Crítica escrita por Alexandre Berçott.
Sinopse: Rio de Janeiro, 1964. Após o fim de uma paixão, G.H., escultora da elite de Copacabana, decide arrumar seu apartamento, começando pelo quarto de serviço. No dia anterior, a empregada se despedira. No quarto, G.H. se depara com uma enorme barata que revela seu próprio horror diante do mundo, reflexo de uma sociedade repleta de preconceitos contra os seres que elege como subalternos. Diante do inseto, G.H. vive sua via-crúcis existencial. A experiência narra a perda de sua identidade e a faz questionar todas as convenções sociais que aprisionam o feminino até os dias de hoje. Com direção de Luiz Fernando Carvalho, A Paixão segundo G.H. estreia no dia 11 de abril de 2024 nos cinemas brasileiros.
“Quem é eu?”. O que Clarice chama de “perda da terceira perna” em seu romance A PAIXÃO SEGUNDO G.H. é a gênese de todo o texto, a gênese da própria existência de G.H. Em sua obra, a evocação do sentido de eu é esgarçada ao limite — o eu-oco, o corpo-oco. E, justamente por se tratar de um texto que é, muitas vezes, insólito — no sentido do fluxo de consciência —, considero adaptar Clarice Lispector para o cinema uma tarefa corajosa e dificílima. E é o que Luiz Fernando Carvalho faz.
Em diversos casos de adaptações literárias para o cinema, há uma cisão entre um e outro, o que provoca, em muitas ocasiões, discussões e comparações desnecessárias. Neste caso, o filme de Luiz Fernando parece se embolar com o texto de Clarice, de forma consciente e com tal amor ao texto. Há entrega e cuidado, mas deixarei para desenvolver esse ponto mais adiante. Por agora, quero escrever do momento em que o filme surge. De acordo com o próprio diretor, G.H. passa a fazer parte de seu trabalho já em LAVOURA ARCAICA, elucidando e dando dimensão sonora à voz da personagem Ana, defendida por Simone Spoladore. Após alguns anos, então, ele inicia o processo de construção do filme e as gravações ocorrem em 2018, momento em que a obra de Clarice já é consolidada no meio editorial brasileiro, dois anos antes das homenagens e edições comemorativas aos seus 100 anos. Portanto, tal obra reflete um momento de exaltação à autora — no qual surge, também, O LIVRO DOS PRAZERES, de Marcela Lordy —, o que nos leva ao clássico da artista não tão reconhecida e congratulada em vida, como tantas outras — Hilda Hilst e Ana C., por exemplo. Esse processo de resgate é, pois, fundamental para, além da memória, a perduração e existência de sua obra, ao que o longa potencializa, muito por se tratar de uma linguagem considerada mais “digestiva”. Entretanto, a direção não faz tantas concessões e conduz uma G.H. tenra e sólida em sua desorganização.
O rosto-imagem da protagonista, interpretada de modo magistral por Maria Fernanda Cândido, é a centralização da anatomia do próprio filme, mas também da existência em si de G.H., que, mediante à queda de sua linguagem intelectual, precisa experimentar o corpo. A forma do filme, que começa com uma imagem em completa distorção, enquadra o rosto em comparação à existência de um rosto — com closes e enquadramentos, além de belos, eficientes. Explico: não só por conta da proporção e do fato da obra ter sido gravada em película — o que rende um momento transbordante a lá GOSTO DE CEREJA —, há uma intimidade brutal da imagem, uma experimentação que, inclusive, poderia ter sido mais ousada. Essa “experimentação” traz, para o texto de Clarice, o cinema — para o quê o cinema pode jogar luz e criar. E, nesse momento, a imagem de Maria Fernanda Cândido é delicada e cruel e forte, concatenando a presença do íntimo necessário de G.H. De fato, a escolha da atriz fora extremamente acertada. Há devoção e entrega que remetem à linguagem de Clarice, como que em eterna queda e concentração na respiração — mas mais que isso. Essa devoção vai para a tela com paixão, é captada na forma como o texto é dito. E, então, o mundo inteiro tem a força de um inferno quando G.H. ergue suas mãos e pede a nossa para seguir. Existe a entrega necessária. Existe o medo? Sobretudo amor. Tenho a impressão de que, para colocar um texto de Clarice na tela, é preciso amor. E há. Amor numa elevação quase ridícula: é um tal amor, que, de tão sincero e dado e explícito e implorado, parece ridículo aos nossos olhos contemporâneos. É mais que o amor romântico: é o amor em si. E, por isso, o texto da forma como é colocado.
