Crítica e entrevista feita pelo colaborador, Marco Antônio Bonatelli, mestrando do programa de cinema e audiovisual da UFF.

Luz nos Trópicos (2020), de Paula Gaitán, nem de longe se aproxima do que eu definiria como ‘o meu tipo de cinema’. Eu desconfiava que poderia ser o caso lendo a sinopse oficial do filme e suas críticas mais efusivas, que o posicionam como possível marco para o experimentalismo audiovisual brasileiro. Esclareço: minha pesquisa de mestrado tem como objeto de estudo um gênero cinematográfico dos mais populares. Os longas-metragens presentes na minha lista de mais estimados se adequam a códigos de linguagem sem muitos revisionismos. Contudo, em 259 minutos, Luz nos Trópicos se revelou uma das mais interessantes obras que já pude conferir em uma sala de cinema – estreada em exibição única, no sábado 26 de agosto, no Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense. A diretora estava presente na ocasião e desejou uma boa jornada a todos antes da sessão, o que pensei ser o tipo ‘audácia na medida certa’. Ela ainda, mesmo tendo que se ausentar antes dos créditos por conta do cansaço de uma viagem recente e da programação agitada que teria nos dias seguintes, me concedeu uma breve entrevista. Aproveito para agradecê-la; por ter se colocado à disposição e aceitado participar de uma produção do Observatório de Cinema e Audiovisual da UFF com toda a cortesia. Trago desse modo, uma crítica do filme e as respostas da diretora, logo em seguida.

 

Luz nos Trópicos (2020): crítica do filme

Luz nos Trópicos apresenta, em seu início, um homem desiludido com a vida fria, solitária e metropolitana que leva na cidade da Nova Inglaterra, Estados Unidos. Procurando por uma nova paisagem para se reencontrar, esse homem, nosso protagonista, decide ir à terra de seus ancestrais, no Mato Grosso – atravessando rios sinuosos do interior do Brasil para isso. Ou pelo menos essa foi minha leitura das imagens exibidas nesse trecho do filme, uma vez que não há falas ou exposições visuais que lidem com uma narrativa no sentido arquetípico da coisa. Sequer a ideia de protagonismo é solidificada: além de um segundo protagonista, mais à frente, lá para perto da quarta hora, uma terceira personagem é introduzida e assume esse posto também. Nenhum deles têm nome. Para um filme tão longo em duração se sustentar nesses termos é preciso de muita inventividade. Contudo, as coisas seguem sem muitas firulas nesse primeiro trecho, apostando em imagens deslumbrantes que, apenas através delas, pode-se captar algum princípio discursivo. Felizmente as coisas mudam à frente.

O que nos é apresentado em tela na introdução são movimentos de câmera singelos e que acompanham certos assuntos de cena (um personagem, um objeto, uma paisagem), além de imagens feitas em longíssimos planos e intervenções pontuais na imagem e no som captados em regime documental. Intervenções essas que se dão na aplicação de filtros vermelhos em determinados frames e no ganho do grave de certos ruídos. Mas, em geral, estamos diante de uma obra que se porta de maneira bem naturalista. Cruzamos rios através dessas belas imagens e enfim chegamos à aldeia do povo Kuikuro. Nela, o homem é recebido e o vemos aprender sua língua e costumes. Ele apara o cabelo e a barba, colore o rosto, se despe e, quando parece integrado ao ambiente, saltamos umas centenas de anos no passado, num corte que vem sem anunciar. Nos situamos, nessa outra realidade, diante de um grupo de expedicionários europeus que procuram por outro povoado local. Por mais que o filme continue em seu ritmo e abordagem de antes, podemos inferir que esses homens e mulher (há só uma mulher) são músicos, astrólogos, filósofos, escritores, militares por conta, entre outros detalhes, da caracterização de suas roupas, formais e inadequadas a um clima subtropical, o que não me pareceu mero detalhe. Mas logo retorno a isso.

