Crítica escrita por Morena Tavares para a disciplina de História do Cinema do professor Gledson Mercês, na Casa de Artes de Laranjeiras (CAL).

O filme sueco “Triângulo da Tristeza”, dirigido por Ruben Östlund, é uma daquelas obras que mandam a real, ao público, sobre a sociedade e o ser humano, escancarando suas podridões, hipocrisias, comportamentos e mentalidades absurdas que são pra lá de normalizadas em nosso mundo atual. Uma espécie de “a vida como ela é” sueca. O longa-metragem aborda relacionamentos tóxicos e abusivos (tanto amorosos quanto laborais), arbitrariedades das classes dominantes, comportamentos e mentalidades das pessoas que se submetem a tais abusos, os diversos tipos de hierarquia (não apenas no local de trabalho, mas também entre um casal) e outras realidades que muitos de nós já vivemos, mas que podemos ver com mais clareza quando não estamos envolvidos nas citadas situações.

O filme é dividido em três partes. A primeira conta a história do casal de modelos Yaya (Charlbi Dean) e Carl (Harris Dickinson) que não vive um relacionamento saudável. Apesar de as modelos mulheres serem melhor remuneradas que os homens, no meio da moda, Yaya não costuma pagar as contas e sempre manipula Carl para que ele pague tudo sem reclamar. Carl deixa claro seu descontentamento, porém, não termina o relacionamento mesmo sabendo que a intenção de sua namorada é manipulá-lo e explorá-lo. Ele insiste em manter o relacionamento e diz que a ama. É interessante notar como pode um homem tão bonito amar uma mulher que o trata daquela forma. Além da sua imaturidade, o filme deixa claro a insegurança e baixa auto-estima de um modelo lindo e jovem. Em um casting que Carl participa, um dos membros da equipe que seleciona os modelos explica que “triangulo da tristeza” é uma região que fica entre as sobrancelhas e o nariz e que tal região é um dos critérios utilizados para a seleção dos modelos. Uma espécie de “terceiro olho”, onde, muitas vezes, revelamos nossas aflições, tristezas, preocupações e descontentamentos. Ou seja, é uma parte reveladora da face humana, pois, muitas vezes, dizemos que está tudo bem, mas o triângulo da tristeza revela que não, trazendo à tona a realidade. Por isso, o nome do filme é Triângulo da tristeza, por se tratar de um filme que revela a realidade da vida e do comportamento humano.

O casal de modelos são também influencers e Yaya ganha uma viagem de cruzeiro por meio de suas redes sociais. A segunda parte do filme conta a viagem do casal em um navio repleto de pessoas ricas e uma tripulação que é orientada (por sua chefe Stew Paula, interpretada pela atriz Vicky Berlim) a se submeter às arbitrariedades, caprichos e egos dos passageiros russos ricos, em troca de uma possível gorjeta. Mais um choque de realidade ao público é dado quando a passageira Vera (Sunnyi Melles) exige que toda a tripulação nade no mar após escorregar do navio em um tobogã (independente da vontade da tripulação. Seu objetivo claramente não é agradar a tripulação, pois, em nenhum momento, ela pergunta se eles querem nadar ou não. Ela simplesmente impõe sua vontade e acredita estar sendo “boazinha”). É uma clara arbitrariedade da classe dominante que acredita que as pessoas menos abastadas devem se submeter a elas, suas vontades e caprichos, pela existência de uma hierarquia social (não necessariamente em um ambiente de trabalho).

O casal Yaya e Carl conhece algumas pessoas ricas no navio. Janta com um casal cujo marido vende “merda” (também conhecido como fertilizante). Também conhecem um casal que fabrica armas e normaliza a referida profissão.

Depois que o filme mostra algumas babaquices e loucuras dos ricos, começa acontecer uma espécie de “revolução social” no navio. O veículo marítimo começa a balançar muito e os ricos, a vomitarem. Enquanto isso acontece, a tripulação nitidamente não vomita, nem passa mal, por estarem acostumados com a situação. Diversas pessoas ricas vomitando, passando mal, ficando vulneráveis. Inclusive Vera (a “boazinha” que obrigou a tripulação a nadar no mar) aparece no chão do banheiro, escorregando de um lado para outro e vomitando no vaso sanitário. Pura desglamourização das classes dominantes. Em seguida, um vaso sanitário começa a botar pra fora uma quantidade enorme de fezes, urina, etc,, contaminando o navio. O caos está instalado e, em seguida, pessoas que estão em um outro barco jogam uma granada dentro do navio de cruzeiro e a esposa do dono de uma fábrica de material bélico pega a granada com as mãos. A granada explode e alguns sobreviventes vão parar em uma ilha.

