Por Victoria Silveira e Maria Eduarda Trindade.
Victoria e Maria são estudantes de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense. Esse trabalho foi originalmente feito para a disciplina de Montagem, da professora Elianne Ivo do curso de Cinema e Audiovisual da UFF.
Textos de análises e críticas cinematográficas não costumam se dirigir ao som com o mesmo afinco e dedicação que são prestados aos aspectos visual e narratológico. Na história do cinema, a paisagem sonora, como é definida pelo compositor canadense R. Murray Schafer[1] em A afinação do mundo (1977), foi muitas vezes banalizada por escritores e pelo público geral. No entanto, ela carrega significado e é essencial ao tecer dos fios narrativos. Além, claro, de ser fundamental para a ambientação dos personagens nas telas.
A cineasta francesa Emmanuelle Jay, no capítulo Image et son: accords et désaccords de seu livro Le montage: technique et esthétique: fiction, documentaire, série, nouvelles écritures (2020), afirma que a música é extremamente importante para a evocação da emoção dos espectadores. Para ela, a montagem deve encontrar seu próprio ritmo antes de valer-se do auxílio da banda sonora. Quando a trilha sonora é composta especificamente para um certo filme, a relação da equipe de realização, mais diretamente o diretor geral e os montadores, com a de composição deve ser certeira. As doses de criatividade e intencionalidade devem se equilibrar, estabelecendo uma dinâmica única: “Muitas vezes a realização dá ao compositor ou à compositora as indicações precisas sobre os locais e sobre o gênero da música, por vezes ela deixa livre curso a criatividade do artista musicista” (JAY, 2020; traduzido).
Algumas questões que devem ser consideradas: a música composta vai conversar diretamente com o espectador? Ela vai transmitir uma mensagem a um personagem ou dois? Vai indicar um sentimento?. Indo além, qual é a relação que se espera estabelecer entre os ruídos banais da vivência de um personagem e seus sentimentos musicados?. Esta é uma investigação que diz respeito a um uso não só intencional, mas íntimo e confidente do som. E muito bem representado em Woman at War (2018), filme dirigido pelo islandês Benedikt Erlingsson.
O filme relata a história da personagem Halla, uma ativista do meio ambiente que trabalha de forma clandestina. Ela inicia uma “guerra de uma só mulher” contra grandes corporações em favor da preservação ecológica islandesa, autodenominando-se “a mulher da montanha”. Em diversos trechos do longa-metragem, a música surge como um elemento extra-diegético, logo depois sendo integrada ao plano visual por meio da banda de músicos em um processo de quebra de expectativas que diverte o espectador. Essa dinâmica da banda com a protagonista assume outro significado quando descobrimos que a personagem é regente de um coral e tem uma forte relação com a música. Assim, esse acompanhamento musical seria uma própria trilha sonora da sua vida.
Desde o início, a música apadrinha as aventuras de Halla, agindo como um confidente emocional que conecta a personagem ao público. O toque de jazz, composto pela banda de três instrumentos (a bateria, a sanfona e a tuba), conversa diretamente com o ritmo narrativo, alternando entre compassos mais rápidos, ou alegres, e ralentados, ou tristes. Há também os que expressam tensão, ainda mais carregados na bateria e no ritmo que se repete – como na cena em que Halla adentra um hotel prestes a divulgar sua declaração ao mundo.
A relação com a música assume um significado ainda maior quando analisamos o trio de cantoras ucranianas que acompanham a protagonista durante o filme. Essa presença ucraniana é reafirmada ao descobrirmos que Nika, criança que Halla pretendia adotar, era da Ucrânia. A trilha musical, desse ponto em diante, apreende novo sentido e ganha força no âmbito narrativo.
