Trabalho escrito por Diego Oliveira Menezes para a disciplina de Teoria e Prática das Narrativas da UFF ministrada por Pedro Lauria em 2023.1
Diego Oliveira Menezes, estudante de Licenciatura em Cinema e Audiovisual na Universidade Federal Fluminese (UFF) apaixonado pela sétima arte e videogames. Com habilidade em explorar nuances cinematográficas e imersão nos mundos virtuais dos jogos, ele busca expressar suas paixões através de narrativas envolventes em ambas as mídias.
No mundo cada vez mais interconectado e digitalizado em que vivemos, a proteção de nossas identidades pessoais tornou-se uma preocupação constante. O roubo de identidades é uma realidade, tema explorado de maneira profunda no jogo Metal Gear Solid V e foco do presente trabalho. Desde a sua primeira aparição no mundo dos jogos eletrônicos, a série Metal Gear Solid, dirigida e escrita por Hideo Kojima e publicado pela Konami, sempre se destacou por sua narrativa intrincada, personagens complexos, jogabilidade inovadora e sempre sendo contabilizada dentre os jogos de maior orçamento da geração de consoles que se encontrava. Dentre os diversos títulos da franquia, é Metal Gear Solid V: Ground Zeroes (2014) e Metal Gear Solid V: The Phantom Pain (2015) que apresentam uma discussão mais direta de questões relativa a conspirações e manipulações de dados pessoais
Neste ensaio, investigaremos a representação do roubo de identidades no contexto da espionagem digital, analisando como Metal Gear Solid V expõe a fragilidade das identidades em uma era marcada pela manipulação de informações e pela intrusão na privacidade. Além disso, examinaremos o impacto psicológico do roubo de identidades nos personagens afetados, bem como a natureza das relações humanas e a confiança quebrada. O jogo nos faz pensar questões éticas sobre o uso de tecnologia para manipular a identidade de alguém e os efeitos duradouros que isso pode ter.
A Natureza do Roubo de Identidades em Metal Gear Solid V:
Por meio de missões intricadas, confrontos estratégicos e infiltrando-se em bases inimigas, os jogadores são confrontados com a vulnerabilidade de suas próprias identidades virtuais e as consequências devastadoras que podem surgir quando essas identidades são corrompidas. O roubo de identidades em Metal Gear Solid V vai além de uma simples fraude ou obtenção de informações pessoais. O jogo retrata uma forma avançada de manipulação, na qual os indivíduos são substituídos por cópias perfeitas, capazes de enganar até mesmo aqueles que estão próximos a eles. Essa prática questiona a própria essência da identidade, levantando questões sobre o que define uma pessoa e até que ponto somos moldados por nossa história e experiências.
A jogabilidade de Metal Gear Solid V também reflete a temática do roubo de identidades. Os jogadores são encorajados a utilizar habilidades furtivas e tecnologias avançadas para penetrar em ambientes controlados, coletar informações e desvendar segredos. O jogo aborda a noção de que, em um mundo altamente conectado, a privacidade é uma ilusão e nossas identidades estão constantemente em risco. Apesar de ser um jogo de ficção científica, essa é uma realidade facilmente identificável e, até mesmo, metalinguística: afinal jogamos um jogo e temos nossas ações capturadas a todo momento. Entretanto, essa coleta de dados é mascarada de diversas formas como, por exemplo, um sistema de troféus. Matou mais de cinquenta ovelhas no jogo? Parabéns aqui está o seu troféu “matador de animais”, e vai ficar salvo para sempre o dia, horário e até mesmo a captura de tela do momento que o troféu foi conquistado.
Outro modo dessa coleta é pela interconectividade entre multiplataformas em que o mesmo perfil que se usa no videogame é usado num aplicativo de celular, no computador, etc. aumentando o raio de monitoramento de nossas atividades como jogador. Qual o interesse da indústria de jogos nisso? Pesquisa de mercado? Venda de dados? Um caso mais próximo de espionagem e coleta de informações é o que ocorreu em 2013 no mundo é o de Edward Snowden e o escândalo de invasão de privacidade promovidos pela CIA. Mas o monitoramento de dados vai muito além da espionagem à medida que nossas informações ganham valor comercial.