Tem início a terceira parte do filme. Três pessoas da tripulação sobrevivem ao acidente – a chefe da tripulação Stew Paula, a chefe do setor de limpeza Abigail (interpretado por Dolly de Leon) e Nelson (interpretado por Jean Cristophe Folly) – foram parar em uma ilha com alguns passageiros ricos. São eles: o casal, Yaya e Carl, o “vendedor de merda” Dimitry (Zlatko Buric), Jorma Björkman (Henrik Dorsin) e Therese (Iris Berben) que sofreu um derrame e não consegue se locomover e falar de maneira compreensível.

Quando os sobreviventes chegam na ilha, a hierarquia laboral e social continua em vigor. Jorma, ao ser chamado de pirata por Dimitry, fica ofendido e o acusa de racismo. A chefe de Abigail continua dando-lhe ordens e delegando a ela toda a responsabilidade pelo bem-estar dos passageiros que não fazem nada para sobreviver a um naufrágio. Todas as obrigações em prol da sobrevivência do grupo são delegadas a Abigail, chefe da equipe de limpeza do navio. Ela é obrigada a caçar alimentos, fazer fogueira para assar os alimentos, servir os passageiros, etc. Porém, Abigail não aceita a referida situação e questiona por que os passageiros não ajudam em nada, visto que deveriam se esforçar para o grupo sobreviver, independente da hierarquia, já que não estão mais no navio e fora dele, ela não é obrigada a submeter-se às ordens da chefe e servir os passageiros.

Abigail dá uma considerável volta por cima, impondo sua decisão de que, a partir de agora, ela não é mais subordinada a ninguém e sim a comandante do grupo, pois sabe caçar, fazer fogueira, cozinhar, enquanto ninguém sabe nada disso e nem quer aprender. Portanto, tais habilidades fazem com que o grupo dependam dela para sobreviver e, por isso “aceitam-na” como comandante.

Isso nos leva a pensar sobre a necessidade do ser humano em estar em uma posição de superioridade em relação aos outros, e da dificuldade em aceitar a igualdade. Quem estava por baixo, agora, está por cima. Mas por que alguém tem que estar por cima, necessariamente, enquanto outros ficam por baixo? É impossível para o ser humano aceitar a igualdade, mesmo em suma situação tão complicada quanto um naufrágio, na qual a união entre o grupo, a parceria e a colaboração entre eles poderia significar a sobrevivência de todos? Todos deveriam fazer sua parte em prol da sobrevivência, mas ficou evidente que isso não aconteceria.

Ao assumir a posição de comandante, Abigail deixa claro também o seu lado matriarca. Uma mulher sendo autoritária com os homens, impondo suas vontades. Para deixa Carl se alimentar, depois de ele ter comido uns biscoitos de Abigail sem a sua permissão, ela começa a ter relações sexuais com ele. Sua namorada percebe, não concorda com a situação, mas não tenta impedir porque também come os alimentos que Abigail dá a Carl. Quando Carl ficou sem comida, Yaya não deu nada a ele, deixou-o desamparado, e comia na frente dele.

O final do filme deixa bem claro como Abigail prefere ser uma náufraga pelo resto da vida (e continuar a ser a comandante do grupo) do que ser salva e voltar a viver a vida de empregada da limpeza. Para isso, ela mata Yaya, que descobre como se livrar do naufrágio e voltar à vida normal. Chocante ver o que o ser humano é capaz de uma maneira tão evidente, clara e sem disfarces. O filme mostra inúmeras características do ser humano que, muitas vezes, não queremos perceber e preferimos ignorar. A falta de respeito ao direito alheio, a arbitrariedade pode chegar a situações extremamente tóxicas e normalizadas ao mesmo tempo.

Ao assistir Triângulo da Tristeza, não pude deixar de associar com o filme “Metrópolis”, do expressionismo alemão, onde a elite não faz absolutamente nada e os operários trabalham como condenados. Em dois momentos do filme Triângulo da Tristeza isso fica evidente: no cruzeiro (quando a tripulação de ricos se diverte e os menos abastados trabalham, não apenas para cumprir suas obrigações laborais, mas também para atender aos caprichos dos ricos) e na ilha (quando, no início, tentam explorar Abigail, obrigando-a a fazer tudo para a sobrevivência do grupo: caçar, cozinhar, etc. Os ricos, por não saberem caçar, fazer fogueira, ficavam só olhando e nem tentaram aprender alguma coisa para ajudá-la. Abigail era uma trabalhadora do navio. Fora dela, ele tinha a obrigação de continuar servindo-os? Será que existia alguma cláusula em seu contrato laboral obrigando-a a fazer isso?).

Por último, os atores do “neorrealismo sueco” (o neorrealismo italiano retratava a realidade dos italianos pós-guerra, enquanto o filme Triângulo da tristeza retrata a realidade atual não apenas dos suecos, mas da população mundial) são ótimos, com atuações realistas e orgânicas. Principalmente quando acontece o caos no navio e inúmeros atores vomitam de uma maneira extremamente convincente. Sinceramente… dá vontade de vomitar também.

 

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