Texto escrito por José Emanuel Santos Silva estudante de Cinema e Audiovisual da UFF, para a disciplina Teoria e Prática das Narrativas do professor Pedro Lauria.
José tem 19 anos, é maranhense, entusiasta de direção, roteiro e pesquisa no que tange o audiovisual popular e futurismo.
- INTRODUÇÃO
A presente análise interpretativa esforça-se em propor uma leitura crítica do texto cinematográfico “A Bela e a Fera” de 2017, dirigido por Bill Condon, nas circunstâncias do atual tempo e espaço e mostrar os sentidos construídos, apoiando o cinema em sua tarefa mais importante, ser espaço discursivo. Pretende, outrossim, e antes de qualquer discussão, descrever e analisar o significado da reflexão sócio literária, provocado pelo filme, que possibilita a crítica contemporânea do cinema e concebe-o não como simples passatempo, mas como veículo de disseminação de ideias e propiciador de reflexão. Não há como negar que o espaço cinematográfico é um espaço discursivo, pois o filme é um texto atravessado e construído por materialidades em redes de sentido.
O live-action ultrapassou a marca de US$ 1,264 bilhão (mais de R$ 6,8 bilhões) nas bilheterias mundiais. Com isso, a produção protagonizada por Emma Watson se firmou como a segunda maior arrecadação do ano de 2017, perdendo apenas para o 8º episódio da maior saga cinematográfica da história, a ficção científica “Star Wars: Episódio VIII – Os Últimos Jedi”. Em 2023, seis anos após a estreia, o maior musical com atores da história “A Bela e a Fera” ainda ocupa uma posição privilegiada no ranking de maiores bilheterias do cinema mundial. Além disso, somente o trailer bateu recorde de mais visto da história em 24 horas à sua época: acumulou 127,6 milhões de visualizações em seu primeiro dia no ar. Nas bilheterias do Brasil, alcançou a marca de 2 milhões de entradas, fascinando o público juvenil! Eis a constatação mercadológica do impacto do filme.
O problema de pesquisa enfrentado foi “que sentido(s) essa versão contemporânea do clássico atemporal “A Bela e a Fera” pretende construir, sobretudo, na população juvenil?” com o objetivo explícito de interpretar o discurso proposto na obra cinematográfica.
- “A BELA E A FERA”: Fontes e versões
2.1 HISTÓRIA VERÍDICA
A história de “A Bela e a Fera”, por incrível que pareça, pode ter sido baseada num episódio baseada num episódio verídico, pelo menos em parte (Lacerda, 2016). Essa fonte histórica seria o caso de Pedro González, um espanhol nascido no arquipélago das Canárias, em 1537, e que apresentava a chamada “síndrome do lobisomem”, cientificamente conhecida como hipertricose, que é o crescimento desproporcional dos pelos.
Pedro González, esse é o seu nome, aos dez anos de idade viu-se presenteado pelo próprio pai a Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. A caminho da Holanda, o navio no qual Pedro González viajava foi atacado por corsários franceses, que mandaram o menino como animal de estimação a outro monarca, agora o rei da França, Henrique II. O rei decidiu educá-lo e transformá-lo em “humano”, ensinando a ler e a escrever e batizando-o de Petrus Gonsalvus. Com a morte do rei, a rainha viúva Catarina de Médici tornou-se a proprietária de Petrus e o casou com uma bela mulher que desmaiou ao vê-lo pela primeira vez. Essa é a parte da história verídica que guarda algum paralelismo com o enredo de “A Bela e a Fera”.
2.2 A VERSÃO CLÁSSICA
Uma das versões mais conhecidas foi registrada pela escritora francesa Jeanne-Marie Leprince de Beaumont em 1756. Nessa versão encontramos uma Bela um pouco submissa, que aceita a Fera como seu marido por ele ser um homem bom e que cuida dela, não importando sua aparência exterior. Esse comportamento de Bela é visto como uma forma de conformar as meninas da época, que eram obrigadas a se casar com homens mais velhos que eram escolhidos por suas famílias.
