Coluna escrita por nosso colaborador Marco Antônio Bonatelli.

Marco é bacharel em audiovisual pela UFMS e mestrando em Cinema e Audiovisual pela UFF.

 

O Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF) recebeu, durante o mês de agosto de 2023, a mostra Cine Orquestra. O grupo musical, que existe desde 2019, se apresenta fazendo música ao vivo a partir de uma língua de sinais chamada soundpainting durante a exibição de filmes silenciosos. Pela primeira vez, foram realizadas cinco apresentações na cidade de Niterói num único mês. Desse modo, obras inéditas conjugadas de longas-metragens consagrados das décadas de 1900, 1920 e 1930 e música improvisada tomaram de assalto a sala de cinema. Tudo encabeçado por Taiyo Omura, soundpainter e principal rosto do projeto. Outras ações direcionadas ao público foram a oficina de introdução a esse sistema artístico e a sessão de Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, 1902), de Georges Méliès, direcionada a escolas públicas, todas ações gratuitas.

Penso eu que seja uma proposta das mais corajosas se lançar nessa direção enquanto músicos pois, na mesma medida em que há a possibilidade de pautar nomes muito famosos do cinema e atrair público, eles se colocaram na posição de ter que cuidar de imagens conhecidas e consagradas a nível global. Sublinho, afinal, que no ímpeto de empregar o soundpainting sobre tais imagens, os artistas arriscam flertar com o desleixo que a arte moderna, em certos momentos, transparece. Faço aqui essa pontuação porque a teoria do soundpainting, de maneira genérica, entende que não existem erros durante sua prática e que todo som e/ou ação é válido(s) dentro da estrutura final desse meio. Usando um exemplo que o próprio Omura deu em entrevista para a divulgação do projeto, um celular tocando no meio da plateia deve ser assimilado e convertido em música pelo soundpainter. Essa é uma questão das mais complexas ao pensar em arte e discurso, para dizer o mínimo.

Digo isso para em seguida confessar que, por mais que me considere um entusiasta e goste de acompanhar apresentações musicais, não tenho qualquer instrução proveniente de conservatório ou coisa parecida. Eu não conheço os princípios e desenvolvimentos históricos, estéticos e linguísticos da música, sendo mais direto. Contudo, o soundpainting é uma prática jovem, tendo sido concebida somente nos anos 1970. As questões mais quentes que lhe dizem respeito, desse modo, não passam por ter de cor e em detalhes os meandros que levaram a atonalidade de Richard Wagner a assombrar Claude Debussy durante toda a sua carreira. Esses desdobramentos, ao contrário, ainda acontecem no campo da experimentação e dos estudos sobre a potência expressiva da linguagem. Há poucas publicações sobre soundpainting no Brasil, e as que existem o fazem, em sua maioria, dentro da área acadêmica – dizendo respeito a relatos e descrições historiográficas e técnicas – e jornalística. Não há, por exemplo, uma tradução direta do livro de Walter Thompson, que primeiro propôs essa ideia em um grupo de jazz do qual participava, para o português. Por conta disso, fui atrás de algumas pesquisas em música e artes e tratei de usá-las como ponto de ancoragem para este texto.

De todo modo, convido o leitor com proficiência na área a me corrigir caso escreva alguma bobagem. O campo dos comentários do Instagram onde esta coluna está sendo divulgada estará aberto para isso.

Viagem à Lua (Le Voyage dans la lune, 1902), de Georges Méliès

 

