Texto escrito por Thiago Rodrigues Medeiros de Moraes, estudante de Cinema e Audiovisual da UFF.

“O Fantasma” e a apropriação da hook up culture

“NINGUEM CONSEGUE VIVER SEM AMOR”. Em letras garrafais, esta é a frase que ilustra um dos pôsteres de divulgação de “O Fantasma” (2000), longa-metragem de estreia do realizador lusófono João Pedro Rodrigues. Figura reconhecida por seu papel na construção de um cinema queer, seu primeiro longa é um verdadeiro epítome do que se espera deste movimento – uma experiência de corpos dissidentes a qual seduz o espectador ao mesmo tempo que o repele. Ao ensaiar acerca da cultura de encontros casuais – ou hook up culture, muito comum na vivência de homens gays -, de forma crua, Rodrigues se utiliza do erotismo, da pornografia e do grotesco para retratá-la numa perspectiva um tanto pessimista.

De forma resumida, o filme aborda a vida dupla de Sérgio, interpretado por Ricardo Meneses, uma representação um tanto antissocial e animalesca – há uma certa analogia às vivências caninas – de um homem de sexualidade dissidente. Trabalhando como um gari da zona norte de Lisboa, seus dias basicamente intercalam entre a coleta de lixo nas ruas e a caça de homens para transas casuais. Entretanto, num dia qualquer de trabalho, ele conhece um belo homem loiro de encantadores olhos azuis, João, interpretado por André Barbosa, que desperta seu interesse de forma intensa, o levando a constantemente procurá-lo. Frustrado pela rejeição amorosa, Sérgio se aproxima cada vez mais de uma vivência instintiva e acaba por, nas cenas finais, se transmutar numa figura definitivamente queer – até mesmo no significado original da palavra, apontado como “estranha” -, que une o cão ao látex, o animalesco e o homoerótico.

Partindo de uma exposição da minha perspectiva, nas duas vezes que assisti o filme o associei a um retrato cru da impessoalidade dos encontros entre homens gays nas ruas, becos e banheiros urbanos. Não havia, então, passado por minhas reflexões um peso muito grande do apontado interesse amoroso. No entanto, ao ler as diversas críticas e depoimentos do próprio diretor disponíveis pela internet, me dei conta da carga pejorativa atribuída a esse retrato – intencionalmente grotesco devido à ideia de uma solidão do homem homossexual em contraste à consolidação do amor romântico. Desta forma, de fato é possível afirmar que há uma patologização dessa vivência, ponto que irei analisar mais a fundo no tópico a seguir.

A patologização da figura de Sérgio

Sérgio é uma figura instigante. Pouco adepto da conversa, sua personalidade norteou um roteiro de pouquíssimo uso da voz – e uma identidade sonora, predominantemente, de silêncios marcantes, sem nem mesmo investir efetivamente na música. Este caráter já constitui uma certa relação de estranhamento com o potencial espectador, usualmente acostumado a uma cultura muito centrada na fala. Com poucos sons, a atenção é direcionada mais ainda à imagem e ela, assim como a gestualidade do protagonista, comunica de fato. Seja com o querido cachorro do posto, os colegas de trabalho ou os homens das ruas, Sérgio se expressa através dos gestos, como que a partir de um âmago instintivo e antissocial, e de forma constantemente erótica – daí que surge a possível patologização dessa vivência.

Ao abordar questões acerca de vício, o sociólogo britânico Anthony Giddens, em seu livro “A Transformação da Intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas”, aponta que ele “pode ser definido como um hábito padronizado compulsivamente engajado, cuja retirada gera uma ansiedade incontrolável”[1]. Eis a seguinte questão: seria Sérgio adicto ao sexo sem compromisso? Apenas a partir dessa definição, talvez. No entanto, prosseguindo nas particularidades dessa patologia da autodisciplina[2], Giddens menciona um ponto interessante se pensando na narrativa de “O Fantasma”:

A experiência do vício é um afastamento do eu, um abandono temporário daquela preocupação reflexiva com a proteção da autoidentidade, genérica à maior parte das situações da vida cotidiana. Algumas formas de êxtase – aquelas associadas ao êxtase religioso, por exemplo – relacionam especificamente a experiência com a derrota ou com a perda do eu. Nos viciados, entretanto, tais sensações são em geral uma parte secular do padrão de comportamento; a sensação de deslocamento do eu é intrínseca à sensação de libertação da ansiedade (GIDDENS, 1993, p. 85)

Analisando por esta perspectiva, o perfil de Sérgio pode ser muito bem lido como o perfil de uma pessoa viciada. Há, como mencionado anteriormente, um certo processo de metamorfose do protagonista que – já sendo prenunciado na primeira sequência – se consolida nas cenas finais dos 87’. Seus flertes e transas casuais constantes seriam, então, relances dessa persona animalesca e homoerótica numa fuga do seu eu social e romanticamente frustrado. A reafirmação de tal dependência pode chegar a ser exaustante: seja com sua colega de trabalho Fátima; seu chefe Virgílio; os policiais; seus parceiros ou seu interesse amoroso, o olhar, a sugestividade e a concretização seduzem as personagens e o próprio espectador.

Dito isso, pode surgir o questionamento: de que forma se deu, efetivamente, a articulação da sedução e do grotesco?

 

A construção sedutora do grotesco

No que diz respeito ao primeiro ponto, para além da mencionada gestualidade do protagonista, há na coreografia das interações, novamente, o caráter erótico. Há diversas representações de sexo, inclusive uma assumidamente pornográfica, que constroem todo um jogo cênico que nos convida a participar daquelas situações quase táteis. O látex, o couro, o plástico, o algodão e a pele – fortalecidos pela tensão do silêncio que é ocasionalmente irrompido pelo som dos mesmos materiais em atrito – se tornam sensíveis.

Um exemplo prático disso é a cena em que Sérgio se masturba no banho enquanto lambe os ladrilhos e se enforca com a ducha – que deixa marcas evidentes -, outro é o momento em que ele transa com um policial que encontra algemado num carro logo no início do filme. Na primeira situação, há a masturbação mesclada com o BDSM e, na segunda, há o BDSM num limiar entre o estupro e o sexo consentido – visto que há, a princípio, uma resistência que se aparentemente se desfaz. Desta forma, em ambas as cenas há, em planos próximos, um erotismo performático, brutal e convidativo associado a uma prática moralmente questionada no senso comum – o que já insere o personagem um pouco nesse universo do grotesco, do bizarro e do provocativo.

Aprofundando neste caráter, o segundo ponto supracitado, pode-se dizer que sua consolidação se dá na estruturação da indumentária e da direção do ator que interpreta o protagonista.

Ao longo do longa-metragem, Sérgio entra em contato com diversas peças de roupa que o caracterizaram como, ao menos, fora do ordinário – beirando a estranheza. Na primeira cena há a presença da provocante roupa de látex – num flashforward –, mais a frente as luvas de couro e, num outro dado momento, a cueca de sua paixão retirada diretamente do lixo. Higiene e bons costumes de lado, tudo isso ainda consegue ser utilizado de forma extremamente sensual, quase que num processo gradual de experimentações que se concluem na apropriação final do látex.

Do outro lado, associado a essa construção de figurino, há um direcionamento muito certeiro, instigante e, novamente, grotesco da construção dessa figura animalesca. Em diversos momentos espalhados pelo filme, o protagonista exibe traços comportamentais que são análogos a animais ditos irracionais, mais especificamente cães. Há o deitar no chão com o cachorro; o latir para Fátima; o lamber os rostos e paredes; a instintividade violenta; o urinar na cama de seu interessa amoroso; a sua movimentação tal qual um quadrúpede e, por fim, o consumo de água e alimentos do lixo/da lama. De certa forma, tudo isso vai de encontro à crueza e impessoalidade da cultura gay de encontros casuais.

A partir do exposto, se torna perceptível a construção extremamente coerente que é realizada entre o atrativo e o repulsivo (se aproxime, se tiver coragem). A patologização surge como ponto de partida para a perspectiva pessimista da vida sem o par romântico. Desta forma, o erotismo moralmente duvidoso vai tomando plasticidade ao longo do processo de entrega do personagem de Sérgio a essa cultura e a seus instintos.

