Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do OCA-UFF da 27a Mostra de Tiradentes.
Sinopse: Ingrid Savoy, uma celebridade prestes a entrar em um reality show, passa seus dias confinada em um quarto de hotel. Entre visões premonitórias, um ataque de paparazzi e atentados anarquistas que rebentam pela cidade, a artista vive a constante iminência de um escândalo. Através de um fluxo de pensamentos em que os personagens misturam reflexões próprias com citações aleatórias, o filme explora um estado de alienação e loucura que é alimentado por uma máquina midiática.
Em pleno início do BBB 24, o filme Foram os Sussurros que Me Mataram (2024) estreia na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Uma sátira que acompanha Ingrid Savoy, uma participante de um reality show, transmitido pela “Rede”, durante aquele período de confinamento de hotel, às vésperas do começo do programa. Foi muito recorrente, após a sessão, ouvir comentários assemelhando o filme com o caso de Vanessa Lopes, participante real do BBB, em que ela demonstrava inquietações com relação a todo o aparato de vigília e de controle do programa, como se ela estivesse quebrando a quarta parede ao crer fazer parte de um aparato ficcional orquestrado para atacá-la. A partir dessa comparação, fica evidente que o filme de Arthur Tuoto consegue suscitar muitas das específicas sensações humanas que o reality show traz aos participantes, desde a performatividade frente às câmeras até a paranoia. Além do mais, a obra ainda trata das repercussões para além do programa, para aquilo que o programa é construído: as massas, os fã-clubes. Contudo, traz consigo um grande risco, que é o de assumir uma linha pós-moderna em sua linguagem audiovisual, o que é uma aposta e tanto, já que discursa sobre uma temática muito popular de maneira nem um pouco convencional.
O diretor e roteirista Tuoto constrói uma experiência sensorial meticulosa para causar estresse e ansiedade, e toda a construção audiovisual do longa é baseada nesse propósito. Todos os atores assumem um estilo de atuação antinaturalista, com movimentos robóticos e vozes desprovidas de emoção, mas são nos diálogos, em específico, ou seja, na interação entre essas vozes, que a base dessa experiência inquieta se fundamenta. As personagens, quando conversam umas com as outras, parecem não se ouvir, como se declamassem monólogos entrecortados, até eventualmente encontrarem um breve ponto em comum, o que causa uma fricção na semântica, mas não na sintaxe. No que tange os discursos do filme, o roteiro espeta variadas temáticas nessas conversas – ou não-conversas –, como política, sociedade, arte, filosofia, e por aí vai. Tudo isso sem se preocupar em desenvolver raciocínios e debates construtivos entre as personagens, que só se importam com o que têm a dizer. Há, para aumentar ainda mais o estresse, uma ameaça iminente de ataques terroristas de fãs que querem invadir o prédio – os aqui chamados anarquistas.
Contudo, há um risco em assumir essa postura antinaturalista, que é o de pôr em jogo o envolvimento emocional com a narrativa em prol da experiência proposta por Tuoto. Devido à abordagem satírica da obra para com os reality shows e seus flagelos, como o fanatismo e a espetacularização geral, compreende-se que os tais anarquistas atrás das celebridades no hotel servem de metáfora, seja para a adoração das massas às celebridades ou para outras possíveis interpretações. Portanto, pelo fato desses anarquistas serem referentes a um significado maior, já que a sátira depende de um objeto outro a ser satirizado, diluem-se muitos dos tensionamentos possíveis, porque a força do que está em tela não é autossuficiente, já que o objeto satirizado é constantemente lembrado e referenciado. Portanto, se as ameaças não possuem força, a verborragia do texto é o ponto principal da obra, já que, até mesmo no ato final, com a ameaça externa cada vez mais próxima, o que há de mais interessante é sentir os impactos dessa esgrima verbal entre as personagens, não a situação em que elas estão inseridas.
Não obstante, deve ser destacado, sem dúvida, o trabalho da diretora de arte Ana Bona, que merecia um texto por si só. O filme é dividido em, basicamente, dois cenários. O quarto de hotel – que está mais para apartamento – e o banheiro desse quarto. No quarto, a luz amarelada toma conta, o tempo todo, de todo o espaço, mas um amarelo doentio, escuro, que perturba a protagonista confinada e contrasta com o lado de fora, onde estão enormes prédios iluminando a noite azul. Aliás, o que está fora, na verdade, é claramente um painel de LED, o que traz uma artificialidade bem-vinda ao estranhamento desse mundo sem sentido. Nada, além dessas luzes, diegéticas ou não, é extraordinário dentro do quarto: é um cenário completamente estéril e sem personalidade, o que é ótimo para realçar Ingrid, já que não há perturbação visual alguma para as câmeras, que focam-se inteiramente nela. Por outro lado, o banheiro é um altar. O espelho gigante, em que a cabeça de Ingrid é refletida apenas em uma pequena porção na parte de baixo do vidro, é escuro, vazio, e ainda emite uma luz amarela na parte de trás, simulando um eclipse, em que a parte sombria domina o espaço. Como se não bastasse, há um segundo espelho de mesa, para maquiagem, que a reflete mais uma vez, de baixo para cima. Aqui, Ingrid se maquia para as gravações, se prepara para performar, mas também é vista por imagens dela mesma. O ápice do narcisismo da personagem é visto quando, em uma cena de maquiagem, a montagem cria um lento efeito de dissolução desse plano para o mesmo plano, só que em outra posição, o que faz com que uma massa de reflexos de Ingrid surjam na tela, todas olhando para ela, um momento fascinante – créditos à Ana Bona e ao montador Aristeu Araújo.
Voltando à narrativa, dentre as várias discussões, a obra prossegue principalmente na temática de adorar uma personalidade, pois Ingrid carrega consigo um poder de influência enorme graças à sua posição no reality, e ela sabe, cinicamente, que seus fãs são capazes de tudo. Isso, aliado à escolha de atribuir especificamente a anarquia aos fã-clubes, ainda traz um sutil comentário sobre Deus – ou sua morte – substituído pelo endeusamento de um ícone sem virtude. Tanto é que, em determinado momento, Ingrid se encontra em um local totalmente branco, desprovido de qualquer materialidade, fruto do que conquistou com esses fãs, que destruíram tudo, até a si próprios, por ela.
Foram os Sussurros Que Me Mataram é uma experiência desconfortável, mas singular, como uma pintura em pontilhismo em que o artista, ao invés de usar pincel, utiliza uma faca com tinta para desenhar um mosaico das subcelebridades cínicas, apáticas e narcisistas de hoje, e de como são capazes de manipular as massas para adorá-las e agirem de maneiras irracionais e violentas — o BBB à última potência.