2.3 A VERSÃO ORIGINAL DE “A BELA E A FERA”
Em 1740, dezesseis anos antes que Madame de Beaumont popularizasse a história de “A Bela e a Fera”, sua primeira versão havia sido publicada no livro La Jeune Américaine, ou Les Contes Marins, de outra escritora francesa, Gabrielle-Suzanne Barbot de Villenueve. (Lacerda, 2016). Na versão original, a Bela não aceita facilmente a Fera simplesmente porque ele lhe proporciona todos os luxos existentes e ser muito bondoso. A Bela dessa versão é uma heroína que preza pela afinidade de sentimentos e tem ideais dos quais ela não abre mão, sempre muito correta com as pessoas, inclusive com as irmãs que a tratam com desprezo.
2.4 O “CLÁSSICO DISNEY” DE 1991
Esta é, sem dúvidas, a versão mais famosa do conto. A animação de 1991, dirigida por Gary Trousdale e Kirk Wise foi o primeiro filme do gênero de animação indicada ao Oscar de Melhor Filme.
O clássico Disney é visualmente estupendo e narrativamente uma obra-prima, ao unir diversos elementos comuns aos contos de fada com outros, em menor escala, bem modernos, mais especificamente exemplificados por meio de sua protagonista. Bela é uma garota à frente de seu tempo, insatisfeita com a vida que leva, mas, ainda assim, feliz. Ela quer deixar o campo e partir para a cidade; e quer ler quantos livros forem possíveis. Diferente das princesas Disney, a personagem principal preza por uma independência que a deixa mais carismática do que suas colegas de estúdio. (Texto original disponível aqui).
Bela enfrenta seus desafios, sem precisar da ajuda de ninguém para superá-los. Não dá a mínima para Gaston, o forte mas arrogante rapaz que deseja casar-se com ela a qualquer custo. O roteiro, nascido da colaboração entre nada menos do que onze pessoas, inspirado no conto de Jeanne-Marie Le Prince de Beaumont, dá à heroína a chance de escrever seu próprio destino sem que grandes impossibilidades sem ponham a sua frente, tornando possível que viva um amor mais do que inusitado.
Baseado no famoso conto de fadas que valoriza a essência do ser humano em detrimento da beleza externa, “A Bela e a Fera” consegue unir duas das características mais marcantes das animações da Walt Disney Pictures: o traço e o lado musical. Desenhado à mão, o longa-metragem exibe uma beleza rara de ser percebida nos dias atuais. Há um tom artesanal que explora o lado sombrio da história, por vezes deixando personagens não tão nítidos justamente para que possam melhor compor o clima necessário para aquele instante. Esta imperfeição proposital traz ao traço da animação uma beleza encantadora, ampliada ainda mais pelo inevitável contraste com as animações computadorizadas dos dias atuais, que tanto prezam a nitidez do que é exibido. (Texto original escrito por Francisco Russo disponível aqui)
Em sua crítica, Francisco Russo ainda elege “A Bela e a Fera” de 1991 como um dos filmes que melhor soube captar a sensação do apaixonar-se. Desde a animosidade inicial até o “É claro que voltei”, frase de Bela que constata o quão óbvio era o sentimento entre os dois, há um percurso conduzido com delicadeza, de forma que cada passo seja construído a partir de sensações e respeito mútuo. Como um dos personagens diz, “estamos vendo alguma coisa acontecer”. É a magia da paixão, poucas vezes exibida nas telas de forma tão cativante.
2.5 O LIVE-ACTION “A BELA E A FERA” DE 2017
Era uma vez um príncipe insolente e superficial que vivia em um pomposo castelo. Em uma noite de chuva, uma mendiga idosa busca abrigo no palácio, onde é hostilizada pelo jovem monarca. Mal sabe ele que a mulher é, na verdade, uma jovem e bela feiticeira. Como castigo, ela lança uma maldição que transforma o príncipe em uma criatura de aparência bestial, e todos os serviçais, em objetos. Só o verdadeiro amor pode mudar a terrível magia.