A solidão da masculinidade homoafetiva?

Na perspectiva do senso comum, observada em algumas críticas e nas entrevistas do próprio João Pedro Rodrigues[3], a representação realizada é digna do fundo do poço da vida romântica – uma vivência da solidão gay, formulada a partir de associações conhecidas tais quais o látex e a brutalidade.

No entanto, pensando nos conceitos de Giddens em relação ao vício, seria a entrega do protagonista um fardo ou uma libertação? Como apontado no trecho utilizado anteriormente, “a sensação de deslocamento do eu é intrínseca à sensação de libertação da ansiedade”, portanto, talvez seja uma questão de apologia ou não a um determinado estilo de vida. Saindo um pouco da tese da patologia da prática e considerando a mera escolha, de forma salubre e consciente, de aderir a hook up culture: seria isto um fardo ou uma libertação? Vale ressaltar, é claro, que trago estas reflexões numa perspectiva ensaística sem respostas absolutas.

Ainda assim, me parece que toda a construção fílmica realizada em “O Fantasma” tem base numa “diegese arromântica”, crua e efêmera em sua essência estética e narrativa, mas visando uma silenciosa defesa assídua do romantismo. De fato, é um “filme-ensaio” aberto a interpretações, mas com uma defesa autoral já estabelecida, como pode ser notado numa entrevista cedida por Rodrigues à Folha de S. Paulo em abril de 2001. Nela, questionado em relação às polêmicas geradas pelas cenas de sexo, retrucou afirmando que “(sua) preocupação era como filmar o desejo, como filmar um corpo. E o desejo que queria retratar era um desejo brutal. […] tive de ser brutal para dar à procura do personagem as cores de sua solidão e de seu desespero[4].

Referências bibliográficas:

GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade – sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.

Crítica de “O Fantasma”. Papo de Cinema. Disponível em: <O Fantasma – Papo de Cinema>. Acesso em: 6 set. 2021

Entrevista com João Pedro Rodrigues sobre “O Fantasma”. Papo de Cinema, 2000. Disponível em: <Entrevista: João Pedro Rodrigues – O Fantasma (PortugalGay.pt)>. Acesso em: 6 set. 2021

“O Fantasma”: Longa ronda a brutalidade do desejo. Folha de S.Paulo, 2001. Disponível em: <Folha de S.Paulo – “O Fantasma” : Longa ronda a brutalidade do desejo – 27/04/2001 (uol.com.br)>. Acesso em: 6 set. 2021

“O Fantasma”, página no Letterboxd. Disponível em: < ‎O Fantasma (2000) directed by João Pedro Rodrigues • Reviews, film + cast • Letterboxd>. Acesso em: 5. set. 2021

“O Fantasma”, página no Wikipédia. Disponível em: <O Fantasma (2000) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)>. Acesso em: 5. set. 2021

 “O Fantasma”, página no CinePT – Cinema Português. Disponível em: <O Fantasma @ CinePT-Cinema Portugues [pt] (ubi.pt)>. Acesso em: 5. set. 2021

PARRODE, Rafael Castanheira. O Fantasma, de João Pedro Rodrigues (Portugal, 2000): A beleza quimérica de Narciso. Revista Cinética, 2013. Disponível em: <Cinética | O Fantasma, de João Pedro Rodrigues (Portugal, 2000) (revistacinetica.com.br)>. Acesso em: 6 set. 2021

Sinopse de “O Fantasma”, página da 43ª Mostra Internacional de Cinema. Disponível em: <43ª Mostra Internacional de Cinema – Filme – O Fantasma>. Acesso em: 5. set. 2021

[1] (GIDDENS, 1993, p. 84)

[2] (GIDDENS, 1993, p. 86)

[3] Há abaixo o link de uma das entrevistas, mas os links no geral se encontram nas referências.

[4] Entrevista disponível em: Folha de S.Paulo – “O Fantasma” : Longa ronda a brutalidade do desejo – 27/04/2001 (uol.com.br)

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