Por Maria Antônia Peixoto. 

Maria Antônia é bacharelanda em Cinema e Audiovisual na UFF e estagiária na Superintendência de Prestação de Contas da ANCINE. Integra equipes de curta-metragens universitários e foi monitora das matérias de Design Visual em 22.2 e Estudos da Narrativa, em 22.2 e 23.1.

Este trabalho é uma adaptação de texto originalmente escrito para a disciplina de “Introdução à Linguagem e à Teoria do Cinema” ministrada por João Luiz Vieira, do curso de Cinema e Audiovisual da UFF.

Em uma entrevista para a Gold Derby, Rian Johnson admitiu ter crescido lendo Agatha Christie e esse contato foi o que o fez querer realizar uma obra do estilo “Who has done it?”. Em 2019, então, lançou Knives Out (traduzido para o português como “Entre facas e segredos”), longa-metragem que roteirizou, dirigiu e coproduziu. O filme narra os eventos seguintes à morte de Harlan Thrombey, famoso escritor de romances policiais que foi encontrado degolado em um quarto de sua mansão após uma festa em família para comemorar seu aniversário de 85 anos. O detetive particular Benoit Blanc e policiais que conduzem a investigação buscam, portanto, a verdade entre as confusas e duvidosas declarações dos familiares e funcionários considerados suspeitos do caso. A obra inteira faz claras referências (e reverências) à Agatha Christie e às suas publicações, que moldaram o gênero de mistério e, mesmo após décadas de lançamento, ainda influenciam novas criações literárias e cinematográficas.

A começar pela estrutura da narrativa: de início, é necessário constatar que Rian realiza um movimento interessante de transicionar gêneros ao iniciar o filme como um mistério, mudar para um suspense do estilo Hitchcock e retornar novamente para o mistério, a fim finalizar a história. Ao inserir o suspense após o momento em que a história da fatídica noite é exposta sob o ponto de vista da personagem Marta, ele convence a audiência de que o assassino foi revelado e faz com que a atenção seja direcionada para sobre como Marta irá escapar das acusações, dispensando as circunstâncias do crime. Essa dinâmica faz com que o plot twist final seja ainda mais surpreendente e inesperado. Dito isso, para essa primeira análise serão utilizados apenas os momentos de mistério em torno dos primeiros e dos últimos 30 minutos.

Os livros de Agatha seguem uma fórmula com a qual ela escreveu a maioria de suas 80 obras. Inicialmente, as personagens são apresentadas: o detetive, os suspeitos e o assassino, mesmo que esse último não seja identificado como tal. Logo, acontece um homicídio. A investigação começa e os suspeitos são interrogados. Acontecimentos sucedem essa etapa, às vezes mais assassinatos. Por fim, o detetive tem uma epifania e revela a todos o público incluso a verdade sobre o caso. Embora Knives Out não siga essa ordem exata, ele cumpre todos os passos. A morte vem primeiro: o corpo de Harlan é encontrado na primeira cena. E, então, o interrogatório serve como motivação para introduzir as personagens através de flashbacks. A história se desenrola e outro assassinato ocorre. Por fim, Benoit Blanc conecta os fatos e compreende a verdade, expondo-a não para todos os envolvidos, mas para um grupo seleto.

O enredo de Knives Out também possui muitas semelhanças com algumas obras de Agatha. Especialmente, é preciso relembrar “A Casa Torta” (Crooked House), publicado no ano de 1949, cuja história se resume em um homem de 85 anos da alta sociedade britânica que foi assassinado por meio da injeção de uma substância que acreditava ser a insulina do seu tratamento de diabetes. Nesse cenário, onde o frasco de insulina pode ter sido trocado por qualquer morador de sua casa, todos da família são suspeitos. A motivação mais clara era o dinheiro que o velho Aristides Leonides deixaria de herança. Caso nomes não fossem citados, essa poderia, facilmente, ser a descrição de Knives Out (com spoilers). Além desse, muitos outros livros de Agatha possuem, como método de homicídio, o uso de venenos e fármacos já que ela adquiriu profundos conhecimentos sobre esse assunto ao trabalhar como técnica de farmácia em uma Universidade britânica durante a Segunda Guerra Mundial , possuem personagens de alta classe social e o grupo de suspeitos, geralmente em âmbito familiar, é pequeno e restrito a essa camada social. Com exceção de Marta, todos os outros funcionários da casa, incluindo Fran e os garçons que estiveram presentes no aniversário, nem sequer foram considerados como possíveis culpados.

