Crítica escrita por Victor de Almeida.

Sinopse: O ex-detetive de homicídios Roy Freeman (Russell Crowe) passa por um tratamento revolucionário para Alzheimer quando é chamado para reexaminar um brutal caso de seu passado. Intrigado e lutando para recuperar sua memória, Roy pede a ajuda de seu ex-parceiro (Tommy Flanagan) para retomar a investigação envolvendo um condenado no corredor da morte, que ele prendeu dez anos atrás e que alega inocência. À medida que novos elementos surgem, uma complexa teia de mentiras se revela, forçando Roy a enfrentar uma terrível realidade que muda o seu mundo para sempre.

Caro leitor, dependendo da atenção que você depositar no texto, toda crítica pode conter spoilers!

O CREPÚSCULO DOS DEUSES ou Adeus, Gladiador!

Era uma manhã de sábado, dos últimos meses do ano 2000, e meu pai me levara à locadora de nosso bairro para devolver as fitas rebobinadas assistidas e alugar outras novas – nosso passatempo de fim de semana favorito. Eu havia completado 10 anos, e meu pai me deixava escolher pelo menos um filme; mas naquele dia, tudo estava diferente. Metade da locadora estava apinhada por um único título, em um formato de caixinha fina – estranhei. Os donos da locadora, dois velhinhos simpáticos que nos recomendavam os últimos lançamentos, disseram que se tratava de uma nova tecnologia, o tal de devedê, e que todos os grandes filmes sairiam agora nesse formato. Nosso velho aparelho cassete – ou VHS, para aqueles que preferem as siglas – já não suportava mais a nova mídia; estava ultrapassado. Hoje, percebo que em breve todos ali estaríamos: meu pai, eu, a locadora, seus dois velhinhos simpáticos, e nosso passatempo. Era a virada do século, e a anunciação de que tudo aquilo que vivíamos aos sábados pela manhã, se acabaria para sempre. Mas isso não vem ao caso agora. O tal título, exposto aquele dia em abundância nas prateleiras da locadora, em caixinha fina, era “Gladiador”, de Ridley Scott. Aos 10 anos, eu fitava Russell Crowe como quem décadas antes fitara John Wayne ou Steve McQueen. Ele era o herói inalcançável, disposto a enfrentar o Império Romano na virada do século 20 para o 21.

Você, que está lendo essa crítica, talvez pense que me confundi e que em devaneios me desviei completamente do objetivo de meu texto. Talvez esteja certo. Mas é preciso que você compreenda a razão pela qual eu fui assistir ao primeiro filme de Adam Cooper na função de diretor – Russell Crowe está nele. E me perturba a ideia – talvez devesse perturbar a você também – de como o ator que interpretou Maximus nas férias de meio de ano dos anos 2000, há pelos menos uma década se mete nos projetos mais estapafúrdios de Hollywood. Não que “A Teia” seja um péssimo filme, e que “Gladiador” não tenha muitos problemas, mas é que eu esperava algo mais digno do crepúsculo da carreira de meu herói de infância. Em meu egoísmo, alimento a expectativa de que ele volte ao rumo dos grandes projetos, como fez De Niro, e que ao menos ele esteja se divertindo mais do que eu enquanto isso não acontece.

 

ENFIM, A CRÍTICA

Roy Freeman é um ex-detetive de homicídios que sofre do mal de Alzheimer. Enquanto se recupera de um procedimento cirúrgico inovador que promete reconstruir as conexões neurais e, portanto, fazer regredir a doença, Roy é levado a revisitar um antigo caso de assassinato do qual nada se lembra.