Antes de me deter sobre a mostra em si, vale fazer um breve resumo sobre do que se trata o soundpainting, dado que este é um observatório de cinema: Thompson idealizou um sistema de comunicação artístico, de início estritamente musical, baseado em sinais. Nele, um soundpainter (pensem em um maestro, mas que tem como função usar desses sinais para improvisar cada apresentação que rege) orienta, de maneira livre, os seus performers, que podem ser músicos, atores, bailarinos, etc., através de sentenças baseadas em uma sintaxe própria. Na dissertação, A tecnologia criativa do soundpainting: contexto, reflexões e expansões (2022), de autoria de João Paulo Prazeres e que uso aqui como base, há um exemplo convertido em texto de como funciona a construção desses códigos em “TUTTI (quem), OSTINATO (que), FORTISSIMO (como), INICIAR IMEDIATAMENTE (quando)” (p. 18). No momento em que o gesto deve ser tornado ato pelos performers, o soundpainter se desloca para dentro de um espaço chamado “caixa”, e daí a coisa segue entre essas etapas. Por conta desses processos, Guilherme Peluci de Castro defende que o soundpainting representa em sua essência uma união entre a arte erudita e a popular. No trabalho Problemas De Performance em Improvisação Dirigida: Um Estudo Comparativo dos Sistemas de Soundpainting e Conduction® (2015), o pesquisador destaca o fato de a prática da linguagem depender de determinada tradição, envolvida na capacitação de artistas que executem funções específicas. No caso de um grupo musical, são indivíduos tocando instrumentos de difícil domínio e que devem improvisar sobre os mesmos (piano, saxofone, clarinete). Mas reside no soundpainting, justamente por conta desse elemento, também um empirismo necessário à produção de um resultado que fuja a lógica da composição, de uma partitura.

O próprio Omura produziu um trabalho acadêmico no Programa de Pós-Graduação em Artes da UNIRIO, Pichar sons, ver silêncios, ouvir gestos: uma aventura poética com o Soundpainting (2015), no qual, em certo parágrafo, descreve a ideia de criação improvisada pelo ponto de vista do artista: “Esse aspecto de caos, na realidade, faz parte também dos efeitos de outro elemento composicional, cujo conceito poderia ser resumido como layering: composição em camadas, ou melhor, criação de texturas. À maneira que se entrecruzam os fios de uma malha, o soundpainter tece a performance em Soundpainting. Suas linhas e cores são as ações dos performers. Sua tarefa então é criar caminhos por texturas sonoras, visuais, espaciais e temporais. Pelo ponto de vista do soundpainter, (o meu ponto de vista nessas experiências) é ele quem vê, ouve e sente a performance como um todo, ao mesmo tempo em que cuida de cada parte individual, na construção das frases de sinais, agindo e reagindo no jogo com o grupo de performers” (p. 88, grifo do autor). E pontua também, um pouco mais à frente, que “a poética do Soundpainting surge justamente da brecha entre a sinalização do soundpainter e a ação dos performers” (p. 98, grifo do autor). Uma dica para aqueles que se interessarem pelo tema é o canal no YouTube do próprio Walter Thompson, em que há vários vídeos publicados com lições completas. Por mais que estejam em inglês, acredito que possam ser acompanhados sem dificuldades por quem entende de teoria musical.

Tempos Modernos (Modern Times, 1936), de Charlie Chaplin

Agora, parto para descrever a mostra em si. Os longas-metragens escolhidos pelo grupo musical foram Tempos Modernos (Modern Times, 1936), de Charlie Chaplin, Aurora (Sunrise, 1927), de F. W. Murnau, O Fantasma da Ópera (The Phantom of the Opera, 1925), de Rupert Julian, A General (The General, 1926), de Buster Keaton e Clyde Bruckman, e A Paixão de Joana d’Ark (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer, exibidos nessa ordem.

Confesso que assisti apenas a quatro dessas sessões. Quis uma ironia (cruel!) do destino que, 90 minutos antes de ter início O Fantasma da Ópera, um membro da equipe de produção viesse avisar à minha porção na fila de que a nossa chance de entrar era praticamente nula. Na quinta seguinte, mesmo chegando com duas horas de antecedência para evitar o perrengue, já havia fila. Quanto a isso, creio ser válido ressaltar que a distribuição dos ingressos foi desnecessariamente caótica. Primeiro eles foram entregues uma hora antes de cada sessão. Então, isso passou a ser feito mediante a apresentação de senhas que eram distribuídas antes desse horário, mas pelo visto o formato não vingou. Os ingressos liberados com sessenta minutos de antecedência retornaram uma vez mais. Eu consigo pensar em alguns motivos para não se colocar bilhetes gratuitos disponíveis na internet. Preciso admitir, em verdade, que a alternativa encontrada não foi das melhores. Quem saiu de casa morando longe (Rio de Janeiro, imaginem) não ficou nada feliz com a notícia de que não veria o lustre cair na cabeça dos maravilhosos personagens criados por Gaston Leroux.