A maldição abre a animação “A Bela e a Fera”, de 1991, e também a nova versão da Disney com atores de carne e osso – o formato chamado de live-action. Enquanto, na primeira, um desenho em mosaico de vidro apresenta a gênese do feitiço, no longa de 2017 o espectador vê a sequência se desenrolar durante um grandioso baile oferecido pela futura Fera. A mudança é uma das sutilezas que separam e, ao mesmo tempo complementam, as duas produções da Disney. (Carneiro, 2017)
Se no começo dos anos 1990, a arte de fazer animações ainda não havia passado pelo grande salto dado pela tecnologia na virada do século, hoje o estúdio Disney conta com o melhor na captura de movimentos para criar um candelabro com feições humanas e uma Fera flexível, apesar das pernas de pau e do traje musculoso carregado por Dan Stevens. A técnica evoluiu nos 26 anos que separam os filmes, mas a magia da história, que data de meados do século XVIII, continua intacto.
Emma Watson, a jovem feminista do momento, é a personificação atualizada dos pensamentos da criadora Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, outra figura feminina forte em seu tempo. Quando lançado, em 1740, o romance de Villeneuve que lança no imaginário coletivo as personagens Bela e Fera foi visto como uma crítica ao mercado de casamentos, em que o destino das mulheres era comercializado juntamente com seus dotes. Bela pode e quer escolher por conta própria, embora a virtude a empurre à união com a Fera, à medida que descobre a pureza do monstro. Para ela, importa mais o caráter que a beleza, mais os livros da imensa biblioteca da besta que os vestidos de luxo que ela pode lhe oferecer. Essa essência, a animação e o filme mantêm.
A animação custou 25 milhões de dólares para ser produzida e faturou oito vezes mais, o filme com Emma Watson sai de uma base bem mais alta. Ele está orçado em 160 milhões, montante a que se soma uma quantia semelhante, gasta em distribuição e marketing. O esforço de cerca de 300 milhões de dólares foi conduzido pelo diretor Bill Condon que conseguiu pincelar novidades, como novos números musicais e complementos narrativos, sem desrespeitar a fórmula de sucesso cravada em 2D.
Portanto, reconhece-se, desse gênero narrativo de “conto de fadas”, que no folclore de vários povos, há registros dessa vertente literária que focaliza o poder do “encontro humano” como revelador e modificador do próprio ser humano.
- ANÁLISE
3.1 MENSAGEM ESSENCIAL
O tema principal que atravessa todas as produções deste Conto de Fadas, inclusive a recém-produção cinematográfica em destaque neste trabalho é, ao lado de subtemas específicos, o reconhecimento do “mistério” humano (a complexidade humana, exterioridade e inferioridade) (des)vendado unicamente pelo olhar: “os olhos são janelas da alma” percebendo, nitidamente, que Beleza e Feiura são questões de perspectiva humana: “A beleza está nos olhos de quem vê”.
Nesta nova encarnação do filme, o centro da história é o mesmo de sempre, o perfil da Bela (interpretada por Emma Watson) personagem independente, forte, corajosa, apaixonada pela leitura, que ensina a importância de olhar para o interior das pessoas, não se submete à conduta machista e tem a missão de libertar o pai (interpretado por Kevin Kline), preso no castelo de um ser assustador, a Fera (interpretado por Dan Stevens) que se mostra mais sensível e menos “fera”, no que tange o comportamento e personalidade que carregavam certa monstruosidade mais acentuada, do que nas versões anteriores. Uma mágica terrível fez com que os empregados se transformassem em objetos falantes, e o conto de fadas só termina quando a Fera descobre o amor verdadeiro.
Vale perguntar-se por que “A Bela e a Fera” segue sendo tão atraente, mais de 350 anos depois que Madame Leprince Beaumont recontou a história original de Gabrielle Barbot. A fábula com certeza alerta para o risco da aparência enganadora – um tema sempre atual na sociedade da imagem -, da mesma forma que a fala mais forte da Bela é quando diz que não se pode ser feliz sem ser livre.
