Crítica escrita por Janaína Schequenne.
Sinopse: A fantástica evolução de Bella Baxter, uma jovem que é trazida de volta à vida pelo brilhante e pouco ortodoxo cientista Dr. Godwin Baxter. Sob a proteção de Baxter, Bella está ansiosa para aprender. Desejando conhecer mais sobre o mundo, foge com Duncan Wedderburn, um advogado astuto e debochado, para uma aventura por vários continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella se firma em seu propósito de defender a igualdade e a libertação.
“Que asco e que alegria!”, essa foi a primeira coisa dita ao final da sessão. Essa seria uma boa definição para o mix de emoções contraditórias que o filme causa ao espectador. Uma bizarrice sofisticada que conta a história de uma fábula estranha, resultado do uso de uma série de performances, estéticas e sons que raramente vão se encontrar de novo sem que se pareça uma cópia desta obra. Com isso e com as muitas características citadas em poucas linhas, é fácil afirmar que Pobres Criaturas é um filme único.
Tal qual O Lagosta e A Favorita, esse é um filme de Yorgo Lanthimos, tem aquele tom bizarro desde sua premissa, sendo provocativo sem jamais ser superficial. O diretor demonstra uma riqueza técnica e uma boa capacidade de trazer questões um tanto filosóficas de maneira pouco entediante e com um bom domínio de ritmo. A estética é algo que sempre se sobressai nos filmes do diretor, que, ao invés de buscar que seus filmes se encaixem totalmente no seu gosto/padrão estético, é como se cada filme tivesse a sua própria “identidade visual”, como se cada história se apresentasse à sua maneira. Afinal, o diretor vai além da imagem: sua filmografia demonstra que seu traço autoral é baseado exatamente no tom bizarro e na proposta de suas narrativas, isto é, o provocar é inerente à sua autoralidade.
O filme é um quadro com vida própria, recheado de referências artísticas modernas, desde seu roteiro aos “botões de seus figurinos”. Nenhuma cena, objeto ou ângulo é vazio de significado: desde o momento em que a protagonista deixa de usar saias e passa a usar short, até o momento em que as cores mudam em tela, indo do preto e branco ao colorido de uma vida em descoberta durante uma aventura. E essa tal aventura vale cada minuto da atenção do espectador.
Numa clara alusão a Frankenstein, adaptação do livro homônimo de Alasdair Gray, a jovem Bella Baxter foi trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter. Em sua nova vida, Bella está desenvolvendo rápido sua fala, seus pensamentos, seus movimentos e ações. Portanto, o Dr. Baxter vê em sua criatura a possibilidade de ampliar seu estudo convidando um de seus estudantes para ajudá-lo com a pesquisa, isto é, acompanhando o desenvolvimento de Bella. Esse contato faz com que Bella sinta vontade de conhecer mais o mundo, de conhecer outras pessoas, de correr atrás de sua liberdade e atender ao seu DESEJO de viver.
Antes de ir ao cinema, a expectativa seria de ver um filme extremamente artístico, talvez difícil de acompanhar. Mas, na verdade, é um filme que pode arrancar boas risadas. Ao final, a experiência dá aquela sensação de buscar palavras para tudo que foi visto; é, de fato, um mix de emoções e provocações estéticas e morais. O espectador inicia a sessão rindo de uma comédia estranha e termina pensando em sua própria liberdade e no quanto deve se preocupar com as regras sociais, mas ainda se divertindo com um afiado humor que segue até o final do filme. Além disso, o filme é principalmente sobre uma jornada de autodescoberta, que instiga a importância de se permitir viver, sentir e reagir.
Há uma contradição importante de ser pontuada, que foi sobre a acusação de “Male Gaze”, quer dizer, de privilegiar o ponto de vista masculino, devido às inúmeras cenas de nudez feminina. A nudez incomoda – e esse é um fenômeno social a ser analisado antropologicamente – mas, nesse caso, também se trata de um questionamento importante no sentido de evitar a exploração da imagem feminina em Hollywood.
