Crítica escrita por Ernesto Loaiza para a cobertura do 25º Festival do Rio.
Sinopse: A fantástica evolução de Bella Baxter, uma jovem que é trazida de volta à vida pelo brilhante e pouco ortodoxo cientista Dr. Godwin Baxter. Sob a proteção de Baxter, Bella está ansiosa para aprender. Desejando conhecer mais sobre o mundo, foge com Duncan Wedderburn, um advogado astuto e debochado, para uma aventura por vários continentes. Livre dos preconceitos de sua época, Bella se firma em seu propósito de defender a igualdade e a libertação.
Yorgos Lanthimos é um diretor artesão de mundos excêntricos e, na maioria das vezes, cruéis. Em seus filmes, regras particulares regem a vida das personagens, como em Dente Canino (2009), em que três filhos, enclausurados dentro de casa desde a infância e educados de maneira sádica, tentam enfrentar os pais ultra controladores. Esse tipo de situação absurda e hermética, característica comum de seus filmes, faz com que o espectador observe os protagonistas como parte de um experimento científico, assim como médicos pesquisadores observam ratos em laboratório, restando às personagens apenas o sofrimento e a tentativa de se libertar. Em contrapartida, Pobres Criaturas (2023) subverte essa estrutura ao apresentar uma verdadeira odisseia em que o objeto do experimento, Bella Baxter – que é, também, resultado de um insano experimento científico –, escapa de seu aprisionamento, que, nesse filme, é a sociedade moderna. E, durante esse processo, ela ainda enfrenta os naturalizados absurdos da época que infligem sua liberdade.
Antes de tudo, o experimento da vez é passado em um mundo steampunk, onde elementos vitorianos e futuristas coexistem, de forma altamente estilizada e artificial. Nesse sentido, vale lembrar que, em A Favorita (2018), o diretor começou a usar, em profusão, lentes grande angulares para distorcer os corredores do castelo, ilustrando os graves desvios de moralidade da corte. Já em Pobres Criaturas, a distorção do mundo é mais severa ainda: o uso dessas lentes é maior e mais intenso, o que poderia sugerir que a percepção de Bella é a de que o universo no qual está inserida é estranho, disforme. Inclusive, as imagens, sob o efeito dessas lentes olho de peixe, além da estilização das cores, ora hiper-saturadas, ora sem saturação alguma, criam uma sensação que é, ao mesmo tempo, psicodélica e infantil, o que contrasta muito com a sobriedade esperada do “mundo real”. Além disso, a trilha musical de Jerskin Fendrix ilustra muito bem essa imprevisibilidade infantil da narrativa ao mesclar sonoridades cômicas, como sons de harpas desafinadas e saltitantes notas agudas que parecem ter saído de uma caixinha de música, com composições exageradamente dramáticas, utilizando intensos órgãos de tubo e um corpo de violinos bastante melodramático. Dessa maneira, a subjetividade de Bella Baxter é representada simbolicamente por meio da linguagem cinematográfica, considerando a idade mental da protagonista: uma adulta recém-nascida.
No caso, Bella é fruto de um experimento realizado por Godwin Baxter, a quem referem-se como “God”, deixando evidente o sarcasmo do criador de mundos em questão, Lanthimos, em exibir as qualidades onipotentes de um criador. De início, ela é comparável a um bebê: tem dificuldades motoras e profere palavras desconexas. Godwin, então, leva Max, seu aluno, à sua casa para que escreva relatórios científicos sobre Bella. Nesse momento, enquanto tentam mantê-la presa e arranjá-la um casamento, o filme é carregado de uma coloração em preto e branco, mas é no instante em que ela consegue ir embora que o filme, finalmente, assume suas cores vivas. Decerto, essa mudança de cor acompanha a descoberta de um mundo novo, com pessoas e costumes novos, mas também marca a jornada de emancipação das mulheres contra todos os confinamentos que passaram ao longo da História.
Assim, a incapacidade de Bella Baxter para aderir às regras da sociedade, tratadas aqui com o costumeiro humor ácido do diretor grego, resulta em episódios hilários a partir desse deslocamento e, muitas vezes, envolvem sexualidade, já que este é um aspecto central e histórico de privação feminina. Inclusive, nesse aspecto, Bella “erra” bastante, devido à sua ingenuidade inicial, em principal porque é facilmente influenciada pelo advogado Duncan. Entretanto, a protagonista acaba, por meio de seu aprendizado no mundo – advindo de interações variadas, desde com uma idosa chique até com uma dona de bordel –, sempre conseguindo dar a volta por cima pelos seus próprios meios, fazendo com que Duncan sinta-se cada vez mais fragilizado e patético. Sendo assim, diferente dos demais filmes de Lanthimos, em que as personagens sofrem em prol dos experimentos éticos construídos, aqui a narrativa permite que Bella erre e acerte, pois isso é uma trajetória necessária na vida de qualquer indivíduo. Como diz a própria protagonista, depois de muita evolução em sua maneira de pensar e agir, “é o objetivo de todo o progresso, crescer”.
Vivida com muito entusiasmo por Emma Stone, que canaliza uma excentricidade genuína sem ser irritante – aliás, pelo contrário, é engraçadíssima –, Bella Baxter entra no rol de experimentos de Yorgos Lanthimos com uma energia livre e ardente, que quebra as dinâmicas de controle, tanto da modernidade, no universo do filme, quanto na própria trajetória fílmica de Lanthimos. Ou seja, tira o peso das condições adversas nas quais a mulher é submetida — e ainda ironiza toda essa loucura.