O Impacto Psicológico do Roubo de Identidades
O roubo de identidades em Metal Gear Solid V é tratada como uma das muitas armas de guerra existentes no mundo contemporâneo. Isso é especialmente apresentado por meio do principal antagonista conhecido como Skull Face, um homem desfigurado durante a Segunda Guerra Mundial e agora comandante de uma força paramilitar rival, um exército de soldados sem identidade, totalmente subordinados. A desfiguração da sua face e identidade pessoal e nacional empreendida pela invasão nazista na sua terra natal, agora é reencenada na construção de seu exército.
Uma das vítimas, a personagem Quiet se torna aliada do protagonista. Ela é uma soldada cuja identidade foi completamente violada a ponto de ela ser impedida de falar seu idioma natal assim como o próprio Skull Face o foi durante a ocupação do nazismo. O roubo de identidades afeta esses personagens de maneiras diferentes, explorando suas motivações e as consequências emocionais que enfrentam.
Ao adentrar o mundo complexo de Metal Gear Solid V, somos imersos em uma trama repleta de conspirações e manipulações de dados pessoais. A história se passa em 1984, quando assumimos o papel de Venom Snake, líder de uma organização paramilitar privada conhecida como Diamond Dogs. Ele se encontra envolvido em uma batalha constante contra forças inimigas comandadas pelo Skull Face. A narrativa do jogo destaca a importância das informações pessoais e o potencial destrutivo do seu uso indevido. Metal Gear Solid V apresenta um cenário onde a espionagem digital é uma ferramenta poderosa nas mãos de organizações e indivíduos capazes de roubar e manipular identidades para atingir seus objetivos.
O roubo de identidades tem um impacto significativo nos personagens afetados em Metal Gear Solid V. Eles são confrontados com a perda de sua própria história e identidade, além da traição e da quebra de confiança nos indivíduos e instituições que orquestraram e mantiveram o sequestro de suas identidades. Isso leva a conflitos internos e uma busca por respostas sobre quem eles realmente são. O jogo explora temas de livre-arbítrio, na questão maquínica de se sentir livre num mundo com limites e eventos pré-programados, e do quão temos poder de determinar quem somos totalmente, bem como se existe mesmo um “eu” sem um “nós”.
Faz-se importante destacar que o fato de se tratar de um jogo de videogame estabelece certas condições para a narrativa, tanto mecânicas quanto culturais da indústria de jogos. Isso se dá por meio de recursos como a plataforma em que se foi desenvolvida a obra; os sistemas e subsistemas desde de a criação de banco de dados, personagens, cenários, modos de interação, etc; as tecnologias, práticas e linguagens disponíveis. Como o jogo se comunica com o jogador? Como o jogo reage às ações do jogador? Que meios se utiliza para mantê-lo engajado? Troféus? Aumento dos números pipocando na tela? Questões como essas nos ajudam a compreender que a obra se estabelece numa lógica de mercado e de produção de consumidores.
Outro fator a se considerar é a relação histórica entre jogos e guerra, desde o xadrez, jogos de carta, jogos de mesa, até os jogos eletrônicos chamados FPS (First Person Shooter) que nos colocam frequentemente em simulações do campo de batalha. Essa aproximação pode remeter a construção de uma mentalidade de sistemas de poder que organizam nossas sociedades, como a noção de aliados e inimigos, vencedores e perdedores, uma hierarquização das funções (por exemplo, como o peões são peças mais descartáveis do que a torre no xadrez). De forma contrária, a jogabilidade nos jogos contemporâneos, tal como a cultura moderna, cada vez mais centra sua narrativa no indivíduo, criando a ideia de um herói, de um super agente ou espião lendário.
A Construção e Reconstrução da Identidade do Venom Snake:
Em jogos de videogame assumimos normalmente o papel de um personagem protagonista, diferentemente do cinema tradicional em que somos espectadores mais passivos. Ao longo da franquia Metal Gear assumimos o papel de um espião militar (que varia a cada iteração) geralmente usando um codinome derivado de “Snake”, sendo o mais notável deles o agente também conhecido pelo codinome Big Boss (que quando não sendo protagonista, é frequentemente retratado como antagonista). Em Metal Gear Solid V: The Phantom Pain, não é diferente: o jogo inicia e você é o protagonista na cama de operação, despertando de um coma de nove anos. O médico faz perguntas a você como “Consegue me ouvir?”, “Lembra seu nome?”, “Quando nasceu?”, já nos confrontando com a confusão da situação. O médico diz que você sobreviveu a uma explosão e que seus inimigos o perseguem, portanto, para sua segurança será necessário mudar sua aparência. Pela primeira vez, na franquia, você é apresentado a um sistema de criação da aparência do seu personagem. Contudo, ao longo do jogo, sua aparência permanece sendo a icônica de Big Boss, o que é uma estranheza que aos poucos você mesmo, como jogador, vai esquecendo. Você é Big Boss agora cunhando o codinome Venom Snake.