A mensagem essencial do conto mantém-se, pois, intacta nesta nova versão: Há necessidade de aprender a olhar no interior do outro onde mora a sua beleza, muito além do preconceito e da aparência. A narração introdutória do filme atesta essa ideia: “Não se engane pela aparência, pois a beleza está no interior” (Cf. Narração introdutória do Filme).
3.2 O FEMINISMO: perfil da Bela
O vocábulo “feminismo” passou a ser usado recentemente, no século XX, e marca a introdução da perspectiva de gênero nos estudos, nos discursos e nas relações humanas, por vezes positiva e por vezes ideologicamente, embora com um nexo comum: lutar pelo reconhecimento de direitos e oportunidades para as mulheres e, com isso, pela igualdade de todos os seres humanos. (Garcia, 2015). Empregado inicialmente nos Estados Unidos, em 1911, no lugar das expressões, anteriormente utilizadas, como “história das mulheres”, “movimento das mulheres”, “problemas de mulheres”, “liberdade da mulher”, entre outras.
Já a filósofa e escritora Michelle Perrot (2017) aduz que a autoria foi dada a diferentes pessoas ao longo da história, inclusive imputada ao co-criador do “socialismo” Pierre Leroux, ou ainda à Alexandre Dumas Filho, no ano de 1872 que, de forma pejorativa associava o feminismo a uma doença de homens “efeminados”. Menciona-se também que em 1880, Hubertine Auclert, uma sufragista francesa, declara-se orgulhosamente “feminista”. Seja como for, “feminismo” é, hoje, um vocábulo globalizado e refere-se a um movimento raro de militância e teoria – das mulheres! – que produz postura crítica autoconsciente diante da ordem existente que afeta mulheres “como mulheres” (Barthlet, 2012, p.25 apud França, 2010).
Não existe apenas um tipo de feminismo, mas vários, seguindo diferentes correntes de pensamento, mas constituídos pelo fazer e pensar das mulheres nas variadas partes do mundo. Trata-se, como atesta a autora supra citada, de uma teroria política mediatizada pela prática social, constituindo como uma forma do feminino estar no mundo.
Em sentido amplo, pode-se afirmar que sempre que as mulheres – individual ou coletivamente – criticaram o destino injusto e muitas vezes amargo que o patriarcado lhe impôs e reivindicaram seus direitos por uma vida mais justa estamos diante de uma ação feminista. (GARCIA, 2015, p.13)
Intitulado como desenho-símbolo da chamada Renascença da Disney, quando o estúdio buscou se reinventar, na virada dos anos 1990, “A Bela e a Fera” já apresentava uma protagonista mais independente, cuja paixão pelos livros e a capacidade de ver além das aparências seriam cruciais para a transformação da Fera em príncipe.
Na nova encarnação do filme, a atriz Emma Watson participou junto ao diretor Bill Condon da transformação feminista da protagonista. A atriz que se declara ativista, e embaixadora da ONU Mulheres, tornou a personagem mais feminista: “Meu ativismo e meu trabalho andam lado a lado. A intenção era, sim, fazer uma princesa feminista” (GRAÇA, 2017). A atriz rejeitou o uso do espartilho e salto alto no figurino, por exemplo, como forma de negar estereótipos de gênero.
Disfarçada de princesa – título dado pelo estúdio à personagem pelo seu impacto em empoderar outras meninas, já que narrativamente ela só se torna princesa de fato no fim da história –, revela-se forte e inocente, encarna o feminismo contemporâneo que luta pela “libertação da mulher”. Por isso, Bela seduz pela imagem de mulher autônoma: não é medrosa, não se importa em ser taxada como esquisita pela sua intempestividade, ou seja, pensar para além de seu tempo e por gostar de ler, enfrenta a libertação do pai e diz não a um relacionamento com um homem idealizado à sua época.
“- Eu posso ser uma garota do interior – disse Bela, subindo os degraus com Gaston em sua cola. Ela parou de repente e se virou para encará-lo, – Mas não sou uma garota comum. Sinto muito, mas nunca me casarei com você, Gaston” (Rudnick, 2017, p.46).