Quando pensava em como seria o filme, a principal questão era a linguagem e como se lidaria com o texto. Em geral, tende-se a alcunhar, ironicamente, de “audiolivro” um filme que leva muitas partes do texto original para as telas. Entretanto, trata-se de um texto de Clarice, que não escreve situações dotadas de ações: a coisa acontece dentro de. De quê? E, em se tratando de A PAIXÃO SEGUNDO G.H., é um caso ainda mais específico, onde há silêncios enormes em momentos indizíveis: tudo é silêncio e a palavra escrita surge como força primeira — trata-se de “literatura”. Há a ciência disso por parte do filme e o uso da palavra falada com primazia, que concentra toda a sua força, de modo que ela exista como força segunda. O que ocorre no filme é a desorganização e organização do texto — muito bem feita por Melina Dalboni —, que aparece de forma não-linear, o que solidifica ainda mais a obra. Entretanto, não posso deixar de escrever sobre uma quebra de ritmo num certo período no meio do filme, quando tudo fica, de certo modo, morno, como a espera de algo que nunca chega — mas, após a espera cansativa, finalmente vem.
Volto à mão. A mão que segura e segue junto a ela. “Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria”, escreve Clarice. E, nesse momento, quem era eu na sala de cinema mediante à minha própria mediocridade? Eu era dissolvido junto à G.H. e sua inabilidade com apenas duas pernas, pois eu também perdia. O quê? E eu sei? Perdia. No prefácio do livro, Clarice escreve que a personagem não tira nada de ninguém e que, inclusive, lhe dera uma alegria difícil — “mas chama-se alegria”. Creio que o filme, diferente do que aponta a escritora em relação ao romance, tira alguma coisa, mas essa alegria difícil ainda existe. Acrescento, pois, uma percepção de nossa própria anemia e um desconforto sonoro. Primeiro, com a epifania de G.H., somos colocados diante de nossa falta de coordenação existencial, de nossa dificuldade com a linguagem do próprio eu, com o enfretamento da imagem em si, inteira. Vemos a nudez de alguém que perdera as cascas socias e do mundo e de gente: a animalização que Clarice propõe. Precisamos ser um tripé, carecemos da terceira perna que é o mundo, a imposição de um modo de vida, ao qual nos acostumamos e, caso fora dessa forma, pediríamos, como G.H. pede, para que nos prendam. E aqui se concentra boa parte da força política tanto do livro quanto do longa, sobretudo por se tratar da existência de uma personagem mulher escrita por uma mulher — mas, ainda, com um recorte social e uma questão racial não tão bem desenvolvida, que abordarei mais abaixo. Além disso, o som do filme — talvez o elemento técnico mais impressionante da obra — é conduzido de maneira a ser um espectro da protagonista, como quando ela, na janela, fuma e, quando vemos a parte de fora, há um som organizado e, dentro, uma desorganização completa — o que, num âmbito naturalista, chega a ser contraditório. Há uma decupagem cuidadosa e o trabalho de som é, sem dúvidas, um dos protagonistas, criando uma atmosfera singular e dando tonalidades de horror ao calvário de G.H. E, fora o leitmotiv do telefone a tocar, angustiante e preciso, um dos momentos em que esse horror se enlaça no filme é quando, no quarto de Janair, interpretada por Samira Nancassa — excelente e subaproveitada —, a protagonista arranha, com violência, um desenho de aspecto primitivo numa das paredes. Junto a uma montagem concisa e eficiente, o som constrói um épico íntimo, que chegou a me afetar corporalmente, tamanho o incômodo. Tal desenho aparece logo quando G.H. adentra o quarto, que ela imagina sujo e estava, na verdade, limpíssimo e seria palco de sua queda-ascensão, onde conviviam barata e Janair: o quarto da empregada.
