Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do Festival É Tudo Verdade 2024.
Sinopse: Como vão as mulheres no Brasil?“. É essa pergunta intrigante, feita por uma jornalista italiana, que Helena Solberg tenta responder através de elementos dos seus filmes, dos anos 60 até hoje.
Beatrice, jornalista italiana, descobre rolos de A Entrevista (1966), dirigido por Helena Solberg, em uma escola. Descobre, ainda, que o rolo havia chegado no país pois havia sido enviado para o Festival dei Popoli, um dos principais festivais de documentários da Itália. Ao contatar Solberg, agora com 85 anos, Beatrice pergunta “Como vão as mulheres no Brasil?”. É fascinante como uma pequena pergunta — mas nem por isso simples, longe disso — pode culminar na realização de um filme. Não só isso, mas também provocar uma revisão crítica de toda uma carreira e uma jornada em busca de novos conhecimentos. Solberg, em Um Filme para Beatrice (2024), tendo acumulado experiências de diversas gerações e culturas, volta-se para seu trabalho ao longo das décadas e à contemporaneidade, incitando perguntas sobre o que é ser mulher hoje, o que era no passado e o que será no futuro.
O filme estrutura-se na alternância entre trechos de seus filmes em ordem cronológica, com a narração de Solberg, relembrando bastidores e percepções da época, e filmagens recentes nas quais ela conversa com mulheres diversas, refletindo, majoritariamente, sobre questões contemporâneas de gênero. Para reforçar essa distinção, a edição, por vezes, ainda simula efeitos de flicker de filme queimado e de obturador, um trabalho interessante que auxilia a dinamizar as tantas imagens de arquivo. Há, contudo, alguns vícios questionáveis nesse trabalho, como quando, sempre que o filme volta a mostrar as filmagens recentes, aparece o letreiro informando que o ano é 2023, uma e outra vez. Essa repetividade excessiva parece mero metodismo barato, já que, no conjunto da obra, isso não faz diferença alguma. No fim das contas, esses são apenas alguns detalhes que poderiam passar despercebidos, mas, pelo fato da montagem em si não ter grandes disrupções, esses pontos são realçados.
Todavia, há sim um momento muito interessante na montagem — e ocorre justamente no segmento de A Entrevista. Nesse curta incontornável do documentarismo brasileiro, há um momento em que Glória, cunhada de Solberg, ao ser entrevistada, discorre sobre compreender suas ambiguidades como mulher, no limiar entre o conservadorismo e os novos valores possíveis de uma geração contraposta ao patriarcado, mas há um corte seco no meio de sua fala para dar lugar a fotos da Marcha da Família com Deus pela liberdade, movimento que, a grosso modo, foi encabeçado por mulheres opositoras à tal ameaça comunista. O mesmo trecho de Glória é exibido em Um Filme Para Beatrice e o corte ocorre exatamente no mesmo lugar. Claro que o efeito produzido difere entre as obras: no primeiro caso, é possível debater que a montagem finca uma responsabilidade política a esse discurso, já que a silencia abruptamente para dar lugar à exibição daquelas manifestações, mas, no segundo caso, parece ser apenas uma referência sutil e cômica a esse corte. O discurso de Glória, cinquenta anos depois, mais uma vez é vetado por Solberg.
Inclusive, esse vai e vem entre o passado e o presente é bem-vindo para reforçar o quanto uma sociedade é capaz de debater seus valores constantemente. Os dilemas de gênero apresentados nos filmes de Solberg do século XX — que, na época, eram da mais alta disrupção social — podem parecer, hoje, simples de assimilar intelectualmente. Porém, ao chocar os dilemas dessa época com a nossa — em que as pautas, é claro, aumentaram de escala —, já é perceptível que, da maneira como o mundo se comporta, ainda há a necessidade de debates contínuos e, por muitas vezes, ainda com a presença da religião como um dos pilares da divergência. A própria Solberg, mesmo que tenha trabalhado por décadas para levantar discussões sobre a mulher por meio de suas criações artísticas, na humildade de uma pessoa sábia, dispõe-se a ouvir a nova geração, como, dentre as novas entrevistadas, Anielle Franco, mulher negra, Helena Vieira, mulher trans, e Rita von Hunty, drag queen. Não fica difícil de imaginar, portanto, como menciona Heloísa Teixeira, que as próximas gerações vão agir de maneiras impensáveis na geração anterior, já que depende das mudanças propostas pela geração atual.
Um Filme Para Beatrice, além de propor todos esses questionamentos, ainda é um deleite por fazer perceber a unicidade do trabalho de uma vida inteira. Não são filmes feitos pensados para se relacionar, mas a coesão autoral nessa filmografia fica evidente nas mãos de Solberg. Afinal, qual melhor convite para experienciar a história senão por meio do documentário?