Crítica feita por Lucas Correia Costa Lopes para a disciplina de Teoria e Prática das Narrativas, da faculdade de Cinema e Audiovisual da UFF, ministrada pelo professor Pedro Lauria.
Lucas Lopes é formado em Letras – Português/Literatura pela Universidade Federal Fluminense, amante de literatura e cinema de horror, pesquisador de poesia portuguesa contemporânea, músico e escritor nas horas vagas.
O longa Mate-me, por favor (2015) da realizadora Anita Rocha da Silveira foi recebido com louvor pela crítica internacional, estreando no Brasil com uma certa expectativa por parte do público. Nele, acompanhamos a história da protagonista Bia (Valentina Herszage), uma adolescente de 15 anos moradora da Barra da Tijuca – RJ e suas amigas da escola que têm suas rotinas transformadas quando um serial killer começa a estuprar e matar meninas em terrenos baldios da região. À medida que aumenta o número de vítimas, aumenta também o interesse de Bia e seu grupo de amigas pelos detalhes dos assassinatos e a vida das vítimas, que é acompanhada pelas redes sociais e comentários que pessoas mais próximas deixam. O longa idealizado por Anita Rocha da Silveira vem fazer parte de um certo cinema de gênero que vem se destacando na cinematografia brasileira, mas não se limita ao mesmo, aproveitando sua história para desenvolver suas personagens – Bia, suas amigas, a juventude como um todo e a própria Barra da Tijuca – e ao mesmo tempo realizar críticas pertinentes à sociedade e seus costumes.
O filme e sua atmosfera
Em uma de suas primeiras tomadas temos a câmera centralizada que foca em uma jovem em frente à bomba de gasolina em um posto. Sua expressão facial parece nos encarar, como um grito de desespero de quem não consegue, por algum motivo, pedir por ajuda. Ao fundo temos dois cenários radicalmente opostos: à esquerda jovens animados, bebendo e conversando e à direita a solidão, um profundo vazio, escuro e ameaçador.
Assim se dá o tom do filme, a diretora demonstra talento na construção do suspense e de um clima de medo e paranoia nas personagens, que não é afetado pela constante curiosidade que as mesmas demonstram pelos crimes, em dado momento as meninas conversam sobre como as vítimas se parecem com elas e como o serial killer pode ser qualquer um ao redor delas, inclusive os rapazes com quem saíam. O trabalho de montagem e fotografia do filme é também fundamental para a construção desse clima de thriller intimista que se revela em diversos pontos da trama.
É interessante destacar que estamos diante de um filme praticamente sem adultos. As personagens, todas adolescentes na faixa dos 15 anos de idade, aparecem o tempo todo sem a supervisão e/ou conselho de um adulto. A mãe da protagonista Bia é somente citada em conversas da mesma com o seu irmão como alguém que está sempre na casa do namorado e passa de tempos em tempos para deixar dinheiro. Essa ausência se dá de maneira física e também simbólica quando analisamos o momento de descoberta pelo qual as jovens estão passando e como em momentos como esse a sensação é justamente a que se passa no filme: a solidão e o vazio de não ter ninguém a quem se reportar ou aconselhar. Além de lidarem com a própria questão do amadurecimento, elas também devem lidar com o fato de estarem sendo ameaçadas pela misteriosa figura de um assassino.
Anita na condução do longa se afasta da estrutura narrativa clássica, não apresentando um clímax propriamente dito, um conflito óbvio para a protagonista ou mesmo atos bem definidos e demarcados. A obra se desenvolve gradativamente, com planos longos e simbólicos que contribuem para a atmosfera inóspita na qual se encontram os jovens da trama, apresentando os seus personagens em situações que não estão em conformidade com o mundo. A obra também se afasta de convenções e signos que classificariam o filme como parte de um determinado gênero, explorando ao máximo os limites dos gêneros do suspense e do horror.
Cabe destacar também a trilha sonora da produção, que é extremamente bem feita passando do funk ao gospel. Tal trilha está totalmente inserida na narrativa e é uma parte essencial do longa, conversando e destacando certos pontos da cultura e da vivência do grupo de jovens.
A Barra da Tijuca como um subúrbio estadunidense em pleno Rio de Janeiro
Uma das personagens essenciais para a construção do tom de suspense do filme é a própria Barra da Tijuca, onde se passa a história. O bairro é retratado como um cenário perfeito para um filme de horror tal qual um subúrbio estadunidense com suas ruas largas e feitas exclusivamente para o tráfego em carros e em veículos coletivos. O filme acerta mais uma vez ao escolher o lado claustrofóbico do bairro, o lado que fica distante da praia e é cercado por prédios e mais prédios, terrenos baldios, matagais e estradas intermináveis.