A premissa é instigante e, juntamente com o apelo de Crowe como o protagonista, deve ser capaz de levar as pessoas às salas de cinema. O problema é que o desenvolvimento do filme é confuso, o que é surpreendente dada à experiência de Cooper como roteirista. Sim, eu sei que o filme é baseado no best-seller “The Book of Mirrors” de E. O. Chirovici, publicado em 2017. Não li o livro, e mesmo que o tivesse, não teria capacidade alguma de discutir seu potencial literário. Portanto, cabe a mim basear minha análise no material fílmico, na peça artística que se apresenta, isolada de sua inspiração original. O filme aborda uma quantidade considerável de temáticas, sem jamais aprofundar em nenhuma delas. Em seus 110 minutos de duração, o longa “passeia” por doenças degenerativas, racismo, sistema prisional, alcoolismo, misoginia, pesquisa científica, traumas de guerra, violência doméstica e relacionamento abusivo. E sim, eu provavelmente esqueci de mais algum tópico. É como se o filme se acanhasse de suas convenções de gênero – sem qualquer motivo – e se “dopasse” de questões que permeiam nosso tempo, mas que em nada o ajudam. A trama é propositalmente confusa para esconder a simplicidade do que se apresenta.

Deixando brevemente de lado o conteúdo, vamos à forma. A decupagem, mais de uma vez, finaliza uma cena com um único personagem em quadro por um segundo ou dois, como se nós, espectadores, pudéssemos aproveitar desse curto espaço de tempo para compartilhar de seus anseios e decifrar seus segredos. Escolha honesta, e pouco importa se não é original. Mas a questão é que se torna banal quando logo percebemos que não existem anseios que não tivessem sido expostos antes em diálogo, e que seus segredos estão escondidos de quase ninguém. É constrangedor a maneira como a direção expões os atores. São todos eles experientes e hábeis, mas quase sempre entregue aos leões na forma de exposições baratas. Dado momento, durante uma cena em que serve um almoço, personagem A diz à personagem B que este deve abandonar seu relacionamento amoroso. Mas B sabe que A é seu rival e, portanto, parte interessada neste término. E nós, público, também sabemos de tudo. O que acontece ali, então, é um teatro encenado para ninguém; uma diluição de um conflito que poderia ter sido fundamental para a obra. Tudo em prol de uma estilização hamletiana enquanto um de seus atores corta um frango.

A iluminação do filme é sombria, o que não poderia ser diferente. Afinal, é este um suspense. Mas sem medo de me repetir, a penumbra que permeia os seus personagens nada esconde. O grande motivador do enredo – saber se o homem acusado por aquele assassinato no passado é ou não inocente – é resolvido em uma rápida montagem de planos, como se nada fosse. Como se o filme cumprisse ali uma burocracia e argumentasse de uma vez por todas que o fim jamais justificaria um meio que se acha tão importante e autossuficiente.

Mas talvez “A Teia” não seja um desastre. Talvez ela seja exatamente o que o leitor procura. Existe de fato uma intrincada investigação em curso, comandada por um anti-herói isolado, e que busca na bebida a solução para o seu problema de memória – sim, de memória. Há uma femme fatale, um fiel escudeiro carismático e explosivo, e um vilão tão refinado quanto o Rasputin da animação de 1997, “Anastasia”. Talvez, e espero sem ironia alguma, isso seja o suficiente para lotar as salas de cinema.

 

O GATO DE CHESHIRE

Sim caro leitor, há um baita plot twist nesse filme. Ou, para os mais chegados à nossa língua, uma reviravolta daquelas. Mas fique tranquilo, eu não vou lhe contar nada a respeito! O que não significa que eu não vá pôr em crise a necessidade da mesma.

Os mais apaixonados defenderão que todo bom suspense deve apresentar um plot twist. Justo. Mas eu, como um cético que sou, direi: será mesmo? Afinal, há banalidade em uma trama sem reviravoltas e surpresas. E qual o problema disso? Há banalidade no cotidiano, e nem por isso ele deixa de ser especial. Se a jornada de Roy Freeman em busca pela verdade fosse de fato tão transformadora assim, o final, apressado e desengonçado, não precisaria ser sutil como um trem descarrilado. É através da potência que o filme busca seu legado, mas é justamente a permanência sua ruína.

Lembro-me do gato das histórias de Alice no país de Hollywood.

“Se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve.”

E no caminho qualquer, perdeu-se.

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