A virada na trama do personagem Venom Snake, essa identidade que você assume ao longo de mais ou menos trinta horas de jogo é que ela mesma é fruto do roubo de sua identidade perpetrado tanto pelo Big Boss original e seus aliados quanto pela narrativa e mecânica do jogo. Em outras palavras, a história faz uso das especificidades de ser um jogo para pôr em questão a própria identidade do jogador.
Inicialmente, Venom Snake acredita ser Big Boss, o lendário soldado e líder da organização militar Diamond Dogs, e é tratado como tal por todos que encontra. Do mesmo modo, você é levado a acreditar que seu papel no jogo é ser Venom Snake. No entanto, é revelado que ele é, na verdade, um soldado que foi psicológica e cirurgicamente alterado para se parecer com Big Boss e agir como uma cópia perfeita dele. O processo envolveu uso tanto de tecnologias de manipulação cognitiva (incluindo uso de tecnologias de Realidade Aumentada) e procedimentos estéticos. Essa revelação cria uma tensão na narrativa, levando Venom Snake a questionar sua própria essência e propósito. Contudo, a narrativa do jogo se interrompe ali, deixando o personagem e principalmente o jogador processando esse fato fora da tela.
O roubo de identidade sofrido por Venom Snake nos mostra o poder da manipulação e o quanto ela pode afetar nossa percepção sobre nós mesmos ao manipular também o jogador. Ele pode ser confrontado com a questão de quanto controle realmente tem sobre sua própria vida. Isso levanta questões mais amplas sobre a formação da identidade e até que ponto ela é moldada pelas circunstâncias. O jogo nos faz questionar se a identidade é algo inerente ou se é fortemente influenciada pelas experiências vividas e pelas expectativas que nos são impostas pelos outros. Essa reflexão nos convida a repensar como percebemos e definimos nosso próprio lugar na vida real.
Reflexões Éticas sobre o Roubo de Identidades:
Metal Gear Solid V levanta questões éticas importantes sobre o uso da tecnologia para manipular a identidade de outra pessoa. A prática retratada no jogo é extremamente invasiva e viola a privacidade e a autonomia dos indivíduos. Essas reflexões nos levam a considerar as implicações éticas do roubo de identidades no mundo real, especialmente em uma era de avanços tecnológicos rápidos e crescente preocupação com a segurança digital.
O roubo de identidade enfrentado por Venom Snake e outros personagens na trama é um elemento fundamental das temáticas abordadas. Contudo, a história ainda não consegue se desenvencilhar da narrativa individualista heroica e de rejeição a instituições e estado, não propondo formas de organização política para lidar com questões coletivas. A franquia Metal Gear frequentemente parece tentar elaborar uma crítica as condutas políticas militares dos Estados, que levam a constantes guerras. Porém segue exaltando feitos individuais como o super soldado “certo” fosse uma esperança de salvação.
A experiência de Venom Snake nos leva a refletir sobre a natureza da identidade como uma experiencia coletiva e não individual, uma vez que ela é formulada num contexto e por relações que a sustentem. A questão da segurança de dados é, portanto, coletiva e que deve se manter no radar de nossas reflexões sobre a vida dentro e fora do mundo virtual.
A fragilidade das identidades é um tema central que alimenta a trama complexa e as reflexões filosóficas do jogo. Ao explorar as implicações do roubo de identidades nos personagens e na narrativa, podemos ser desafiados a refletir sobre a natureza da identidade, livre-arbítrio, ética e relações de confiança. O jogo serve como um lembrete poderoso das preocupações e medos da nossa sociedade moderna, apresentando alguns problemas ligados ao controle de dados e privacidade em um mundo cada vez mais digitalizado e como isso está ligado a indústria da guerra e do consumo. Se usando da mídia de jogos eletrônicos e seus potencias de interatividade a obra inclui o jogador como parte da narrativa, como se integrasse a quarta parede à aspecto principal do tema narrativo. No final, quando olhamos no espelho uma ultima vez vemos o personagem cuja aparência criamos no início do jogo se alternando com a aparência de Big Boss. Venom Snake parece escolher a face de seu agressor. Talvez a questão seja se seguiremos também escolhendo a face de nossos agressores.