O filme ganha camadas nesse ponto, e percebemos que desde as primeiras cenas signos visuais estavam sendo articulados de modo a criar uma sensação de ‘efemeridade humana’ constante. As árvores são enormes e ancestrais; qualquer curva de barco no rio se torna vislumbre de um encontro com o inexplorado e inacessível; percebemos que algumas cenas capazes de nos arrebatar instantes atrás serão esquecidas até o fim da projeção, dadas a duração e densidade da obra. Todos elementos filmados em ângulo baixo, no qual a própria qualidade da objetiva e economia de planos servem à construção do sublime. Temos geleiras derretidas sendo conduzidas pelos rios. E a areia que uma menina pega com as mãos fugir-lhe aos dedos pelo arbítrio do vento. Temos também o tempo presente capaz de ser obliterado por um corte na montagem – que, em sua brevíssima intervenção, elimina personagens da existência, sequer consideradas para caberem na duração de Luz nos Trópicos por mais do que alguns instantes.

O que se torna mais sintomático nesse sentido, todavia, é acompanhar como os costumes europeus são incapazes de se adequar a uma realidade em que seu ordenamento social não se justifica – aqui, o pantanal. Surgiu o que considero o grande tema do filme desse pensamento: em dado momento, uma personagem fala para outra que o mal do homem não é sua natureza, mas a forma com que resolvemos nos fundar em sociedade. A chance de vencermos o tempo, para Gaitán, parece residir na qualidade de maior beleza que há em nós: a potência da criação. Não que a ideia esteja restrita ao ocidentalismo cristão, mas Lorde Ashley Shaftesbury defendera em seus tratados reformistas que, se o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, ele se aproxima mais do âmago divino se portando como criador do que como criatura. Pois essa é a qualidade mais inerente a natureza de um criador. Gaitán chegou no que me pareceu um ponto de argumentação semelhante em Luz nos Trópicos.

A grande virada de chave, nesse sentido, ocorre depois de a comitiva falhar vezes seguidas em sua busca e, em um último esforço para encontrar o povoado indígena, os integrantes que a compõe decidem atravessar uma formação montanhosa a pé. Quebra-se aí tudo que vinha sendo construído até então. A panorâmica que atravessa a parede de rocha de canto a canto não insere mais o espaço como um local no qual pode-se perder, mas, ao contrário, o final do movimento encontra um expedicionário se agigantando em quadro, posicionado em primeiro plano e em contra-plongée nada discretos. O sujeito com o qual nos deparamos, e aqui retorno ao fio de história que estou tentando articular, demonstra em cenas anteriores ser o único capaz de encontrar formas reais de se expressar. Ele parece, nesse sentido, sintetizar o próprio processo de criação pelo qual o filme passa ao longo da exibição. Ao invés de usar de apoio o rótulo de ‘obra antropológica’ sem aderir aos princípios, como por vezes artistas medíocres fazem, a diretora olha, antes do outro, para si mesma e o seu lugar no mundo.

Os demais pesquisadores que acompanham o nosso europeu agigantado filosofam sobre pensamentos do passado, observam as estrelas distantes em efusão, se colocam em trajes cheios de medalhas no peito, mas que não transmitem respeito nenhum. Por nada disso o segundo protagonista demonstra entusiasmo. Esse homem que ganha cada vez mais tempo de tela ao longo desse segmento, contudo, recebe um longo plano no qual surge deitado entre duas árvores, procurando pelas palavras certas para se encaixarem no que quer que esteja escrevendo. Vou assumir que seja poesia. Ele encontra no mundo natural, contido em si mesmo, a força de sua razão. Luz nos Trópicos, a partir desse ponto nas montanhas, quebra, para ser mais específico, com a realidade desses tipos que vinham nos conduzindo. Nós os vemos se perderem em seus estigmas e tirarem suas roupas para dormirem nus. Os vemos deixarem de lado os prejulgamentos e se entregarem aos desejos e decepções mais humanos. Eles alucinam perante os olhos dos outros, o que surge como distúrbio e ao mesmo tempo libertação. O único que parece conseguir lidar com o abalo em sua cultura é o poeta.

A diretora não permite que a forma lhe escape ao domínio também: há uma cena em que os expedicionários cantam um rap sobre o fim do mundo dentro de uma caverna e, em outra, temos novos personagens sendo introduzidos apenas para desaparecerem em seguida, partindo a verossimilhança nos dois casos. Essa ideia está em intervenções na natureza da captação das imagens também. Nosso poeta, em um deles, ganha consciência quanto a presença da câmera e a toma nas mãos. O mais extraordinário, porém, acontece durante uma cena de pura lisergia cinética criada a partir de sobreposições na montagem. Nela, imagens surreais são se apresentam aos nossos olhos, impossíveis de serem decodificadas. Uma espécie de caleidoscópio cinematográfico. A narrativa trata de posicionar essas escolhas em voice over – a meu ver, um raro momento de lucidez que temos a partir desse ponto na montanha – quando cita “fantasmagorias” como espaços possíveis de criação.

