Crítica escrita por Ernesto Loaiza.
Sinopse: Em um Japão social e economicamente devastado após o término da Segunda Guerra Mundial, a situação chega a um nível ainda mais crítico quando uma gigantesca e misteriosa criatura surge do mar para assolar o país.
“Por que obedecer a uma ordem de ‘morrer com honra’ quando o resultado já está claro?”. Esse dilema, em referência à Koichi, um piloto kamikaze que abandonou sua missão, é a base de todo o enredo de Godzilla Minus One (2023). Afinal, que honra há em realizar uma missão suicida de pequena escala, enquanto o Japão é atingido por duas bombas nucleares que dizimaram centenas de milhares de vidas? É fácil pensar assim quase um século depois da 2a Guerra Mundial ter se desenrolado, mas quando um país está em guerra, talvez não exista outra alternativa senão fazer o que deve ser feito. Evidentemente, como o próprio filme discursa, os soldados são enviados à morrer em condições desumanas, suas vidas não são valorizadas, tanto no sentido bélico (caças sem assentos ejetores, suprimentos insuficientes) quanto no sentido psicológico/emocional (traumas profundos pós-guerra). Contudo, mesmo assim, esses cidadãos conseguem se erguer para enfrentar, pelo futuro, pelos filhos e filhas que nascerão, as maiores adversidades possíveis, até mesmo um monstro marinho gigante. Assim, os traumas de uma nação, em especial o seu sentimento de derrota, são imbuídos em Koichi, protagonista em busca de redenção, em sua jornada comovente para erguer-se e enfrentar o que quer que seja com esperança no futuro. Este arco dramático é o grande diferencial deste filme, em comparação às outras rendições de Godzilla.
Koichi Shikishima, é um protagonista que constantemente foge de suas responsabilidades. Quando abandona sua missão kamikaze mentindo no relatório ao dizer que seu avião estava com problema; quando, por medo, não atira uma bomba em Godzilla, ocasionando a morte de vários engenheiros; quando reclama de ter que abrigar Oishi, mãe de um recém-nascido passando fome, e por aí vai. O problema é que essas omissões prendem-se a ele, de forma que Koichi sente-se extremamente culpado por ter fugido de sua missão, assombrado por pesadelos com os mortos, impotente quando Oishi consegue um emprego longe de sua casa. Sem perceber, ele permite que esses traumas e inseguranças o dominem, e isso torna-o, por vezes, antipático e egoísta, um ciclo vicioso que remete diretamente às dificuldades psicológicas que os veteranos de guerra japoneses passaram. A quebra do realismo vem na forma de Godzilla, que para esse ciclo de auto-tortura psicológica, ao obrigar Koichi superar o trauma da guerra com outra guerra, e finalmente conseguir sua vitória. A jornada de redenção de Koichi emociona porque, além de uma rixa quase pessoal com o monstro (simplicidade perfeita para a narrativa), a obra oferece mais do que uma jornada de vingança: uma tentativa fervorosa de recuperar a honra que foi perdida na Guerra.
No que tange à criatura que dá título ao filme, é interessante que Godzilla poderia ser substituído por qualquer ameaça nacional que o filme continuaria tendo sua força. Digo isto não para menosprezar a nova abordagem criativa para com o monstro, que comentarei a seguir, mas sim para aplaudir o trabalho do diretor e roteirista Takashi Yamazaki em construir uma situação-problema na qual o arco narrativo dos personagens aconteça independente da forma e aparência da ameaça. Isto é, Godzilla poderia ser um extraterrestre ou um robô gigante que Koichi continuaria tendo os mesmos traumas do pós-guerra, a mesma sensação de covardia, e seria enfrentado por ele e pelos demais cidadãos japoneses da mesma forma. É claro que há o simbolismo do horror da guerra mesclado no horror do monstro, fruto do impacto nuclear estadunidense no país, e todas aquelas clássicas associações à criatura. Porém, cabe ressaltar que historicamente existem vertentes diferentes do monstro tornando-o ora mais simbólico, ora mais personagem. A linha americana do “universo dos monstros” tem tornado suas criaturas cada vez menos simbólicas e mais personagens, ofuscando as personagens humanas, que pouco importam ao lado do duelo entre monstros gigantes, como em Godzilla vs Kong (2021). Já em Shin Godzilla (2016), os diretores Hideaki Anno e Shinji Higuchi investiram tanto no aspecto horripilante da criatura que a imprevisibilidade de suas mutações são um destaque por si só, trata-se de um verdadeiro demônio incompreensível frente à burocracia dos mecanismos de defesa japonês. Neste caso, as personagens humanas são dissolvidas no amálgama dos representantes do país, não tendo profundidades individuais memoráveis, até porque sequer é o propósito. Assim, Godzilla Minus One destaca-se ao construir um protagonista humano complexo para guiar toda a narrativa. Inclusive, vale mencionar que uma reclamação recorrente à franquia “MonsterVerse” é a de que ninguém se importava com os humanos, sendo sugerido por alguns usuários que os realizadores deviam ignorá-los e focar apenas nos monstros — Minus One prova o exato oposto.
O diretor Takashi Yamazaki faz um ótimo trabalho nessa nova versão de Godzilla em utilizar a imponência do oceano para incrementar a ameaça da criatura. Dentre as dezenas de filmes do monstro, as grandes batalhas acontecem majoritariamente em terra firme, sendo o mar menos utilizado. Em Minus One, os momentos mais impactantes de Godzilla são na água, seja pela desproporcionalidade da perseguição dessa criatura a um barco de madeira, ou pela emocionante batalha naval do terceiro ato. Inclusive, batalha esta que traz, além do sempre excelente tema musical clássico de Akira Ifukube, um grande destaque na trilha musical original de Naoki Sato, “Godzilla-1.0 Resolution”, disponível no Spotify. Os ostinatos dos violinos, repetição de pequenos conjuntos melódicos, somado a um som agudo e estridente do que parece ser uma guitarra distorcida que lembra justamente um alarme de evacuação sendo disparado, produzem um forte estado de tensão constante. Depois, a música cresce com as efusivas trompas e trompetes, que criam uma expansividade enorme na experiência sonora, até culminar no épico coro para deixar qualquer um na ponta da cadeira. Essa potência musical, junto da brilhante estratégia de guerra que esses bravos soldados encontraram para enfrentar o monstro, faz dessa cena uma das melhores cenas dentre os filmes de Godzilla, e também uma das melhores cenas do ano.
Godzilla Minus One oferece aos japoneses a chance de experienciar uma batalha honrada contra aquilo que obliterou as esperanças de uma nação: contra a própria guerra, contra a destruição em massa. Ao apresentar a história de redenção de um derrotado, a obra rege um levante na sensação de desonra japonesa após a 2ª Guerra Mundial, trazendo esperança ao povo que, nas situações mais adversas e inimagináveis, deve ser capaz de fazer o que deve ser feito. Ainda que o Estado não valorize a vida dos cidadãos, já que está envolvido em problemas geopolíticos “maiores”, a força da união civil é capaz de enfrentar mais um Godzilla, e ainda verdadeiramente valorizar os sacrifícios que ocorrem nessa luta — porque não há nada mais honrado e poderoso do que lutar com esperança.