A questão socio-racial fora noticiada como um aspecto do livro que o filme elevaria a um outro nível. Entretanto, a personagem de Janair é mal aproveitada e surge em momentos — diga-se de passagem, quase como uma assombração, com partes do corpo, sombra, etc., salvo um ou outro plano — em momentos de horror, como uma figura ameaçadora à G.H, o que parece interessante e com potencial, mas é algo pouco explorado e sua imagem ainda é rasa e negligenciada — quando o todo é a existência de G.H. a partir de Janair, do quarto e de sua esfera sociopolítica existencial. Existe, talvez, um receio de uma leitura mais analítica e crítica da obra de Clarice, que, por mais atemporal que seja, localiza-se num espaço-tempo real e bem definido. Mas mais que isso: pois Janair pode fazer ruir todo o mundo de cá. Há a tentativa, o uso de simbologias, como a bandeira do Brasil na porta do quarto e o próprio desenho, assustador e algoz de G.H., mas não se ousa a ir fundo. Janair não pulsa: enfeita a diegese do filme.
Tal diegese conta com uma fotografia delicada e crua, que evidencia o despojamento de G.H. perante o público e a si mesma. Há a exploração das texturas: argila, tecido leve, água, arranhões, barata… o fato de a personagem ser uma escultora promove a possibilidade do trabalho imagético se debruçar sobre tal fator. E ele o faz. As mãos de G.H. em contato com seu ofício e a relação dialética proposta pelo filme concatenam e caracterizam a personagem, que, inclusive, é localizada espacial e temporalmente por uma direção de arte competente, relacionando-se muito bem com algumas músicas da trilha sonora, como SOLITUDE, de Billie Holiday. Embora o texto e a “história” do filme tenham aspetos atemporais, os cenários, figurinos e até mesmo a forma como G.H. anda, nos coloca na década de 1960, numa elite carioca, elegante e isolada da tragédia social brasileira, que tem tempo para sofrer crises existenciais, pois não tem fome.
E, após um momento calmo e dotado de um prelúdio do caos, G.H. diz: a barata. Não é, mas se tornou a questão central por alguma parte do público — e talvez por esta crítica, que reserva um parágrafo apenas a ela —, que não podia esperar para ver Maria Fernanda Cândido comer uma barata — ela, com mais tempo de tela que Janair. Mas essa parte saíra decepcionada e pode ter achado um absurdo tamanha a falta de ousadia do filme, que não espetaculariza o momento-barata como essa parte dos espectadores, mas o faz de algum modo, vide o prelúdio que comentei. Mas isso não é o mais importante. O que é a barata? A barata é O Outro, resistente há milênios e espelho de G.H., que, com a montagem, cospe a si mesma, rebatendo-se na parede, apavorada e em êxtase. Luiz Fernando Carvalho filma, com interesse cientifico, a barata e mais: o corpo da barata. O corpo e a movimentação do corpo. Às vezes é quase um raio-x, o negativo do filme, o branco que sai da barata morta — o que provocou a saída de algumas pessoas da sessão. A barata é visualmente dita. Com força e entrega e coragem, mas também com a evocação da relação humano-bicho, de dominação e ignorância — no sentido literal — que existe.
Por fim, retorno a um aspecto fundamental da obra: o corpo de G.H. Há um trabalho corporal visível na atuação de Maria Fernanda Cândido — trabalho que é, por vezes, fincado no teatral. A questão corpórea é parte fundamental que envolve a despersonalização da personagem, pois agora ela precisa viver o corpo, que é, desde o início de tudo e para sempre, primitivo — tudo o que envolve Janair. Tal primitividade do corpo carrega consigo um horror imenso, que é o debruçar-se em si mesma, o tato, a percepção aguda da coisa. G.H. é obrigada a existir com o corpo — no íntimo da paixão. E, existindo com o corpo, ela vê o mundo. Vê o mundo, porque, há milênios, do alto de sua cobertura, ela parasitava o topo e engolia, com fome voraz, o mundo. Pois que ela é engolida e se cospe e se morre e se perde. E então G.H. vai hoje, não amanhã: hoje.
A PAIXÃO SEGUNDO G.H. é um risco bonito e, como disse Luiz Fernando Carvalho no Festival do Rio, a continuação da questão e não uma resposta. É um filme sincero e está, como G.H., procurando. Eu também.