Essa ideia que defendo se solidifica ainda mais no salto que o poeta dá no tempo e através dos rios, em umas centenas de anos no futuro, para encontrar o descendente do povo Kuikuro jogando futebol na aldeia. Ele deita em um banco próximo de si, se é que consegue compreender a situação em que se encontra, e, em mais um longo plano que rima com aquele primeiro no qual está entre as árvores, torna a escrever. Seria o efêmero, para alguém disposto a pensar como esse homem, irrelevante? Não chegamos a uma resposta, visto que o primeiro protagonista abre os olhos e está de volta à Nova Inglaterra, no meio da neve. Num piscar que dura uma fração, as horas que passamos frente à tela do cinema foram sonho? Ou talvez tenham sido realidade material mesmo, uma vez que o filme nos apresenta como passado e presente se conjugam em tela: o poeta, que parecia apenas avatar sonhado, reaparece na busca de compreender o mundo estadunidense no qual fora desperto. O sonho desbrava agora esse lugar. Ele observa, reflete, escreve. Também chega a interagir com o descendente Kuikuro, em dado momento.

O modo com que Gaitán apresenta o filme, em sua essência, também pode ser definido como um discurso sobre o olhar – e de forma até mais convincente, creio. Há muitos closes nos olhos dos personagens que denunciam isso. Seria possível me deter também nas questões ambientais e humanitárias postas ali, mas irei focar no aspecto do olhar para não fugir demais ao raciocínio. O espectador que deve, se não se lançar sobre o filme para tentar desvendá-lo, contemplar essas imagens pelo caráter de sua visão, talvez encontre o que há de mais importante para a arte de Gaitán. A maioria das coisas que descrevi até esse ponto sequer são mencionadas em Luz nos Trópicos. São lampejos de ideias em uma linguagem empregada de forma livre. Imagino que, de fato, jornadas totalmente diferentes devam surgir para cada pessoa que assista à obra. Algo que alinho ao ‘cinema em revolta’ descrito por Jean-Louis Comolli em sua crítica de A Hora do Lobo (Vargtimmen, 1968), de Ingmar Bergman. O autor define o conceito como:

Sonho sonhado. Nesse aspecto, A Hora do Lobo é o cinema em revolta, como também fora o caso de Persona – Quando Duas Mulheres Pecam. Em ambos os filmes tudo acontece como se, desde o primeiríssimo plano, os filmes tivessem vida e força próprias. Em dado momento, fraturando sua ficção (enquanto está sendo fraturado por ela) e em outro soltando as rédeas, dando a chance de se proliferar. A estrutura de Hora do Lobo é testemunha do fato de que a qualquer momento o filme é mais forte que o seu ‘autor’, e nisso reside a posição de seguir uma lógica, uma sequência de eventos, que ninguém poderia determinar de tão inexplicáveis que são – ninguém à exceção, talvez, do sonho dentro do filme.” (‘Posfácio’, Cahiers du Cinema 203, agosto de 1968. Grifo do autor. Tradução minha.)

O final de Luz nos Trópicos é, nesse sentido, um espécime desse tipo cinema (a própria abertura dos olhos do protagonista Kuikuro lembra o corte que desperta Liv Ullmann de seu transe em Hora do Lobo). Não sei se algo ali faz sentido, mesmo para a diretora – para mim não fez e nem precisou. A ‘realidade’ na qual o poeta é desperto se apresenta muito mais convoluta e estranha que o próprio sonho. Temos cenas reintroduzidas e que ganham um contexto diferente de quando as vimos pela primeira vez. E falas que se repetem à exaustão, como se estivessem presas ao presente. E contemplações de visagens conhecidas surgindo em tela para serem apresentadas mais uma vez. Ao entrar nesse terreno, Luz nos Trópicos recomeça a última das vezes e de forma derradeira (mais uma semelhança com as escolhas de Bergman pontuadas por Comolli).

