Texto escrito por Pedro Paulo Santoro Ferreira, aluno do 1º período do curso de Cinema e Audiovisual da UFF.

[Spoilers/Revelações do Enredo da novela Vai Na Fé]

É bastante comum em obras com elementos de romance que um personagem, quase sempre um homem, arranque um beijo de surpresa de outro, quase sempre uma mulher, sem que esta seja uma decisão bilateral. Seja qual for o contexto, o “Beijo Roubado” é um contato físico que se dá sem consentimento direto de algum dos envolvidos, sendo portanto um artifício que, ao ser usado, deve-se ter em mente as repercussões no consciente dos espectadores expostos a um assunto tão delicado, que já foi (e ainda é) muito utilizado como romântico ou  piada.

A novela Vai Na Fé, atualmente no ar às 19 horas na Rede Globo, tem abordado assuntos bastante espinhosos, especialmente envolvendo relações de violência entre gêneros, dentre eles: assédio e violência sexual, incluindo casos envolvendo vulneráveis, violências doméstica, disseminação midiática do sexismo, entre outros. Muitas das vezes que estes assuntos são abordados, são de maneira consciente da importância e impacto cultural que uma novela, um grande veículo midiático que atinge diversos grupos, pode repercutir, fazendo com que os espectadores revejam conceitos e preconceitos sobre assuntos que são necessários de serem discutidos, principalmente pelo público.

No folhetim, o “Beijo Roubado” foi mostrado em cinco ocasiões diferentes: A primeira foi quando Yuri (Jean Paulo Campos), até então amigo que demonstrava um interesse romântico em Jenifer (Bella Campos), que nunca foi correspondido, estava com ela na praia e, sem nenhuma demonstração de reciprocidade da parte dela, a beijou inesperadamente. Ele foi instantaneamente rechaçado por ela e os dois discutiram. Pouco tempo depois, ele se desculpou e tudo foi esquecido, os dois continuam amigos até agora e nunca mais o incidente foi mencionado.

A segunda vez foi quando Fred (Henrique Barreira), no meio de um confronto público com Guiga (Mel Maia), sua ex-namorada, a beija em meio a protestos dela e de quem assistia a cena. Tudo foi filmado e o rapaz é processado por importunação sexual por ela, dando fim ao arco Fred Influencer da Machosfera vs Guiga Influencer Feminista dos personagens. Apesar de servir quase exclusivamente para desenvolvimento e redenção do personagem masculino, dessa finalização do arco rendeu bons momentos, como o confronto de Fred com uma vítima da retórica que ele propagava em suas redes sociais, também ele presenciando a veracidade das lições que aprendeu nas aulas anti-assédio, que foi obrigado a frequentar por conta do processo de importunação sexual, quando vê Theo (Emílio Dantas) empregando táticas de abusadores para envolver Clara (Regiane Alves) numa Cortina de Fumaça (ou Gaslight).

O terceiro momento envolve Theo, que encurrala sua ex-amante Kate (Clara Moneke), forçando-se em cima dela e a beijando. Devido ao histórico do personagem, é possível que ele fosse além, caso não tivesse sido interrompido por Clara que flagra o momento. A cena é tratada como de terror, dando o peso necessário ao ato terrível do vilão.
A quarta, foi quando Tatá (Gabriel Contente), falhando em sua tentativa de distrair Bia (Flora Camolese) para impedi-la de entrar no apartamento do ex-namorado dela e chefe dele, Simas (Marcos Veras), resolve beijá-la sem que ela tenha dado sinal algum de que isto era algo que ela queria, seja no momento ou anteriormente. A situação toda é tratada em tom de comédia, com o resultado sendo Bia dizendo posteriormente que Tatá “até que beijava bem” e os dois agora estão para começar um relacionamento firme.

A última vez, até agora, foi quando Kate, uma das vítimas de um caso anterior, beija a força Fred, um dos perpetuadores de um caso anterior, na tentativa de afastar Rafa (Caio Manhente) dela, o que causa problemas para todos os envolvidos, com Fred citando seu caso de importunação sexual para descrever a ação da menina, que no mesmo capítulo se desculpa com todos e reatou seu relacionamento com Rafa.

É claro que contexto importa, mas a maneira tão diferente que o mesmo ato é tratado, passa uma mensagem confusa de como este tipo de ocasião deve ser tratado. É um deslize momentâneo sem importância? Um crime ou contravenção? Uma violência horrível? Um passo natural para um relacionamento se desenvolver ou se reconstruir?

Um olhar mais atento vai notar que como o ato é tratado na novela depende do nível de antagonismo que cada personagem que o cometeu possuía quando ele o fez: Yuri foi um impedimento do relacionamento de Jenifer com Tatá no início, mas ainda assim “um bom rapaz”, portanto seu ato foi tratado com um erro momentâneo. Fred estava num arco onde ele era o antagonista, mas com opção de redenção, que foi dada a ele quando aprendeu que estava errado. Theo é o vilão principal da novela, então é vilanesco e tenebroso como ele. Já Tatá, serve mais como artifício de roteiro e alívio cômico agora, portanto seus atos são tratados também como tal. Kate precisava perceber que sua tentativa de afastar Rafa só causava sofrimento a todos. Ela, que é, talvez, a personagem mais querida do público, que ansioso aguardava o retorno do seu relacionamento com Rafa, teve um “Beijo Roubado” usado para que reatasse logo o relacionamento.

O maior problema relacionado com este tipo de tratamento é que a importunação sexual não vem só de vilões desconhecidos e antigos relacionamentos, na maioria das vezes vem de pessoas conhecidas que nunca demonstraram traços de abuso e violência. E muitos casos deixam de ser tratados com a importância que merecem por estas noções citadas de que o perpetuador é “uma boa pessoa” e que foi “só um erro sem importância”. Uma menção da novela diferenciando os casos, o exemplificando porque consentimento é tão importante já resolveria muitas questões trazidas pelo uso deste artifício. Para uma obra que já tratou de outros assuntos tão bem e se propõe a quebrar paradigmas de como estes assuntos são tratados em obras do tipo, se contradizer ou tratar situações tão delicadas da mesma forma equivocada que outras trataram é um detrimento que poderia e pode, ser evitado.

 

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