De certa maneira, a nudez não incomoda em algumas cenas – quem for assistir o filme, irá entender que, em alguns momentos, é complicado, até por empatia à personagem. Por outra perspectiva, sobre a atuação de Emma Stone, circula nas redes um vídeo da própria atriz, em conversa com Olivia Colman, no qual ela rebate essa acusação, defendendo que, como produtora e como atriz, também foi sua escolha performar a personagem daquela maneira; e que, na verdade, ela não foi submetida às vontades de um diretor perverso, pelo contrário, ocupava um espaço de liderança e tinha voz ativa no filme. De uma maneira ou de outra, é interessante ver como a nudez (e a liberdade) feminina incomoda e se torna preocupante, até na melhor das intenções, o que dialoga muito com a temática do filme: da mesma forma que chocou os personagens, choca o público.
Em seus aspectos técnicos, o filme é deslumbrante. Não há muito o que dizer, é muito inteligente em todas as suas escolhas. O mundo muda de cor, desde o “nascimento” ao “amadurecimento” de Bella; é perceptível o desenvolvimento de sua maturidade a partir da maneira como enxergamos o mundo: em certos momentos é mais infantil e mais colorido, em outros, ele se torna mais cinza e soturno. O uso da lente olho de peixe é excelente, cumpre uma inteligente função técnica, mas também parece ter uma intenção narrativa em seu uso. A lente amplia a janela da imagem e, em alguns momentos específicos, parece intensificar uma visão externa sobre Bella. Por outro lado, há uma leve sensação do uso dessa ferramenta com a intenção de intensificar o clima bizarro do filme. A arte é deslumbrante, traz a esse mundo exatamente aquilo que se parece uma reimaginação de um contexto histórico de desenvolvimento tecnológico e, por mais que saibamos que no contexto da revolução científica e industrial não existiam bondes voadores, é onde o filme também estabelece seu tom fantástico e fabular.
O roteiro é excelente em trazer uma comédia escrachada e até física, ao mesmo tempo em que diálogos rebuscados e cheios de genialidade acontecem numa linguagem simples e palatável. Discussões filosóficas, existencialistas e niilistas acontecem com praticamente todos os personagens que esbarram com Bella Baxter. É uma jornada de crescimento e de conhecimento, com a qual qualquer pessoa pode se relacionar, mas, principalmente, qualquer mulher pode se identificar.
O grande trunfo desse roteiro adaptado está em trazer uma versão feminina de Frankenstein. Além de trazer camadas sobre relações, descobertas, pensamentos; para o espectador, a violência parece mais brutal e a inocência é mais convincente, pois temos consciência de todas as violências que aquela mulher está passando ou vivendo sem saber, o que causa ASCO. Mas sua reação a todos os contextos, o carisma da personagem, sua perseverança em se enriquecer e se engrandecer a cada nova situação, independente do que aconteça, independente de onde a coloquem, faz com que se sinta uma ALEGRIA por ela ter se tornado mais forte e poderosa depois de tudo que vivenciou.
É preciso pontuar o quanto a ingenuidade da personagem nos cativa, devido à incrível atuação de Emma Stone, que dá trejeitos infantis e desajeitados à personagem. O mais impressionante na conexão dessa performance com a história da personagem é que, em alguns momentos, o espectador se pega sentindo aquilo que a personagem não sente ou não se importa, isto é, levamos conosco a consciência de nossa moral social para se relacionar com os apuros que passa a personagem. Enquanto ela prefere experimentar, seja por prazer ou necessidade, nós, espectadores, passamos mais tempo questionando suas ações e o quão degradante podem ser as situações na qual se coloca.
Então, o filme provoca tanto o espectador, como também os personagens com os quais a protagonista convive; nos cabe fazer o mesmo que alguns deles: torcer para que tudo dê certo para Bella, nos relacionarmos com suas dores, agonias, sentimos asco e alegria; e, no final, o importante é acompanhar e crescer com ela nessa aventura, independente de saber como começa ou como termina.