Crítica escrita por Renata Serra.

Sinopse: Depois de demitir sua empregada, G. H. precisa arrumar o quarto de serviço. Enquanto limpa, ela reflete sobre sua vida e a possibilidade de ter perdido sua essência. Adaptado da obra de Clarice Lispector.

Considerar uma obra não adaptável é tentar ignorar as oportunidades que o cinema oferece em termos de imagem e som. Nas mãos certas, até o mais abstrato dos livros se torna um belo filme. O que, em A Paixão Segundo G.H., não é o caso. Baseado na obra homônima de Clarice Lispector, o filme acompanha G.H., interpretada por Maria Fernanda Cândido, uma mulher branca de classe alta que, um dia após demitir sua empregada, decide limpar sua casa, começando pelo quarto antes ocupado por ela. A partir disso, tendo como momento definitivo o encontro da personagem com uma barata a quem mata, ela entra em uma crise existencial e parte a questionar sua humanidade, em um momento de profunda transformação e descoberta pessoal.

O filme gira em torno desse evento aparentemente trivial, mas que serve como ponto de partida para uma jornada interior intensa e perturbadora. A narrativa é fragmentada, com G.H. alternando entre memórias de sua vida passada, reflexões filosóficas e descrições detalhadas de suas sensações físicas e mentais. Em seus 124 minutos de duração, Luiz Fernando Carvalho tenta construir uma projeção imagética da introspecção de G.H. antes criada por Lispector, o que resulta em quase 124 minutos de um monólogo interior, maçante e complicado. A personagem reflete sobre a totalidade de sua vida e o que a faz ser, pensa na empregada demitida, lembra de um antigo amor tudo isso no mesmo espaço confinante, da manhã até a noite. Assim, o filme se sustenta em um roteiro, ou melhor se dizendo, no livro no qual é baseado.

Quando se lembra das oportunidades em som e imagem que um filme pode oferecer, A Paixão Segundo G.H. constrói uma interessante cenografia do espaço da personagem. A sala, a cozinha e o restante do apartamento representam a imagem contida da protagonista, cheia de coisas, mas sempre organizado, entrando em conflito com o único e pequeno espaço reservado para a empregada: simples e com poucos móveis, mas quebrando a imagem construída do apartamento com desenhos feitos a mão na parede, o que é um dos primeiros fatores a despertar sua tensão existencial.

Ainda em termos de mise-en-scène, a fotografia do filme é contida, com alguns planos que remetem ao tratamento da câmera com a sofredora Joana D’Arc na obra de Carl Dreyer (1928). Alguns planos são demasiadamente longos, oferecendo uma dramaticidade exagerada para a construção do filme, sem se sustentar em sutilidades da narrativa, trabalhando com uma montagem confusa e desinteressante. Quando silenciado do incessante monólogo da protagonista, o filme traz uma trilha sonora aflitiva e tormentosa, que gera uma incômoda sensação. Apesar de pertinente, de aproximar o espectador do tormento de G.H., o som, ao tentar garantir o entendimento da emoção conflituosa da personagem, remete muito obviamente a filmes de terror. 

A personagem de G.H. é complexa e multifacetada, oscilando entre o desespero e a esperança, a repulsa e a redenção. O filme trabalha com o grotesco de forma interessante: a via crucis de G.H., definida no momento em que decide provar da criatura que acabara de matar, não aparece, de forma direta, em tela. A vemos vomitar, vemos a barata e a gosma que sai dela resultante do esmagamento em planos detalhe, em negativo, nos poucos momentos de silêncio que o filme carrega. Vemos G.H. em discórdia, em sofrimento, contemplada com a grande e permanente realização de uma verdade sobre a vida revelada para ela depois de provar do proibido, como a própria personagem classifica. Além disso, a atuação de Maria Fernanda Cândido é um fator interessante apresentado em tela. Sua representação carrega o peso de um roteiro inteiro nas costas, estando presente praticamente durante todo o filme, mas, em momentos como o encontro de G.H. com os desenhos da antiga empregada e o derrubamento de um cigarro pela metade, torna-se dramática ao extremo.

A Paixão Segundo G.H. é um filme bastante expositivo e monótono, mas com qualidades únicas e separadas que o compõem, que tenta adaptar Clarice Lispector de forma diferente e falha.

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