Bela não se submete à conduta machista. Sua “imagem” fascina os telespectadores, pois, além de romper com os paradigmas de submissão da mulher e seu suposto desinteresse pelo conhecimento e pela cultura, mostra-se uma mulher gentil, firme e que deseja o mesmo para outras mulheres, como visto no início do filme quando ela ensina uma garotinha a habilidade da leitura, não comum às mulheres da época, mas que lhe permitiu conhecer o contexto em que nasceu: uma Paris tomada pela peste bubônica, num pequeno casebre.
“Nós nunca vimos moça tão estranha, especial esta donzela, nem parece que é daqui, pois não se adapta aqui, todo mundo acha que ela é filha de um maluco, mas todo mundo diz que ela é bela.” (Da trilha sonora, adaptada).
Identifica-se ainda as mensagens de relacionamentos novos na relação com os concidadãos, com funcionários do castelo e, especialmente, Fera: amor verdadeiro, no qual a beleza interior predomina em detrimento da aparência física. É isso que atrai, ela é uma “princesa” que ousa sonhar, e vive o amor em sua totalidade, não apenas romanticamente. Bela consegue amar Fera muito antes de se apaixonar, isso que caracteriza sua inteligência.
Bela é uma antiprincesa dos moldes elitistico-capitalista. Filha de um artista que necessita sair de casa para vender suas obras, é singela sem ostentar riqueza nem cobiça ao trono do poder, ideia que nem passa pela cabeça da garota que apenas deseja viver “em um mundo bem mais amplo” maior do que a vida no interior. O filme é um manifesto feminista? Essa afirmação parece forçada, mas transparecem mensagens de reconstrução da figura e vida da mulher: o feminismo, talvez “imperfeito” (expressão de alguns críticos).
Talvez a mensagem mais preocupante de “A Bela e a Fera”, para muitas críticas feministas, não esteja na própria Bela, mas sim na Fera, com sua sedução de força bruta. E que bela não representa a síndrome de Estocolmo (paixão pelo carcereiro). Ela foi capturada, mas ela o transformou, e não virou um objeto.
3.3 O MACHISMO/NARCISISMO: perfil do Gaston
“Narcisismo” nos remete imediatamente a “Narciso”, um personagem da mitologia grega. Mito é um jeito de pensar (SILVA, 2009 p.30). Do mito compreende-se o conceito de “narcisismo”: filho do deus Céfiso, protetor do rio, e da ninfa Liríope, Narciso era um jovem dotado de uma beleza singular. O oráculo no dia de seu nascimento foi: “Este menino jamais poderá ver a própria face, porque no dia em que isso ocorrer, morrerá”. Preocupados, o casal retirou do palácio todos os espelhos… para evitar a contemplação. Na adolescência, deparou-se com uma fonte de águas claras. Olhando-as viu-se refletido nas águas. Admirado, não mais conseguiu desviar os olhos daquele rosto que era o seu. Fascinado por si mesmo, contemplou a sua imagem até morrer afogado nessas águas. Ali nasceu uma das mais belas flores da flora grega: narciso.
Essa narrativa mitológica pode ser transportada para descrever o comportamento humano. O termo “narcisismo” foi usado inicialmente pelo psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911). Freud também utiliza o termo na sua teoria de compreensão desenvolvimento psíquico humano. Ambos caracterizam o narcisismo como uma patologia na forma do amor próprio.
Num diagnóstico da atualidade, o sociólogo Zygmunt Baumann caracteriza esse momento histórico de “tempos líquidos” ou “sociedade líquida” fazendo ver que, inequivocamente, estar-se vivendo num mundo sem firmeza de referenciais causando uma perturbadora crise de identidade.
Aprendeu-se que, em princípio, as pessoas se constituem, por um lado, pela herança de valores, regras e conteúdo que cada um recebe de sua cultura e, por outro lado, pelo esforço pessoal de corresponder especificamente (do seu jeito) a essas expectativas, encontrando o “seu lugar no mundo”, sendo “alguém único”, uma identidade.
