuição desse playmat dizendo “Nós mantemos um padrão para a arte do Magic de retratar personagens femininos fortes. Sexy é ok. Submissa ou “dama em perigo” não é.” Vale ressaltar que essa medida também causou a revolta de alguns membros da comunidade que alegavam que a empresa estava fazendo isso para agradar os “social justice warriors” (termo pejorativo usado para definir pessoas que defendam temas relacionados à minorias) e que passariam a boicotar os produtos relacionados a Magic. Diante da manutenção da posição da empresa em vetar o playmat, é interessante perceber um discurso um pouco mais politizado em relação a objetificação de corpos femininos.
Theros e o início da representação de personagens LGBTQIA+
Em 2013, com o lançamento da expansão Theros, um mundo baseado na Grécia antiga, a Wizards of the Coast começou a se posicionar diante de uma questão ainda não abordada em seu card game: a representação LGBTQIA+. O lançamento de duas cartas em específico foram responsáveis por iniciar uma nova era no Magic: The Gathering no que se diz à dessas minorias.

A primeira delas, Ashiok, se trata de um planeswalker místico baseado em pesadelos. Sua concepção andrógena vai de encontro à definição binária de gênero, apesar de isto estar apenas sugerido por sua ilustração sem traços masculinos ou femininos marcantes. Entretanto, ela é confirmada em uma história lançada no site oficial da Wizards of the Coast escrita pelo artista Ken Troops (2013) onde um personagem chamado Phenax demonstra indagações sobre a sexualidade do planeswalker: “Ele – não, Phenax não tinha certeza se o mortal sequer possuía um gênero – Ashiok.”
É importante ressaltar, no entanto, que por mais que se trate da exposição de uma minoria subrepresentada, é uma parcela ínfima de jogadores que tem acesso a essa característica da personagem, uma vez que ela foi descrita apenas no site oficial da Wizards of the Coast. O mesmo não ocorre com o card Guardians of Meletis (figura abaixo) onde a referência de que se trata da representação de uma minoria encontra-se na própria carta (e não em meios externos, como no site oficial). A ilustração, que a princípio não parece fazer menção a orientação sexual dos personagens retratados, ganha outros sentido quando levado em consideração seu flavor text, deixando claro que as estátuas se tratam de uma homenagem a um casal homossexual: “As histórias falam de dois governantes em disputa, cujas mortes foram celebradas e cujos monumentos simbolizaram o fim de suas guerras. Na verdade, eram dois amantes pacíficos cuja história se perdeu no tempo”.
A boa recepção da comunidade em relação a ambas as cartas parece ter sido a resposta necessária para que a Wizards of the Coast começasse a tratar o tema da representação LGBTQIA+ de forma mais visível e englobando outras minorias subrepresentadas (figura abaixo).

Em 2015, com a edição Destino Reescrito, a Wizards of the Coast se aproveitou dos contos publicados em seu site oficial para revelar que uma das protagonistas da edição, Alesha (figura acima), se tratava da primeira personagem transgênero do jogo. Essa informação aparece em uma passagem da narrativa escrita por James Wyatt (2015) onde a guerreira diz para seu clã “Eu sei quem eu sou. Eu não sou um menino. Eu sou Alesha, como minha vó antes de mim” para logo receber múrmuros de aprovação de outros guerreiros.
Já em 2016, com a edição Kaladesh, a empresa criou uma nova raça para o jogo chamada Aetherborn (traduzido como Etergênito): personagens humanoides vindos do Éter e que são caracterizados como gender fluid, ou seja, por vezes se identificando com o gênero feminino e por vezes com o masculino (Figura 8). Já a carta Kynaios and Tiro of Meletis, de Commander 2016 (figura acima), por sua vez, retrata tanto em seu nome e quanto em sua ilustração um casal homossexual. De forma sutil, porém evidente, a imagem mostra a relação de afeto dos dois personagens através de um toque na nuca. Ainda é possível ver ao fundo a construção das estátuas referidas na carta Guardians of Meletis (postada anteriormente). Por fim, o flavor text reforça a relação de união dos personagens: “Veja pelo que lutamos. Veja o que construímos juntos”.
Porém, essa evolução da representatividade LGBTQIA+ no Magic não veio sem percalços: no primeiro semestre de 2017 aconteceu uma polêmica envolvendo a representação de um possível romance lésbico entre duas das mais importantes personagens do jogo. No conto “Escrito na Parede” de Alison Luhrs (2017) as planeswalkers Chandra e Nissa tem uma conversa sobre seus sentimentos onde a primeira pergunta à segunda “Então… Amizade é o limite do que você se sente confortável no momento?”. Entretanto, menos de uma hora depois da publicação original do texto, houve uma atualização no site da Wizards of the Coast alterando esse trecho para “Então… Amizade?” atenuando a inferência de romance entre ambas as personagens.