Isso ocorre, pelo menos na minha compreensão, para que se estabeleça um processo de fim em si mesmo, de criação artística no seu sentido mais singelo. Talvez precisássemos passar pelas outras horas de exibição para nos libertarmos de nossa ânsia por sentidos. Talvez esse tempo fosse necessário para que entendêssemos que o local no qual essa arte se encontra é o da fé, trabalhando com e pela força das imagens – sejam elas de celular ou de câmeras capazes de realizar capturas em 4K. O tempo deixa de ser cronometrado em minutos ou horas dentro da sala de cinema. Ao contrário disso, pode ser compreendido tão somente em sua completude pelos instantes mais pessoais que nos fizeram chegar até ali. Se permitimos, Luz nos Trópicos é o encontro com a nossa própria imensidão.

Algumas palavras, com Paula Gaitán

Luz nos Trópicos é um filme que já pôde ser assistido e celebrado por muitas pessoas nos últimos anos. Qual, então, a importância dessa rodagem que a obra recebe agora pelo Brasil, em cinemas como o do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense, para você enquanto realizadora?

“Pois é, o filme começou um percurso interessantíssimo na sua exibição em algumas cidades do Brasil. Nem todas com minha presença, mas algumas vão ter essa sorte. Quando estou por perto do filme meu interesse sempre é estabelecer um diálogo com o público e ouvir as pessoas, entender o que elas acharam do projeto. Então, para mim, é extremamente importante estar em uma Universidade como a UFF, nessa tela, nesse cinema tão extraordinário. Acho que é um dos melhores do Brasil. É muito impressionante ver o filme no Cine Arte. E isso deveria ser a motivação primeira dos cineastas: que seus filmes tivessem uma circulação grande em universidades, escolas e espaços de reflexão sobre arte, cinema e vida. Esse é o intuito de realizar essas exibições únicas: não deixar o filme em cartaz, de forma tradicional, mas fazer um evento com a obra.”

 

Em entrevista ao festival Olhar de Cinema, você falou um pouco sobre como o filme passou por diversas alterações desde a sua primeira versão, de 2003. De fato, o processo de realização de Luz nos Trópicos me pareceu dos mais complexos. São paisagens diferentes e povos diferentes e línguas diferentes e tempos diferentes com os quais se busca lidar, tudo em confluência. Como essas questões, em específico, alteraram a construção da obra ao longo de seu processo de feitura? Como foi manter de pé uma linha discursiva com tamanha diversidade de formas e temas?

“Foi um processo [de filmagem] com uma equipe relativamente grande, uma análise técnica, um plano de filmagem, ida várias vezes às locações, pesquisas das locações, muito parecido com outros filmes. Nesse sentido, foi mais tradicional, porque o roteiro no meu set é um documento que toda a equipe vai ter que ver e, a partir desse documento, algumas questões de produção serão organizadas. Precisa ter uma espécie de pensamento sobre o filme como um todo. De como seriam as estratégias de filmagens, por exemplo. Eu pensava em fazer o filme de forma cronológica, sobretudo no caso da expedição, porque achava que o próprio processo da viagem da equipe junto aos atores estaria um pouco mais próximo à percepção do que aconteceu no século XIX. Quer dizer, isso era o que eu pretendia remetendo à expedição Langsdorff*1: esse ritmo de descoberta gradativa, dessas relações que iriam se estabelecer.

Dentro dos diários, e tem muitos diários dessa expedição, tanto do Langsdorff quanto de Hercules Florence*2 e de outros componentes da expedição de cientistas, eles fazem reflexões sobre o percurso, às vezes de duas, três semanas bastante monótonas, sem encontrar absolutamente ninguém pelo rio além deles mesmos. Então eu queria fazer junto da equipe essa descoberta. Inclusive, ninguém conhecia as locações, só eu. Mas essas locações diariamente estão se modificando, sobretudo no pantanal. Locações que eu tinha visto na seca… depois estavam cheias, plenas de água. As estradas viraram rios. Foi um processo muito interessante de estar novamente nas locações. É toda uma experiência, e essa experiência fez parte da filmagem, como se fosse realizada novamente. O trabalho de pesquisa já tinha ficado para trás. A vegetação se modifica muito nessa região, muito mesmo. Quando fomos a primeira vez, a quantidade de animais, de vida, que tinha pelas estradas… a gente via onças, assim, no meio do caminho, daquelas estradas transpantaneiras. Vimos jacarés… Isso foi em agosto. É o momento de seca e os animais transitam pelos espaços, pelas beiras da estrada. Já na cheia, que foi quando a gente filmou em fevereiro, entre fevereiro e março, todos esses espaços estavam com água. Os animais desaparecem, ficam ilhados. É totalmente diferente a relação espaço-temporal, e tem outras questões para serem avaliadas.