Quanto aos filmes, como já mencionado o evento teve a exibição de Tempos Modernos em sua abertura, o que, em minha visão, foi uma decisão acertada tanto pela maior contemporaneidade de sua linguagem, garantindo que o público não se afugentasse, quanto por tirar uma grande dúvida que eu tinha: como seria abordado um dos momentos de maior celebração quando o assunto é som na história do audiovisual? Trata-se, evidentemente, daquele em que Carlitos canta algumas palavras num bar – palavras que não significam coisa alguma, pelo menos a um dicionário. Esta foi a forma pela qual o diretor britânico manteve seu personagem mais lembrado ainda ‘mudo’, mesmo diante do cinema sonoro: um dedo do meio com finesse a todos aqueles que o acusaram de ‘se tornar obsoleto’. Um momento gigantesco na história do cinema. E como isso foi lidado pelo grupo de soundpainting? Não vou enrolar. O grupo da Cine Orquestra repetiu com exatidão a mesma canção da versão original. Algo que, confesso, gostei bastante – pensando ser muito respeitoso – embora, em outros momentos, também me senti um lugar comum e sem novidades nas apresentações. Fora alguns esboços high tech no primeiro ato do filme (que se passa na fábrica) no restante da apresentação as improvisações se mantiveram num local resignado. Não houve uma estratégia de ressemantização em momentos-chave pelo som, por exemplo. Construir música onde isso não fosse lógico, ou o contrário, talvez.

Em Aurora e A General, também eram cenas demasiadamente pontuais que ganhavam tratamento próprio. Eram balões estourando durante uma queima de fogos e animais em alvoroço. Eram a chuva forte durante uma tempestade e o trem acelerando contra os exércitos inimigos. Na pesquisa de Omura citada acima, ele demonstra não gostar da visão solene muitas vezes lançada sobre o regente musical uma vez que, segundo ele, dessa forma induz-se a pensar na arte conjunta por aspectos fabris, hierarquizados e reducionistas. Porém, retornando ao trabalho Castro, há uma demonstração consistente de que o maior problema de performance no soundpainting surge por conta do próprio soundpainter: “O Soundpainting irá se deparar com questões que circundam a figura do regente, envolvendo obstáculos relativos à capacidade pessoal composicional do Soundpainter e a sua comunicação com o grupo” (p. 106 – 107). E se não há nenhuma razão pra desconfiar da competência de Omura, essa ponderação me trouxe reflexões. Se, segundo Castro, dominar o sistema com maestria e autoridade sobre o grupo é a maior dificuldade da prática, talvez seja isso que torne uma apresentação de soundpainting arrebatadora, como Thompson propunha. Nesse sentido, não consigo ver como uma apresentação mais “intervencionista” poderia atentar contra a poética da língua de forma a descaracterizá-la. Estou entrando nesse terreno porque gostaria de viver o meu próximo encontro com Cine Orquestra ainda mais intensamente. Disseram que haverá mais apresentações neste ano. Eu gostaria de ‘delirar’ pra valer quando isso acontecer, então.

Imaginar como seriam as intervenções sonoras se estivessem mais presentes nos filmes se solidificou enquanto ideia durante a sessão da obra-prima de Dreyer, A Paixão de Joana d’Ark. As vozes guturais das performers femininas transformaram o filme, uma demonstração de amor irrestrito por algo inexplicável, numa força ainda mais palpável da fé. Certa mesmerização rítmica se articulou muito bem com os closes do longa-metragem também, usados à exaustão pelo diretor para dar conta do sentimento de sofrimento da personagem. O que antes eu conhecia como a visão de Renée Jeanne Falconetti encarnado a alma de uma mulher governada por sua devoção à Deus, pude conferir também na interpretação de outra forma de arte. Por exemplo, na percussão pontuando o sofrimento e nas cordas lamentando a situação cínica de julgamento na qual a personagem-título se encontra. Tudo muito belo. Foi também a única das vezes em que me peguei desviando o olhar da tela em direção ao tablado, tentando descobrir o que estavam fazendo ali para evocar tamanha agonia. A Paixão de Cristo, a qual o filme remete, parecia ressoar a todos os tempos. Efeito produzido, possivelmente, por uma melhor consciência de Taiyo quanto à obra e sua visão dela. Foi o ponto alto das apresentações.