Quando as expectativas (ou imagens do que se poderia ser) propostas são “líquidas”, desprovidas de firmeza, voláteis – como é a contemporaneidade – o indivíduo, “único administrador da ‘política de vida’” (Baumann, 2012 p.23) enxergando exclusivamente sua autonomia recusa o patrimônio herdado e, para ser alguém, só resta correr atrás de imagens agradáveis aos outros. Esse é o narcisismo contemporâneo.
Muitos teóricos concordam que, em nossa época, diluem-se os valores e as referências tradicionais, e talvez, momentaneamente, prevaleça a caça às imagens agradáveis (aos outros). Os mais radicais afirmam que o sujeito contemporâneo é narcísico, ou seja, se constitui apenas segundo a sedução de imagens que o mundo lhe propõe, e com as quais ele tenta – na falta de identificações – arrumar uma identidade.
Outro autor da atualidade, Giles Lipovetsky chama a atenção para as consequências disso: um vazio existencial. Narciso é a figura mitológica modelo.
Para além da moda e da sua espuma ou de certas caricaturas que se fazem, aqui e ali, deste neo-narcisismo, o seu aparecimento na cena intelectual tem o interesse essencial de nos obrigar a ter em conta, em toda a sua radicalidade, a mutação antropológica que se realiza diante dos nossos olhos e que todos nós sentimos, cada um à sua maneira, ainda que confusamente. Instaura-se um novo estádio do individualismo: o narcisismo designa a emergência de um perfil inédito do indivíduo nas suas relações consigo próprio e com o se corpo, com outrem, com o mundo e com o tempo, no momento em que o capitalismo autoritário da a vez a um capitalismo hedonista e permissivo. (Lipovetsky, 2005).
O ator Josh Gad, que interpreta LeFou, comentou o filme, em entrevista à revista People: “Gaston é um personagem que usa seu charme ofensivo para convencer as pessoas a atacarem quem elas não conhecem. Pessoas que são diferentes, diz ele, representam um perigo. Acho que esse tema é tão relevante hoje quanto há 350 anos, quando “A Bela e a Fera” foi escrito. Então é isso que eu espero que as pessoas tirem disso: autoanálise.”
O convite do personagem Gaston, assim como na animação de 1991, é provocação contra o machismo e narcisismo. O próprio LeFou, companheiro de aventuras de Gaston, destaca – traído pelo pretendente de Bela – que há um monstro nessa história, e não é a Fera. Gaston é violento, não respeitoso, ciumento. Ele vê o mundo como espelho para o seu brilho. Incita a multidão, despreza a independência de Bela e tenta repetidas vezes, matar a Fera. No início, a Fera não se diferencia muito de Gaston, e por isso é punida pela feiticeira com o fardo da aparência horripilante. Livrar-se dela e de Gaston, é necessário para o pleno desenvolvimento humano dos personagens.
Gaston surgiu como imagem que seduzas as irmãs da Bela e todas as pessoas que, sem referenciais, optam pela exterioridade e materialidade. Esse personagem deixar bem claro que sempre vão ter pessoas que se importam mais com status e aparência física do que com o que existe dentro de cada um.
Gaston é o primeiro vilão homem em filme de princesa. Ele acredita que é seu direito, e um favor a Bela, tê-la como esposa. Gaston é um vilão particularmente detestável, ele está sempre encontrando uma maneira de se impor pelo privilégio social do qual desfruta, forçando Bela, ameaçando o pai idoso da garota com acusações de insanidade e organizando a população para linchar a Fera.
3.4 A FEIURA: perfil da Fera
Uma fera não tão fera assim: é o que se percebe nesta nova versão. Apesar da aparência, dá para perceber que existe algo a mais nessa personagem. A Fera, em contraponto com outras versões, é mais sensível e “menos fera”, no que tange seus comportamentos e personalidade.
