Crítica escrita por Pedro Henrique Boaventura.

Pedro é estudante de Cinema na UFF, pesquisa filmes do Sul-Global e trabalha como curador num cineclube de cinemas latinoamericanos.

Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro, de alguma forma, ecoa nos ventos que sopram sobre a Colômbia atualmente. O filme de 1981, recém chegado à MUBI Brasil em uma versão restaurada em 2K, dirigido pelo casal de documentaristas colombianos Marta Rodríguez e Jorge Silva, traz uma forma única de retomar à História por meios realmente místicos, mais especificamente por místicas revolucionárias como as que Mariátegui falava.

Marta, antropóloga e formada em cinema, ao lado de Jorge, um experiente fotógrafo, acompanharam, desde os anos 60, a vida e a luta das diversas parcelas da classe trabalhadora colombiana, realizando documentários com os movimentos campesinos, sindicais, afrocolombianos e indígenas. Desse modo, carregando consigo a vontade de recontar a História colonial, tendo noção do dever histórico de ser uma narrativa alternativa e mobilizadora frente aos meios de comunicação de um país marcado pela dominação imperialista e por um constante estado de guerra.

Em Nossa Voz acompanhamos um processo de reorganização do movimento indígena na região de Cauca, na Colômbia dos anos 70, ponto central desse documentário de muitas linhas de força que circundam a luta pela retomada de terras e garantia de direitos. Dentre elas, a linha percebida desde o início do filme, a mística, está presente nas figuras demoníacas personificadas em atos ficcionais performáticos, que, às vezes, mais simbolizam e, outras vezes, buscam reconstituir, em imagem, os relatos traumáticos do povo indígena. Figuras que se confundem e se aliam, em pactos, a de um latifundiário burguês de cartola e a de um rosto não humano, montando seus cavalos com botas cheias de esporas.

Essas entidades atravessam a narrativa do filme sem predominar. Elas são parte da atmosfera enevoada, fria, soturna, preta e branca, que espelha a complexidade dessa realidade, carregada por uma insegurança angustiante, mas envolta por uma força mística de revolta efervescente. O vento de suspense que sopra as flautas da imersiva trilha sonora é o mesmo que leva às vozes da memória e futuro de um povo. Tal dualidade está até na fumaça, ritual e caseira nos escuros interiores das casas, mas tóxica e mortífera nas chaminés das fábricas exploradoras.

Esse é só um dos signos do filme, que, com sua variedade de planos, escolhe a amplidão de momentos de grandiosidade da Terra em suas sinuosidades, mas privilegia o plano próximo, o detalhe, o olho, as mãos, o lápis, o livro, os facões, a caixa de fósforos, o seio, a terra, o arado, a semente, os pés, os calos, as rugas dos rostos. Todos detalhes orquestrados em uma montagem poética que cria um plural de significados, que faz a representação desse renascente movimento indígena parecer uma força da natureza, a correnteza de um rio, um movimento inevitável do bem contra o mal. É um forte fato, para não dizer acaso, que o nome da fazenda a ser retomada seja Canaã.

Tal sentimento de justiça predestinada é onde a mística se torna revolucionária. Em diversas falas, os indígenas usam do termo diabo para se referir aos latifundiários e seus capatazes, ao exército e paramilitares, ao empresariado e governantes exploradores esses agentes tiveram ajuda do demônio, com quem pactuaram. Tais afirmações não são feitas em tom ingênuo: eles sabem de que lado o clero católico está e se opõem a uma posição subserviente frente a ele. Tais afirmações são reapropriações da retórica cristã colonial para o lado dos colonizados readequações dessa lógica enquanto ferramenta de um discurso e prática não só contracolonial, mas também transcendental.

O influente pensador marxista e ativista social peruano, do início do século 20, José Carlos Mariátegui, pensa a política como um ato de fé. Conforme as pessoas se arriscam na política, visto que lutar por transformações sociais passa pelo risco, elas vivem perigosamente a política e para viver como tal constituem uma motivação pela utopia, um voto de fé em se lançar a essa ideia e criar as condições para que ela se faça presente. Conforme uma provocação de Mariátegui, “A burguesia entretém-se numa crítica racionalista do método, da teoria, da técnica dos revolucionários. Que incompreensão! A força dos revolucionários não reside na sua ciência e sim na sua fé, na sua paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária, tal como escrevi num artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa”. Pensar o movimento indígena colombiano, o EZLN, o MST e tantos outros movimentos populares passa pela percepção da substância espiritual da luta.

A Voz de Terra, Memória e Futuro tem estado mais audível na Colômbia, com muitos chiados e distorções, mas, de fato, tem ecoado. Em 2019, a insatisfação do povo colombiano contra as reformas neoliberais de precarização trabalhista, tributária e do sistema de pensões, levou milhões às ruas do país, que teve sua primeira greve geral desde 1979. Tal onda de mobilização popular foi sentida na eleição de 2022, na qual, pela primeira vez na História da Colômbia, um governo de esquerda foi eleito, com Gustavo Petro e Francia Márquez, quebrando simbolicamente um ciclo histórico de candidatos progressistas assassinados no país que mais mata ativistas sociais na América Latina. Desde então, a gestão de Petro tem adotado uma postura de reformismo aguerrido, valendo-se de estratégias de mobilização das ruas para pressionar a Câmara na aprovação de reformas estruturais, seja a trabalhista, a da Saúde pública, a da Educação ou agrária.

Assistir Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro hoje em dia é inspirador. O Conselho Regional Indígena do Cauca, acompanhado no filme, segue ativo atualmente e foi, ao decorrer da História, uma organização importante de reconquista de direitos, consolidação nacional do movimento e reconquista de territórios, tendo desempenhado um papel central na eleição de constituintes indígenas na atual Constituição Colombiana de 1991.

Um documentário que espelha profundamente o sentimento da luta que acompanha, sendo profundo e direto, trazendo uma variedade de abordagens fílmicas, tecendo uma teia de enfoques poéticos do cotidiano da vida, mesclada com cenas no calor do aqui e agora em momentos históricos, justapostas com reconstituições simbólicas da memória e imagem em disputa. Uma multiplicidade de falas dos membros, discursos em comícios, conversas pontuais, relatos pessoais, citações e até percepções dissonantes. Todos esses aspectos ancorados nos sentimentos de um agrupamento, calcado não só numa formação política por letramento crítico, mas em uma força mística coletiva que faz com que a práxis, a ação concreta, aconteça.

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