Então foi um projeto muito interessante do nosso ponto de vista como estrangeiros. Éramos todos estrangeiros ali. Mesmo sendo brasileiros, não pertencíamos a esses espaços. Não conhecíamos esses espaços. Era sempre um mistério o que poderia acontecer. Eu digo que os rios são tão protagonistas quanto os humanos [no filme]. É aí que eu entendi a ideia do humano e não-humano. De um protagonismo das forças da natureza em paralelo com os personagens do filme, dos homens, que eram a maioria nessa expedição, onde se destacava a presença feminina da Clara Choveaux*3. Foi um projeto muito interessante na filmagem, e tínhamos muita flexibilidade, pelo que eu acabei de te explicar. Cada momento era imprevisível para nós como equipe. Surgiram uma série de sequências novas… o filme tem uma coreografia diária. Um pensamento e direção de atores diários, no sentido de que era como se estivéssemos criando tudo do zero. Mesmo tendo aquela pesquisa gigante, com um trabalho de roteiro muito elaborado, no momento da filmagem foi quase cinema vérité*4. Uma câmera na mão que estava sempre prestes a encontrar essas nuances do rio, porque tínhamos que entender esses movimentos de câmera com os fluxos da água. Eu digo que o rio também foi diretor de fotografia do filme.

A parte mais difícil de filmar, pelas próprias particularidades de inserir viagens de barco – e 70% das filmagens foram feitas na cheia lá no pantanal, com a câmera, com o dispositivo, fluindo pelo rio –, foram, digamos, os travellings em geral. Digamos que poderíamos chamar assim. Mas não é o travelling tradicional. A nível de linguagem, precisamos entender melhor o cinematográfico, desde um movimento contínuo, da câmera dentro de um barco que desliza pelas águas, até encontrar esses enquadramentos. Não só fazer um filme de aventuras e tentar aquela forma bastante banal, de muitos planos e cortes, de um filme de ação. Ação, reação. Porque esse filme é, na realidade, uma anti-epopeia. Como aquele plano em movimento pelo rio até encontrar os pássaros, que é muito prolongado, um plano-sequência. Esse esvaziamento e essa prolongação criam espaços meio lacunares, meio estáticos do filme, em que eu deixo toda a parte ‘morta’ do plano, geralmente jogada fora pelos diretores que buscam fazer algo mais rítmico, mais acelerado nas montagens.

Porque deixar o plano inteiro se eu poderia cortar antes? Porque esses momentos de imobilidade, que levam o espectador ao tédio, também fazem parte do filme, da linguagem do filme. É também importante entender que, quando a gente encena uma expedição e o percurso do tempo, muitas vezes se interpreta esses elementos fazendo cortes elípticos entre um plano e outro, tentando criar essa espécie de percepção do tempo, de um ponto de vista de escrita narrativa, em que muitos planos ficam fraturados. Já eu penso outra coisa. Penso que esses tempos são os que desestabilizam o espectador, que levam ele a um estado de reflexão, de tédio mesmo. E esse estado me interessa muito. Me interessa muito prolongar certas percepções em relação à linguagem cinematográfica que estabelece outros códigos, outras relações espaço-temporais. Esse filme resgata essa discussão de um cinema mais expandido. Mas não é uma coisa gratuita, nem simplesmente estética. É também uma reflexão sobre tempos e espaços, sobre memória, sobre aquilo que é mais lacunar, sobre esse fluxo e mobilidade, sobre esses contrates: e tudo isso pode se dar dentro de um mesmo plano. O presente, passado, o futuro dentro do mesmo plano. Posicionar a própria história em um plano só. Você não precisa fazer plano/contra-plano. Então, essa é a minha percepção. Tem filmes importantíssimos do cinema brasileiro, não vou citar nomes porque são filmes consagrados pela jovem crítica, em que cada sequência tem uns trinta cortes de plano/contra-plano. Eu acho isso uma linguagem simplista.