Outra técnica interessante é o uso de ruídos de objetos diferentes (em um ritmo similar) apresentados separadamente e depois combinados na montagem, formando uma melodia singular. Tal melodia traduz a emoção da cena e cria um ambiente de inquietação e ansiedade importante para o envolvimento do espectador com a narrativa apresentada. Desse jeito, som e imagem estão constantemente interligados com o objetivo comum de dialogar com o público e cativá-lo de alguma forma.
Vale a pena mencionar que o processo de gravação sonora de Woman at War concentrou-se na captação de som direto, inclusive nas tomadas musicais. O diretor Benedikt Erlingsson, citado por Emmanuelle Jay, conta que a equipe tinha a captação direta como objetivo – o que foi desafiador, mas também um trabalho muito realizador e satisfatório para os músicos, o diretor de arte, o diretor de fotografia e todos os técnicos de som.
[1] “De volta ao Canadá, Murray Schafer criou, em 1969, o The World Soundscape Project, grupo de estudos na Simon Fraser University dedicado ao que chamou de ecologia acústica, com o objetivo de chamar a atenção das pessoas para o som ambiente e seu caráter de constante mudança. Para ele, a ideia de design de uma paisagem sonora era uma alternativa à poluição sonora”. (Redação concreto, 2021; adaptado).


Figuras 1 e 2 reespectivamente.
Ademais, a coesão do filme é mantida com maestria através de métodos que conectam diferentes planos harmoniosamente. Por exemplo: ao invés do corte seco, o som das vozes do coral do plano B (figura 2) é inserido gradativamente no plano A (figura 1), ligando-o ao plano B com mais naturalidade e fluidez. Isso acontece também quando o barulho de um objeto introduz o próprio objeto à cena, mostrando que a montagem sonora tem influência direta na mise-en-scène, e vice-versa.
Um aspecto da montagem sonora que na maioria das vezes passa despercebido são os sons ambientes (ruídos de um riacho, floresta, ventania, entre outros). Esse artifício, essencial para a criação de espaços diegéticos críveis e naturais, contribui para a manutenção do ilusionismo no cinema. Nós, como espectadores, identificamos o ambiente ali representado com facilidade por causa dessa construção, então aqueles sons não nos chamam atenção. Somente numa análise mais detalhada eles são pontuados.

Figura 3 (Fotograma da primeira cena do filme)
A primeira cena do filme (figura 3) é notavelmente trabalhada no que diz respeito à paisagem sonora. O ruído característico da flecha de metal e a respiração ofegante da personagem denunciam, antes de mais nada, o aspecto emocional envolto naquela cena. Isto é, ao enfatizar esses elementos, que a princípio parecem banais, o filme está comunicando ao espectador que aquilo é importante. A denúncia que se dá, então, é a da clandestinidade. A tensão impressa é contagiante e a mensagem é clara.
A aproximação do espectador à respiração da personagem, aquilo que R. Murray Schaffer chama de close-up sonoro, é um veículo dessa expressividade. Sem nenhuma fala, já sabemos que o que está havendo ali é algo que precisa ser feito de forma silenciosa ou na surdina. O espectador é, pela expressão facial e o efeito borrado da imagem, mas principalmente por meio do som, convidado a ser, como o próprio personagem do primo Sveinbjörn afirma mais tarde, um “cúmplice” da ação de Halla.
Referências bibliográficas
JAY, Emmanuelle. Image et son: accords et désaccords. In: Le montage: technique et esthétique: fiction, documentaire, série, nouvelles écritures. Tradução de Elianne Ivo Barroso. Armand Colin, 2020. Tradução de Elianne Ivo Barroso.
Notícia Morre, aos 88 anos, o compositor e escritor canadense Murray Schafer. Redação Concreto, 2021. Disponível em: https://concerto.com.br/noticias/musica-classica/morre-aos-88-anos-o-compositor-e-escritor-canadense-murray-schafer. Acesso em: 14 de Novembro de 2023.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. Tradução de Marisa Trench Fonterrada. São Paulo: Editora Unesp, 2 ed., 2011. Livro físico.