Com a repercussão negativa dessa alteração o head designer Mark Rosewater (2017) precisou se justificar em seu tumblr “Histórias passam por edições resultando em múltiplas versões existentes. A versão errada foi postada e foi mudada com a edição apropriada quando percebido. Não houve desejo de mudar o conteúdo da cena”. Entretanto, o fato da fala em questão ter sido a única alteração entre ambos os textos, suscita questionamentos sobre a posição da Wizards of the Coast. Ainda sim, a afirmação de que a ideia não era de alterar a relação entre as duas personagens mantém possibilidade de que o romance entre as duas protagonistas seja concretizado no futuro.
Considerações
Em 2023 o jogo Magic: The Gathering irá fazer trinta anos. Nessas três décadas pudemos observar uma série de mudanças de posicionamento da Wizards of the Coast em relação a representação feminina e LGBTQIA+ em suas cartas e produções suplementares. É claro que ainda é gritante a subrepresentação pelas quais passam estes grupos frente a quase onipresença de representações de personagens masculinos cis heterossexuais. Do ponto de vista mercadológico o que se percebe é uma transição gradual e cautelosa de uma política de enfoque exclusivo no público consumidor primário (definido como jovens do sexo masculino) para uma lógica de englobar novos públicos – que agora podem se ver representados nas cartas do jogo, além de marcar o posicionamento da empresa em relação à essas minorias.
É lógico que conflitos advém dessas decisões no momento em que uma parte da comunidade (pequena, porém sonora) começa a desferir reclamações e posicionamentos intolerantes – algo similar com o que acontece em outros produtos de mídia como o cinema, os quadrinhos e os vídeo games. De forma similar ao que acontece com outras marcas, essa mudança de política na representatividade feminina e LGBTQIA+ parece estar tentando atender os anseios por representação desse público historicamente subrepresentado, porém de forma comedida buscando evitar afastar o público mais conservador. Também é válido ressaltar que mesmo essa mudança sendo morosa, ela ainda é brutalmente desigual, se mostrando muito mais rápida, por exemplo, no que se diz a visibilidade de personagens homossexuais cis do que a de personagens transgêneros.
Tal qual o público nerd viu no jogo uma forma de criar uma comunidade em cima de um produto com o qual se sente representado, é importante que isso se expanda para outros minorias ainda mais discriminadas. Porém, é vital ressaltar que como qualquer outro produto, o Magic: The Gathering responde a um fator mercadológico, necessitando da boa receptividade de seus consumidores, numa época em que estes se encontram cada vez mais ativos e comprometidos com as marcas (JENKINS, 2009: 49) para que as mudanças sejam implementadas de forma definitiva. Desta forma, não devemos olhar o caso do Magic como apenas a transição de política e de discurso de uma empresa, mas também da transformação de uma comunidade que tem papel ativo nesse processo.
Referências
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 2011
CAVOTTA, M. The Magic Style Guider (Part 1), Wizards of the Coast, Renton, 7 set, 2005.
CHASE, E. We keep a standard for Magic art to portrait strong female characters. Sexy is OK, submissive or damsels in distress is not. 17 fev, 2012 Twitter: @ElaineChase
LUHRS, A. The Writing on the Wall. Wizards of the Coast, Renton, 2017
JENKINS, H. Cultura da Convergência. 2. Ed. São Paulo: Aleph, 2009
ROSEWATER, M. Do you think the fact that there are almost twice…. Blogatog, Tumblr 05 nov, 2012
______. I know you’re not part of Creative, so you…. Blogatog, Tumblr 13 abr. 2017
SILVA, S. M. Evolução da identidade, estereótipo e imagem midiática da tribo urbana dos nerds. 10o Interprogramas de mestrado Faculdade Cásper Líbero. São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2015
TROOP, K. Building Towards a Dream , Part 2. Wizards of the Coast, Renton, 4 dez, 2013
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, p. 7-72, 2000
WYATT, J. The Truth of Names. Wizards of the Coast, Renton, 28 jan, 2015.