É muito difícil fazer isso bem. Os norte-americanos dominam essa lógica de montagem. Mas eu acho que, no fundo, se tornou uma linguagem bastante obsoleta. Eu, pessoalmente, tento não aderir a ela. Eu busco colocar outras soluções menos utilizadas na montagem. Parece que não haveria um avanço nas minhas descobertas se não fosse assim. E o que mais me interessa no cinema é a possibilidade de pensar a nível de planos, de tempos, de texturas. Um pensamento mais conceitual e não tanto da história que se aproxima da novela, da telenovela. Inclusive, a nível da literatura e do romance. Então, meu cinema trabalha muito mais por cortes abruptos. E eu passo de um tempo para outro, de um século para outro, através deles. Porque é assim como eu vejo o cinema: a partir de um princípio cubista, que vai encarando uma mesma situação, um mesmo objeto, por diferentes ângulos, por vários pontos de vista, como o cubismo analítico e o cubismo sintético*5. Isso é na parte [do filme] da expedição.

Na parte da aldeia Kuikuro… eu já tinha feito um longa-metragem em 1989 na Aldeia Kamayurá. Então, já tinha trabalhado junto a uma nação indígena no meu filme Uaka, que é sobre o kuarup, uma homenagem aos mortos. Eu senti que eu tinha capacidade de fazer esse projeto com muito respeito e muita admiração no povo Kuikuro, sempre estabelecendo uma distância da câmera. É um cinema mais de observação, mas também tem mise-en-scène, tem uma relação com os atores naturais, com a Kanu Kuikuro, que é uma atriz extraordinária. Ela já fez outros longas. As Hiper Mulheres*6 é com ela. E essa parte foi feita com a câmera quase sempre em terra, no chão, no tripé. E eu acho que essa é uma parte muito forte. De muita dignidade, de muita beleza. E tem o trecho de Nova Iorque, que foi câmera na mão o tempo inteiro. Uma equipe reduzidíssima de dez pessoas viajando pelos Estados Unidos e descobrindo alguns lugares, assim, muitos misteriosos. Florestas, rios congelados, enfim. É um filme de muitas inspirações, variadas inspirações.”

 

Você poderia relatar a sua percepção acerca da importância de “radicalismos” como o de Luz nos Trópicos, para ficar em uma palavra usada antes da exibição do filme, ao cinema nacional?

“Eu não lembro de ter falado de ‘radicalismos’ antes da sessão. Eu acho a palavra um pouco exagerada, você não acha? O que eu proponho sempre ao longo do meu trabalho é ter uma coerência entre a escrita do filme e o conceito do filme geral. O filme é atravessado por novas formas e uma linguagem que eu não saberia definir com exatidão o que ela é. Esse trabalho eu deixo para os críticos. De qualquer jeito, é um processo de realização de muita liberdade formal. Então, nesse sentido, hoje em dia eu sinto que somos atravessados por um cinema mais formalista, inclusive mais acadêmico, inclusive mais conservador. De uma estética conservadora, digamos. Eu não sei se é bom ou ruim esse destaque pela liberdade formal [em Luz nos Trópicos]. Não estou julgando a qualidade do filme, mas sim sua vontade de cinema. Luz nos Trópicos trabalha com esse tipo de desejo de cinema. Não sei se ele chega lá, mas ele parte desse pressuposto, da paixão pelo cinema. Não que outros filmes não tenham essa paixão, mas acho que esse é um projeto que, enfim, tem essa coragem formal, e que talvez pode parecer muito improvisado, mas não. É fruto de muitos anos de trabalho. Eu improviso dentro de um projeto árduo de dezoito anos, fazendo pesquisas e leituras. É uma mistura de materialismo histórico com cinema onírico e inventivo que propõe formas radicais, talvez.”

 

A obra de Gabriel García Márquez lhe influenciou, de alguma maneira, na construção poética de Luz nos Trópicos?