É fácil para moradores do Rio reconhecerem toda a ambientação típica desse bairro da cidade, da classe média e de sua subcultura tão bem representados no longa. Bia e seu irmão moram em um apartamento de classe média em um conjunto de prédios rodeados por terrenos baldios e mais apartamentos em construção. Os ângulos da filmagem fazem um ótimo trabalho de retratar o isolamento de tal conjunto, ao projetar os prédios em contraste com o horizonte da lagoa da barra, em um cenário inóspito e vazio, completamente distante de amparo e companhia.
Uma juventude à deriva
É importante ressaltar o excelente trabalho que a diretora realiza ao elaborar um certo microcosmo social da adolescência e suas lutas, em uma das primeiras cenas do filme temos uma das personagens contando sobre um sonho para suas amigas, nesse sonho vemos a expressão do desejo típico desta idade, a visão de um homem mais velho que se dirige à personagem e realiza essa vontade, porém o sonho rapidamente passa de um desejo para um pesadelo quando o homem a machuca e a deixa sangrando no chão até a morte. Essa narrativa é recebida pelas suas amigas com aparente naturalidade, que não a levam a sério e tratam como uma história boba, mas é fundamental para nos apresentar um tom marcante do filme: a curiosidade e o desejo das meninas pelo mórbido e um contraste constante com o desejo e a ameaça masculina quando não conseguem realizar esse desejo com consentimento.
Bia e seu grupo de amigas seguem uma rotina tediosa e pacata, passando todos os dias por um terreno baldio no caminho para a escola, terreno esse que vai ganhando novos significados ao longo da trama, principalmente após o encontro com uma das vítimas do serial killer em seus últimos momentos ao se dirigirem à escola. Tal rotina é fundamental para a construção de um simbolismo de uma geração vazia, sem perspectivas de futuro por conta de um momento atual já ausente de tais perspectivas. É como se suas esperanças e expectativas morressem um pouco a cada nova vítima, nesse sentido é importante o contraste que é causado pelo aumento de suas curiosidades e fascinação pela morte.
Talvez por isso o título do longa. Mate-me, por favor retrata uma juventude anestesiada, amortecida pela brutalidade do cotidiano, pela ausência de consolo e perspectiva de um futuro, vivendo em um marasmo social e emocional. Em certo momento do filme, temos takes em que várias personagens aparecem com ferimentos e chagas nos corpos, refletindo ali a fragilidade de suas situações mentais, que afloram no corpo físico.
Bia e sua identidade
A protagonista é um show à parte na condução brilhante dessa história. Nesse sentido, há de se destacar o ótimo trabalho da atriz Valentina Herszage que entrega gradualmente uma personagem complexa e profunda. É possível observar um processo de rigidez emocional da personagem à medida que observamos suas expressões faciais cada vez mais ausentes em um processo de despersonalização.
Bia é uma protagonista feminina fora dos padrões estabelecidos pela narrativa clássica. Podemos observar tal fato principalmente em sua relação com seu namorado Pedro, que se vê dividido entre o desejo que sente por sua namorada e a vontade de se conter para agradar a igreja, que se faz muito presente na vida dos jovens do filme à medida que os assassinatos vão escalando. Existe na personagem uma dimensão psicológica fascinante entre a pulsão e o interesse pelas mortes e o seu desejo sexual, que aos poucos vão se cruzando e se misturando existindo constantemente em uma linha tênue em sua representação.
Tal mistura é notável quando em determinado momento a protagonista vê seus desejos pelo namorado se traduzirem em violência subitamente ao enforcá-lo e receber dele uma resposta negativa quanto à relação. Momento esse que é definitivo para selar o afastamento dos dois, que antes aparentava ser gradual. Bia, porém, não se limita ao desejo ou a falta dele por parte de Pedro, seu namorado, e o procura em outros corpos.
Conclusão
Mate-me, por favor é uma impressionante viagem ao universo da juventude de classe média carioca, utilizando-se dos conflitos e dramas típicos dessa fase da vida como uma forma de intensificar o horror psicológico sutil de que constrói com os assassinatos, revelando de forma interessante uma certa apatia crônica que recai sobre a sociedade brasileira, principalmente sobre os jovens, em uma geração amortecida e suprimida pelo estresse e a violência urbana, de classe e principalmente de gênero. Não é um filme fácil de digerir, talvez pela sua ausência de clímax ou uma certa “lentidão” no desenvolvimento da narrativa, ou talvez pelo costume reforçado pelo cinema mainstream de apresentar narrativas amarradas, velozes e objetivas. É notável, portanto, como Anita constrói uma imagem muito forte de uma sociedade contemporânea e ambígua, vivendo em uma linha tênue entre o desejo e a violência.