Crítica escrita por Helena Zimbrão
Dias Perfeitos é o mais novo longa-metragem do cineasta alemão Wim Wenders. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, a coprodução Japão/Alemanha teve sua motivação a partir de um convite feito à Wenders para que ele fosse a Tóquio conhecer o projeto Tokyo Toilet. O projeto reuniu dezesseis criadores para redesenharem uma série de banheiros públicos em Shibuya – uma região da metrópole japonesa marcada por grandes centros comerciais, financeiros e tecnológicos. Não à toa, o filme não economiza nas cenas em que a inovação e a arquitetura desses banheiros são enaltecidas – simplesmente belíssima a sequência em que o personagem principal é filmado por detrás das paredes translúcidas e coloridas de um desses toaletes; Wim Wenders e o diretor de fotografia Franz Lustig nos mostrando como domínio sobre luz e câmera é capaz de fazer muito com pouco!
Dias Perfeitos acompanha a rotina de Hirayama, um homem de meia idade que trabalha para o Tokyo Toilet como funcionário de limpeza dos sanitários – e que, graças às ironias do capitalismo, vive em um apartamento tão pequeno que mal possui banheiro! O ator Kōji Yakusho faz um trabalho brilhante ao interpretar esse personagem, entregando-lhe gestos e expressões tão adoráveis a ponto de não precisar dizer nada para que simpatizemos com ele. Hirayama é um homem de pouquíssimas palavras; sua jornada ao longo da trama se desenvolve mais pelo que ele faz do que pelo que ele diz. Assistimos Hirayama repetir seus hábitos rotineiros dia após dia, não de forma enfadonha, mas pelo contrário: o encantamento que Hirayama possui frente às surpresas e detalhes escondidos na mesmice do cotidiano é o que nos aproxima desse personagem e nos faz compreender que a paixão pelo cotidiano é também uma forma de sobrevivência.
“Da próxima vez é da próxima vez. O agora é agora”, é a filosofia que Hirayama ensina à Niko, sua sobrinha. A valorização do tempo presente é certamente uma máxima do filme. Seja pelo prazer genuíno de um banho e uma refeição após um dia de trabalho, pelas divertidas surpresas causadas por encontros fortuitos com desconhecidos ou pelo simples hábito de apreciar a beleza do céu, Dias Perfeitos nos faz refletir sobre como nossos costumes cotidianos determinam a forma como levamos a vida. Aquilo que repetimos todos os dias é o que realmente significa a maneira como vivemos, é o que nos define enfim.
Hirayama é obcecado pelo misterioso e poético jogo que existe entre luzes e sombras. Não importa se ele está limpando banheiros, em sua pausa de almoço ou em momentos de lazer, Hirayama sempre se permite parar e observar a beleza que reside nas luzes, sombras, reflexos e contornos à sua volta. O protagonista carrega consigo uma câmera analógica, com a qual ele fotografa essas belas imagens que se apresentam diante de seus olhos atentos – e que poderiam passar despercebidas àqueles que vivem às pressas. Com sua câmera, ele captura especialmente o contorno da copa de uma mesma árvore dia após dia, afinal, a cada vez ele descobre um quadro diferente nessa mesma paisagem. A obsessão de Hirayama pelas sombras é tamanha que ele sonha com elas todas as noites e aqui, o filme novamente nos mostra como é possível fazer muito com pouco: o que as cenas dos sonhos de Hirayama têm de simples, elas também têm de belas e nos convocam novamente ao exercício de contemplação dos detalhes – praticado por Hirayama até mesmo enquanto dorme.
O contato com a arte é costumeiro para Hirayama, que além de fotografar, é um ávido leitor e apreciador de música. Seus livros comprados em sebo e sua coleção de fitas cassetes reforçam sua personalidade um tanto quanto vintage, mas sem cair numa caricatura saudosista do tipo “bom mesmo era na minha época”. Os hábitos analógicos de Hirayama têm a função de frisar seu apreço e respeito pelo tempo das coisas: a espera pela revelação de um filme fotográfico, a minuciosa escolha de uma nova leitura e a peculiaridade do som de uma fita cassete.
A trilha sonora de Dias Perfeitos se encarrega de ocupar os silêncios deixados pela escassez de palavras de Hirayama. Os efeitos sonoros preenchem o cotidiano desse personagem e, conforme o filme avança, vamos nos familiarizando com eles: o varrer da rua de manhãzinha, o regar das plantas, o borbulhar do banho quente, a fala costumeira de boas-vindas do dono do restaurante. Caminhando junto ao som ambiente, as músicas embalam não só o longo trajeto casa-trabalho-casa de Hirayama, mas também seus momentos de lazer; o resultado são agradáveis sequências do protagonista transitando pela cidade de Tóquio ao som de clássicos dos anos 60/70 – em sua maioria estadunidenses – , seja em seu carro ou bicicleta, ao nascer ou ao pôr do sol.
Dias Perfeitos é um filme que consegue manter o astral alto mesmo quando apresenta assuntos mais sérios, um drama que usa a leveza para driblar a melancolia. A linha tênue entre a solitude e a solidão de Hirayama, as dores que carrega consigo devido ao seu passado, as desigualdades e preconceitos que o circundam são apresentadas para nós com as respectivas forças que a narrativa pede em cada um desses casos. Ainda assim, o filme nos empresta lentes tão singulares para enxergar o mundo que saímos do cinema inspirados por Hirayama e seu apreço genuíno às pequenezas do cotidiano.