“Eu não sinto essa conexão tão direta com o realismo mágico e Garcia Márquez*7. Talvez você conectou Luz nos Trópicos com o autor pelo fato de eu ser colombiana. De fato, venho da literatura. A primeira coisa que eu fiz na minha vida foi escrever. Tenho vários poemas publicados em antologias de poesia colombiana. Meu pai foi um poeta muito importante na Colômbia, Jorge Gaitán Durán*8. E eu sinto que a maneira como se estrutura a montagem do filme talvez esteja mais perto de obras como a do James Joyce*9, em Finnegans Wake, e Sousândrade*10. Tem obras que me tocaram muito também, como Tristes Trópicos, do Claude Lévi-Strauss, que é citado várias vezes no filme [Luz nos Trópicos], e tem um autor que pra mim significa muito: Édouard Glissant*11. E o Lautréamont*12 e Lezama Lima*13 também foram muito importantes a nível de leitura e pesquisas. E é isso. O Gabriel Garcia Márquez é um escritor colombiano fantástico, mas eu sinto que as conexões são outras do ponto de vista literário. James Joyce e Guimarães Rosa*14 têm obras com as quais eu faria paralelos a nível da escrita do filme. Ou com o Lezama Lima e Sousândrade. E, ah, outros autores importantes: Darcy Ribeiro*15, Pierre Clastres*16 e André Breton*17, em muito.”

 

*1 – expedição científica liderada por Georg Heinrich von Langsdorff (1774 – 1852) pelo do interior do Brasil. Considerada uma das mais importantes realizadas do século XIX.

*2 – Antoine Hercule Romuald Florence (1804 – 1879). Tipógrafo, naturalista, fotógrafo e desenhista francês. Membro da expedição Langsdorff.

*3 – atriz franco-brasileira. Concorreu à melhor atriz no festival de Cannes pelo filme Tiresia (2003), de Bertrand Bonello.

*4 – corrente documental francesa fundada pelos diretores Edgar Morin (1921 –) e Jean Rouch (1917 – 2004) através do filme Crônica de um Verão (1961). Ao contrário do cinema direto estadunidense, os diretores se posicionaram dentro da ação capturada por suas câmeras, assumindo a interferência do cinema na realidade.

*5 – Diferentes fases da vanguarda cubista que, como Paula Gaitán pontou, propunha observar um assunto sobre diferentes ângulos.

*6 – Documentário brasileiro de 2011 dirigido por Carlos Fausto, Takumã Kuikuro e Leonardo Sette sobre o ritual feminino realizado no Alto Xingu, Mato Grosso.

*7 – Gabriel García Márquez (1927 – 2014); autor de Cem Anos de Solidão (1967), Crônica de uma Morte Anunciada (1981) e O Amor nos tempos do Cólera (1985), entre outros.

*8 – Jorge Gaitán Durán (1924 – 1962); autor de El libertino (1954), Amantes y Outros poemas (1959) e El libertino y la revolución (1960), entre outros.

*9 – James Joyce (1882 – 1941); autor de Arábia (1914), Retrato do Artista Quando Jovem (1916) e Ulysses (1920), entre outros.

*10 – Joaquim de Sousa Andrade (1833 – 1902); autor de Harpas Selvagens (1857) e O Guesa (1888), entre outros.

*11 – Édouard Glissant (1928 – 2011); autor de La Lezarde (1957), Poética da Relação (1990) e Tout-monde (1993), entre outros.

*12 – Isidore Lucien Ducasse (1846 – 1870); autor de Os Cantos de Maldoror (1868) e Poésies (1870), entre outros.

*13 – José Lezama Lima (1910 – 1976); autor de La Expresión Americana (1957) e Paradiso (1966), entre outros.

*14 – João Guimarães Rosa (1908 – 1967); autor de Sagrana (1946), Grande Sertão: Veredas (1956) e A Terceira Margem do Rio (1962), entre outros.

*15 – Darcy Ribeiro (1922 – 1997); autor de O Processo Civilizatório (1946), As Américas e a Civilização (1969) O Povo Brasileiro (1995), entre outros.

*16 – Pierre Clastres (1934 – 1977); autor de Crônica dos Índios Guayaki (1972) A Sociedade Contra o Estado (1974), entre outros.

*17 – André Breton (1896 – 1966); autor de Os Campos Magnéticos (1920, coescrito com Philippe Soupault), Nadja (1928) e Mad Love (1937), entre outros

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