Crítica escrita por Helena Zimbrão, mestranda em Cinema e Audiovisual do PPGCINE-UFF. 

Na sua primeira semana em cartaz, Pedágio, o novo longa de Carolina Markowicz, reacendeu um debate importante sobre a pirataria e a democratização do acesso ao cinema no Brasil. O filme, estrelado por Maeve Jinkings, Kauan Alvarenga e Thomas Aquino, aborda outros temas complexos como a homofobia, a hipocrisia humana, a intolerância religiosa, a violência e a solidão urbana e, principalmente, a relação entre uma mãe e seu filho.

Tiquinho é um adolescente homossexual que enfrenta a difícil busca da própria identidade em uma sociedade opressora e ignorante. Kauan Alvarenga encarna o adolescente perfeito: o olhar emputecido com o mundo, o deboche a qualquer custo, as respostas monossilábicas e a postura curvada de quem está de saco cheio! Mas nos momentos em que Tiquinho pode de fato se expressar como artista, essa postura se desfaz e dá lugar a um corpo pulsante, cheio de vida e maquiagem, que canta, performa e sorri.

Infelizmente, esse corpo vivo de Tiquinho é fortemente reprimido por sua mãe. Suellen é uma cobradora de pedágio que, em contraponto, tem o seu próprio corpo restrito a um cubículo durante horas de trabalho solitário. Na errônea intenção de “proteger” seu filho, Suellen o obriga a frequentar um curso oferecido por um pastor estrangeiro que promete a tão aclamada “cura-gay”. Para conseguir pagar o curso, Suellen se envolve um esquema ilegal com seu namorado Arauto (Thomas Aquino).

A escolha de Maeve Jinkings para o papel de Suellen me parece certeira por um simples motivo: Maeve entrega o rosto e o jeito de uma pessoa absolutamente comum. Digo isso não no sentido pejorativo da palavra “comum”, mas no sentido quase que empático da coisa: essa mulher que acompanhamos na tela poderia muito bem ser alguém que você conhece. Apesar de sua homofobia, Suellen não nos desperta raiva, pois todas as suas contradições, dores, angústias, ganhos e perdas estão ali, escancaradas para nós.

Na verdade, nenhuma das personagens de Pedágio é realmente capaz de criar raiva no espectador e a esse mérito eu atribuo o bom desenvolvimento do roteiro. A premissa da trama poderia ter escorregado para uma versão maniqueísta dos fatos, mas felizmente isso não acontece. As personagens, assim como suas motivações e anseios, estão nuas e cruas na nossa frente, nem boas nem más, humanas apenas, driblando a seu modo a solidão em uma erma cidade industrial de praças vazias e céu cinza – literalmente colorido de rosa pelas lentes de Tiquinho.

Carolina Markowicz nos entrega uma história comovente, contada de forma inteligente e com boas doses de ironia. Pedágio não hesita em satirizar o catolicismo e o protestantismo, evidenciando a hipocrisia de seus praticantes e pregadores – desde a caricata personagem de Telma (Aline Marta Maia) até as cenas absurdas do curso de “cura-gay” ministradas pelo pastor Isaac. O sotaque de Portugal e a aparência de Jesus hipster do pastor o tornam ainda mais difícil de ser levado a sério. Gosto de pensar que a escolha por um pastor português pode simbolizar a imposição das religiões europeias (católica e protestante) sob as religiões de matrizes indígenas e africanas no Brasil.

A relação entre Suellen e Tiquinho não se resume à homofobia da mãe, mas sim flutua entre momentos de carinho e repulsa. Em um dado momento do filme, o par romântico de Tiquinho pergunta: “Mas se você trabalha e tem dinheiro, por que você ainda precisa da sua mãe?”. O silêncio de Tiquinho abre espaço para um palpite: na verdade, é sua mãe quem precisa dele. Essa relação de necessidade e carência que permeia as relações entre mães e filhos está presente do início ao fim do filme. E, quando a trama se encerra, Suellen depende do filho para colocar sua vida em ordem, enquanto que Tiquinho ainda se esforça para obter a aprovação de sua mãe.

Pedágio foi destaque no Festival do Rio 2023, ao garantir os prêmios de Melhor Atriz, Melhor Ator e Melhor Atriz Coadjuvante para Maeve Jinkings, Kauan Alvarenga e Aline Marta Maia respectivamente. Vicente Saldanha também levou o prêmio de Melhor Direção de Arte pelo seu excelente trabalho nos figurinos e objetos cenográficos que nos levam para dentro do universo dessa família periférica de baixa renda, em contraste com o luxo e a extravagância da igreja do pastor Isaac. O longa também marcou o Festival Internacional de Cinema de Toronto, tornando Carolina Markowicz a primeira pessoa latino-americana a ser premiada na categoria “Novos Talentos”. Atualmente, o filme luta contra os recentes casos de pirataria e tenta se manter em cartaz por mais algumas semanas.

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