Outra questão a ser analisada é referente à personagem interpretada por Daniel Craig, o detetive Benoit Blanc. A sua caracterização é uma analogia à identidade de Hercule Poirot, o mais famoso detetive criado por Agatha. Além de serem personalidades muito conhecidas que construíram uma boa reputação em seus respectivos universos, também são frequentemente vistas como estrangeiros: Poirot, uma figura belga cuja língua materna é o francês e ocasionalmente é requerido para solucionar crimes britânicos, e Blanc, que mantém essa aparência de “peixe fora d’água” ao dispor de um profundo sotaque sulista. E não apenas isso, como também o próprio nome de Benoit é uma referência intencional à Hercule. Afinal, é perceptível que os dois nomes possuem uma pronúncia um tanto quanto complicada. Em uma entrevista para a ScreenCrush, Rian Johnson explicou que “seria divertido dar um sobrenome com o qual os americanos lutariam, um pouco como Poirot”.

Com posse do conhecimento de que Rian é um leitor assíduo de Agatha Christie, não seria surpreendente dizer que a personagem de Harlan Thrombey seja uma alegoria à própria Rainha do Crime. Ambos são grandes escritores do gênero romance policial que possuem reconhecimento internacional por seus trabalhos, esses que foram traduzidos para dezenas de idiomas e venderam uma quantidade absurda de exemplares. À propósito, além de Harlan (e Aristides Leonides), Agatha também faleceu aos 85 anos. As homenagens não são apenas essas: a Dama do Crime, em sua autobiografia, revelou que “as histórias ocorrem-me em momentos estranhos: quando vou a andar sozinha na rua, ou estou a estudar uma montra de chapéus com particular interesse, de repente vem-me à cabeça uma ideia esplêndida e penso: «Ora aí está uma boa maneira de encobrir o crime para ninguém perceber o motivo.»” Seu neto, Mathew Prichard, comentou, ainda, em uma matéria para o site oficial de Agatha, sobre como a avó costumava escrever muito rapidamente e de forma natural. Em dado momento do filme, o Walt Thrombey responde à pergunta do oficial Elliot sobre como as ideias de Harlan lhe ocorriam dizendo que seu pai falava que “os plots apenas surgiam em sua mente, completamente formados”. Essa afirmação atesta a genialidade do escritor ficcional e, como consequência, reitera a de Christie.

Assim como o roteiro, a pós-produção de Knives Out foi influenciada pela escritora. Em janeiro de 2019, Rian postou em sua conta do Twitter fotos da decoração da sala onde foi editado o longa: pôsteres de filmes famosos do estilo whodunit que o inspiraram no quesito montagem dentro desse subgênero de mistério. Dos doze cartazes compartilhados, quatro eram de filmes baseados em obras de Agatha. O próprio pôster de Knives Out também teve a presença dela: a fonte utilizada no título do filme se assemelha em muito a capas de antigos livros de bolso de Agatha. Tão semelhantes que pode-se dizer que se trata de uma recriação da fonte utilizada pela editora Pocket Books. Procurando pelas capas dessas edições, percebe-se que a correspondência é inegável: as letras alongadas, as curvas que se estreitam até terminarem em uma ponta afiada (o que, para Knives Out, excepcionalmente, mostrou-se coerente, devido ao enredo e à identidade visual do longa); os cortes diagonais nas letras “T”, “U”, “I” e “N” e até mesmo a linha abaixo do nome de Agatha Christie aparece na recomposição.

Por fim, cabe recordar o primeiro livro policial de Agatha Christie: “O Misterioso Caso de Styles” (The Mysterious Affair at Styles). Essa obra contém a primeira aparição de Hercule Poirot, desvendando um assassinato de uma moça que fora envenenada em sua mansão. Publicado em 1920, obtém boas críticas até os dias atuais e, com essa obra, Agatha se descobriu no gênero mistério. Após isso, expandiu seu acervo para cerca de 80 títulos nas décadas seguintes. Rian Johnson revelou, em entrevista à revista Vulture que pretende seguir os passos de Christie ao criar uma sequência para Knives Out: “Será outro mistério de Poirot. Exatamente como Agatha Christie fez. Desconectado de Entre Facas e Segredos. É apenas mais um caso.” Talvez, futuramente, haverá um acervo de mistérios do século XXI protagonizados por Benoit Blanc, assim como Hercule Poirot no século XX. Entretanto, independentemente disso, é certo dizer que, apenas com Knives Out, Rian Johnson fez jus à memória e às obras de Agatha Christie.

 

REFERÊNCIAS:

AGATHA CHRISTIE LIMITED. How Christie Wrote. [S. l.]. Disponível em: https://www.agathachristie.com/about-christie/how-christie-wrote. Acesso em: 2 jan. 2022.

CHRISTIE, Agatha. Autobiografia de Agatha Christie. Portugal: ASA, 2012.

JOHNSON, Rian. Edit room posters: Knives Out edition. [S. l.], 30 jan. 2019. Disponível em: https://twitter.com/rianjohnson/status/1090746718398820352. Acesso em: 4 jan. 2022.

‘KNIVES Out’ writer-director Rian Johnson on making an Agatha Christie-style whodunit | GOLD DERBY. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jycnmoc682o&list=WL&index=35&ab_channel=GoldDe rby%2FGoldDerby. Acesso em: 23 dez. 2021.

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