O ponto de confirmação do amor parte de Fera. “Eu a deixei partir porque a amo”, diz aceitando a condição de monstro. É ela quem o resgata, voltando. Mas vale perceber a inicial hesitação de Bela diante da nova figura que surge. Desconfiada, ela toca seus cabelos, o plano então se fecha nos olhos do príncipe para selar o reconhecimento.
3.5. A TRAMA HOMOAFETIVA
É um exagero afirmar a existência de uma “trama homoafetiva”. A versão em carne e osso de “A Bela e a Fera” estreitou ligeiramente, um elemento novo: sentimentos homoafetivos. LeFou, o serviçal do arrogante Gaston que poderia passar por bajulador ou por apaixonado é, simplesmente, alguém confuso sore seus desejos, alguém que está descobrindo sentimentos
Jornalistas que assistiram ao filme dizem que o tal momento gay entre os personagens LeFou e Gaston é breve e com tom cômico. Mas as reações forçaram Bill Condon, diretor do remake, a comentar o tema: “LeFou é alguém que um dia quer ser Gaston e as imagem o atrai, apenas isso. Josh fez sutilmente.
3.6 OUTROS TEMAS
Encontra-se, além dessas grandes percepções, o subtema da “relação intrafamiliar, pais-e-filhos”. Desprende-se ainda do perfil do personagem Bela. A comunidade considerava o pai de Bela como louco inventor. Bela não dá ouvidos às conversas e reações sociais e não aceita que o destratem. Quando ele se perde, ela vai, decididamente, à procura.
Mesmo enfrentando a Fera, Bela mostra-se tenaz no seu cuidado com o pai: “Eu vim buscar meu pai – disse Bela, tentando soar mais corajosa do que se sentia – Liberte-o”.
Outro subtema bastante explícito e recolocado com ênfase, em relação às versões anteriores, é a importância da leitura. Bela é uma jovem apaixonada por livros. Aos olhos dos seus contemporâneos era esquisita por gostar de literatura. “Essa garota é muito esquisita, o que será que há com ela? Sonhadora criatura tem mania de leitura. É um enigma para nós, a nossa Bela” (Estrofe da Trilha sonora). Mas ela não se importa, e ao entrar no castelo da Fera fica encantada com a biblioteca. “É maravilhoso – disse ela (à Fera), ciente de que não era uma resposta à altura da grandiosidade da biblioteca”.
- CONSIDERAÇÕES
Portanto, um conto tão antigo como o tempo (“Tale as old as time”) está conectado ao fato de que a mensagem essencial se mantém intacta: Não se engane pela aparência, pois a beleza está no interior. Ademais, explicitou-se uma referência ao narcisismo contemporâneo. O feminismo, o machismo, e a trama homoafetiva são recentes e trabalhados com mais vigor na nova versão.
O protagonismo de Bela repaginada em Emma Watson ao lado de Luke Evans, a verdadeira “fera”: Gaston, questionam a opressão feminina e denunciam o narcísico mundo contemporâneo. Sim, Bela é revolucionária, e Gaston, o estereótipo perfeito (branco, hétero, cisgênero, forte, machão, arrogante, machista) com um agravante: só sabia olhar para si mesmo
O perfil de Bela foi construído de modo que se sobressai à aparência, capaz de gerar identificação e empatia logo de início. Já com Fera, esse processo é mais demorado, o público só consegue se encantar por um monstro ao decorrer do longa. O interessante é pensar que a narrativa e direção, no que tange o desenvolvimento dos personagens, foram pensadas ressaltando a moral da história, fazendo uma criatura horrenda e monstruosa ser aceita pela audiência e receber seu apoio. Com isso, excluindo a grande semelhança entre o live-action com a animação que foi substancial para a comoção do público, pode-se aferir que qualquer que fossem a aparência dos atores escolhidos, mesmo que fossem corpos fora do padrão de beleza, os personagens gerariam o mesmo encantamento.
Bela sabe olhar para além de si mesma. “O essencial é invisível aos olhos” (SAINT-EXUPÉRY). Bela olha amando, Beleza e Feiura são questões de perspectiva humana.