Crítica feita por Sophia de Lacerda, estudante de graduação de Cinema e Audiovisual da UFF, durante a cobertura da 27a Mostra Tiradentes.

Sinopse: Das entranhas do parlamento brasileiro, acompanhamos deputadas fazendo política. Temas como direitos reprodutivos, educação, estado laico, racismo e polarização política vem à tona, enquanto acompanhamos essas mulheres de perto em seus embates e performances políticas.

O documentário “A Câmara”, dirigido por Cristiane Bernardes e Tiago de Aragão, segue em uma direção muito singular e se distancia, em termos de conteúdo, do que a maioria das pessoas poderia esperar de um filme que aborda a dinâmica da política dentro do parlamento. A principal decisão que o singulariza está em seu recorte de gênero nas parlamentares da Câmara dos Deputados, um espaço que é historicamente protagonizado por homens. Além disso, deve-se ressaltar a ausência de entrevistas durante o longa, que prioriza a experiência cotidiana das mulheres na Câmara, dos mais opostos espectros políticos, e a luta diária para a conquista de espaço. 

Assim, o espectador é convidado a acompanhar esse espaço de forma muito mais intensa e viva do que normalmente é possível assistir nos jornais. O filme consegue trazer uma proximidade de um universo que, muitas vezes, o público desconhece. Esse fator contribui para uma perspectiva mais humanizada daquelas mulheres em detrimento da espetacularização dos acontecimentos dentro da Câmara. Quando a câmera do jornal desliga, a câmera do documentário permanece ligada, mostrando os bastidores daquela performance política. O trabalho de fotografia, inclusive, é muito inteligente. A câmera flutua pelo dia a dia dessas deputadas, mas também se posiciona de maneira estratégica em certas situações. Um dos momentos de destaque ocorreu durante a discussão entre a deputada Alê Silva e a deputada Sâmia Bomfim. Ao invés de mostrar o debate em uma estrutura de plano/contraplano, há um corte seco de um plano dos bastidores para a câmera centralizando as reações de Sâmia às barbaridades que estão sendo ditas por Alê Silva, que afirma que o Brasil não é um país racista. Foi conferido um tom cômico a essa cena por conta dos absurdos ditos pela deputada (a qual o espectador apenas escuta) e o foco em Sâmia que demonstrava a sua indignação com o ocorrido, situação que tirou risadas do público no cinema.

Aliás, a montagem do longa também merece seu destaque, pois contribui muito narrativamente. Mesmo que os planos gravados sejam recortes do cotidiano das parlamentares e não necessariamente se complementem, é criado uma espécie de jogo entre eles que mantém um ritmo muito interessante e dramatiza as situações ali vividas. Por exemplo, após o fim da cena mencionada anteriormente, na qual Sâmia aponta as falas racistas de Alê enquanto ela parte para um tom ofensivo, o filme te leva diretamente para um culto, onde a deputada Greyce pede que a Câmara seja abençoada. Fica muito evidente a polarização política das deputadas que compõem a bancada das mulheres e, por meio de cortes secos, o espectador faz um passeio muito bem direcionado – e por vezes, desconfortável – por esses espectros políticos. Questões como o aborto, educação e saúde pública são discutidas a partir das diferentes visões das deputadas, que, aliás, não são identificadas pelo partido ou pelos próprios espectros políticos. Cabe a quem está assistindo fazer uma leitura e tirar conclusões.

O documentário também não economiza ao dar ênfase na dificuldade que é ser mulher na Câmara. As personagens estão sempre cercadas por homens que ainda não aprenderam a esperar sua vez de falar: interrompem, apelam para ofensas pessoais e mentiras. É difícil não se revoltar também.

No geral, “A Câmara” convoca uma reflexão ao público da possibilidade de um documentário trazer um retrato tão vivo e humano sobre a luta e o trabalho diários das parlamentares, explicitando que, apesar de conquistarem espaço dentro do parlamento nas últimas décadas, ainda ocupam apenas 15% das cadeiras. A luta das parlamentares não se limita às pautas de seu campo político, mas também contra o desrespeito praticado por parlamentares homens, inclusive quando elas ocupam cargos de liderança ou presidência de comissões. A presença feminina no parlamento ainda incomoda muito. No fim, a produção consegue ter uma conclusão sensível mesmo após todos os embates políticos fervorosos e ofensas: demonstra a humanidade delas, sem sequer necessitar dizer uma palavra. 

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