Compreendo, porém, que levar a conhecimento do grande público uma nova ramificação artística pode ser um objetivo alcançado através da construção lenta e consciente de projetos como esse. Mas outro percurso possível e que já demonstrou sua eficiência é aquele que provém do choque e do ineditismo. E se esses artistas forem acusados de praticar uma arte imperfeita, cafajeste e de mal gosto, mas produzirem com audácia e verdade – e estando dispostos a comprar a briga, claro – pode ser que o próprio futuro da música resida aí, nesses tantos radicalismos do soundpainting sequer sonhados.

É de Siegfried Kracauer o pensamento:

“Quando você olha por tempo suficientemente longo para a superfície de um rio ou lago, vai detectar na água determinados padrões que podem ter sido produzidos por uma brisa ou redemoinho. Os enredos encontrados são de natureza de tais padrões. Descobertos em vez de inventados, são inseparáveis dos filmes com intenções documentais. Desse modo, são mais capazes de satisfazer a demanda pelo enredo que ‘reemerge da tumba do filme sem enredo’” (KRACAUER, apud ANDREW, 2002, p.104).

Raciocínio semelhante poderia ser aplicado à música e ao soundpainting com relação ao cinema e as imagens? A quais percursos levariam esse ou outro grupo se adotasse de forma irrestrita o filme enquanto matéria-prima, sujeitando-se a ele, e, a partir disso, emergisse a potência da música rebentando contra imagem? É uma contramão possível a minha sugestão anterior.

Aurora (Sunrise, 1927), de F. W. Murnau

Impossível seria para mim não relatar o quão maravilhoso foi, para além da confusão, acompanhar a quatro sessões lotadas. Segundo as fontes que tenho, a sala de cinema é o carro-chefe do Centro de Artes, principalmente no que diz respeito a garantir sua saúde financeira. Dessa forma, por mais que a Cine Orquestra tenha sido de graça, isso demonstra que há um público disposto a encher o cinema e viver experiências coletivas. As pessoas riram quando Omura entrou sem dizer uma palavra logo na primeira sessão, encarnado em seu personagem, e pulou e fez caretas e se virou em direção a plateia para, apenas com gestos de suas mãos e um primeiro coro dos performers, demonstrar quando deveríamos mudar a altura de nossas vozes entre grave, médio e agudo. Está aí a força de propostas inusitadas no pós-pandemia, tanto para recuperar o espectador inseguro com as salas fechadas (a simpática senhora que sentou ao meu lado no primeiro dia e retornou em pelo menos mais uma ocasião estava com máscara a postos no rosto), quanto para incentivar a formação de novos cinéfilos, preparados para abraçarem a causa. Foi ótimo perceber os risos das crianças nos filmes de Chaplin e Keaton-Bruckman, e, acreditem, a emoção nos de Murnau e Dryer. Um evento que não é dos menos dispendiosos, acredito, mas que deveria ligar a luz amarela no departamento dos analistas de programação, para que pensem sobre futuras realizações não-óbvias.

Eu pedi pela opinião de Otávio Lima, produtor da Cine Orquestra, sobre o porquê do sucesso de público nesse caso em específico, sendo que houve outras mostras de cinema nessa mesma sala nos últimos meses que sequer chegaram perto de alcançar tamanha repercussão e engajamento. Algumas, inclusive, que apresentavam recortes com países conhecidos pela realização cinematográfica. Ele me respondeu que o grande diferencial em Cine Orquestra é o fato de cada sessão ser única e irreprodutível. Um espetáculo que só pode ser conferido naquele ambiente e naquela circunstância de mostra. Mesmo que o público tivesse a opção de ir a duas sessões de uma mesma obra em dias diferentes, a experiência seria bem diferente pela essência do fazer música presente no soundpainting. Não há como experimentar algo similar no streaming, por exemplo, assistindo esses mesmos filmes pelo computador ou TV de casa, ele seguiu. E destacou também a qualidade da sala quinquagenária do Cine Arte UFF. Toda a equipagem do espaço prevê as apresentações da Orquestra Sinfônica Nacional e, por conta disso, existe um recuo na parte anterior (na frente da tela) já pensado para acomodar instrumentos e os profissionais para tocá-los. Também foi mencionada a equipe qualificada da instituição, que trabalha em setores críticos como som e luz. Por fim, Lima pontuou a extensa divulgação que o evento recebeu, assim como seu incentivo público proporcionado pela Prefeitura Municipal de Niterói e Secretaria de Cultura.

 O Fantasma da Ópera (The Phantom of the Opera, 1925), de Rupert Julian

A seguir, eu pude conversar com o próprio Omura por intermédio do produtor. Aproveito para agradecer aos dois. Busquei saber do soundpainter, primeiro, por que a linguagem não tem tanta expressão no Brasil como acontece em vários outros países – do sul global também. Ele me respondeu que essa forma de trabalhar a música ainda é incipiente por aqui. Os grupos de soundpainting se formaram somente na última década e estão concentrados em dois polos, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Para o artista, a estratégia de realizar mostras como essa em Niterói e os cine-concertos em Belo Horizonte serve para proporcionar eventos divertidos e acessíveis, feitos tendo como chamativo alguns filmes conhecidos pelo público. Se a improvisação conduzida por sinais ficar só no âmbito acadêmico, erudito ou experimental, sua expansão será muito mais complicada por conta da baixa quantidade de público que orbita esses círculos. Também foi seu desejo ressaltar a diversidade entre as obras audiovisuais exibidas, que visaram conversar tanto com a família que buscava uma apresentação musical na qual pudesse levar os filhos quanto com o fã de horror que nunca assistiu a mais celebrada versão de O Fantasma da Ópera dos cinemas.

Há, além dessas, questões que dialogam com desenvolvimentos que não dizem respeito às bases artísticas e teóricas do soundpainting. Prazeres, por exemplo, cita o lado pedagógico e cientifico da música e dessa língua de sinais como sendo muito relevante para o pensamento social. O caráter “lúdico” envolto na realização de oficinas usando o soundpainting, segundo seus achados, é capaz de exercer grande influência positiva dentro de uma dinâmica de grupo, como inibir a vergonha e/ou aflorar a comunicação individual. Em outra vertente, a tecnologia surge como campo possível para a difusão da prática uma vez que, quanto mais o tempo passa, opções para a produção musical a partir de movimentos realizados frente a uma câmera-sensor que seja capaz de converter sinais em sons correspondentes com precisão se tornam mais viáveis. Eu quis saber por qual caminho Omura pensava que a língua de sinais poderia ganhar espaço no Brasil.

“A maneira como ele se proliferou lá fora [em outros países] foi através da educação, entrando em espaços como escolas fundamentais ou mesmo conservatórios de música.”

O soundpainter destacou com bastante ênfase que a ideia de propor uma oficina prática dentro do projeto Cine Orquestra para escolas públicas foi, justamente, incentivar a criação colaborativa.

“É uma etapa fundamental na educação. Seria [usar o soundpainting para] pensar sobre como as pessoas podem trabalhar juntas sem necessariamente estar partindo de um mesmo repertório específico. É uma forma de elas se colocarem criativamente no espaço. Essa é uma das rotas que eu quero traçar daqui para frente: realizar oficinas de formação para que novos soundpainters e novas soundpainters usem a técnica. Cada um pode pegar esse sistema e fazer a sua própria criação. Se o profissional quiser trabalhar com ritmos brasileiros ou mesclar música e dança… existem muitos caminhos.”

A General (The General, 1926), de Buster Keaton e Clyde Bruckman

Por fim, um breve relato antes da pergunta: no instante em que me deparei com a primeira divulgação da Cine Orquestra, eu senti vontade de questionar seus realizadores sobre o recorte da curadoria. O motivo era entender como o soundpainting, que pressupus adotar algum dos dogmas das artes modernas, de uma quebra violenta com o passado, se relaciona com cada um desses longas-metragens clássicos em forma, estilo e poética. Durante as sessões, ficou claro que o tratamento sobre tais imagens seria o da reverência e o da celebração, como descrevi. Imagens que compõe obras de gênero (comédia, melodrama, horror) pautadas por códigos de linguagem bem-definidos e que, a partir do uso da técnica, encontram meios de proferir seus discursos. Dito de outra forma, eu vejo esses filmes combinando formalmente muito mais com a Orquestra Sinfônica Nacional da UFF do que com o grupo de soundpainting. Para Cine Orquestra, eu pensaria algo diferente. Que fossem longas-metragens envoltos por questões outras às que esses trazem, referentes às décadas de 1920 e 1930 mesmo, mas distinguíveis por uma abordagem experimental. Filmes de países com indústrias menos difundidas e hegemônicas naquele momento histórico. Do Japão ou Brasil, por exemplo. Não me entendam mal, eu tenho por cada um desses diretores a maior estima possível. Mas essas narrativas, construídas em torno da ação, o que torna a musicalização mais acessível, foram selecionadas por princípios que dissessem respeito a algo além de alcançar sucesso em cima de nomes sublimados do passado? Por conta da resposta anterior do soundpainter da Cine Orquestra, que falou sobre pensar nos filmes como atrativos para o público, eu aproveitei e emendei a provocação. Trago abaixo sua declaração.

“Na verdade, eu não gosto muito de um certo aspecto do moderno que é essa fixação numa ideia de novo, de novidade. Eu gosto de buscar a origem das coisas lá atrás e trazer isso para o agora. Sim, estamos usando uma técnica contemporânea, mas a forma com que o cinema era feito nos anos 1920, ou antes ainda, não era tão fixa. Não havia tantas regras estabelecidas. Havia justamente um espaço para a experimentação. Nós nem sabemos direito como eram realizados vários desses filmes. A improvisação era uma coisa muito usada. E tinham as bandas, tinham as orquestras, de várias formas. Tinham narradores, tinham atores. Então, na verdade, nós não estamos inventando. Na verdade, estamos reimaginando. É um retorno a uma época de possibilidades diferentes. Por mais que a gente veja que esse é um cinema hegemônico de seu tempo, que é de Hollywood ou de grandes indústrias, há um espaço, dentro deles e justamente pela ausência do som, para criar uma conexão com o público na sala. E esse espaço abre possibilidades para quem quiser. É essa conexão que a gente busca. Quando joga uma energia tocando ao vivo isso bate no público e bate no filme, e o filme encorpa, digamos assim.  E o filme encorpa a gente também. E nessa sensação do ‘ao vivo’ que, até nos erros, deixa mais clara a questão de estar acontecendo no aqui e agora. Então, pelo menos para mim, o pensamento é menos se o cinema é hegemônico ou não ou se é de uma grande indústria ou não e mais ‘vamos tentar sentir algo aqui, na sala, com esses filmes de quase cem anos?’ Vamos abrir um espaço para criar com os filmes, juntos; o público também? Essa sempre foi a busca. Os filmes pedem para que a gente haja com eles hoje.”

A Paixão de Joana d’Ark (La Passion de Jeanne d’Arc, 1928), de Carl Theodor Dreyer

Nesse ponto, faço alguns breves agradecimentos como forma de concluir mais uma cobertura de mostra: à Lívia Cabrera, Otávio Lima e Taiyo Omura, por ajudarem na logística de produção desse texto. Ao Pedro Lauria, por editar a coluna. Aos profissionais não vistos e não notados que fazem a arte acontecer, na cabine de projeção, na mesa de som, na bilheteria, na limpeza, na segurança, na administração e demais áreas. E, principalmente, deixo aqui o meu muito obrigado aos músicos do grupo Cine Orquestra, que se mantiveram longe dos olhares do público, uma vez que as imagens receberam todo foco da sala nas exibições, e improvisaram em seus instrumentos numa sala à meia-luz: Anna Machado, Bryony, Cláudia Castelo Branco, Dani Câmara, Felipe Cotta, Felipe Tupi, Gabe Pontes, Helô Tenório, João Carstens, Laura de Castro, Loren Vandal, Marcelo Conti, Michel Moreaux (Michel Miudinho), Milena Sá, Nick Araújo, Paula Otero, Sandra Nisseli, Sergio Otero, Taiyo Omura e Thaís Bezerra, nós escutamos sua excelência. E quando a luz se acendia, eu vi em seus rostos sorrisos sinceros diante dos aplausos do público. Cine Orquestra foi um sucesso. Nada mais.

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