Crítica escrita por Luara Prado na disciplina História da TV e do Cinema ministrada por Gledson Mercês na Faculdade CAL (Casa das Artes de Laranjeiras).


A história de “Bom dia, Verônica”, série nacional da Netflix lançada em outubro de 2020, vai muito além dos clichês tradicionais presentes em todo suspense policial que se preze. Baseada na obra da criminóloga Ilana Casoy e do romancista Raphael Montes, a série traz à tona pautas urgentes (apesar de antigas) como violência doméstica e negligência policial associadas a uma lógica de opressão feminina conferindo às mesmas um protagonismo inédito no gênero.

A narrativa acompanha Verônica Torres – vivida por Tainá Muller – uma escrivã do Departamento de Homicídio da Polícia de São Paulo, que após presenciar uma angustiante cena de suicídio de uma mulher enganada e abusada sexualmente por um homem, se vê impelida a lutar e buscar justiça por essa e tantas mulheres caladas, negligenciadas e muitas vezes mortas em decorrência de uma sociedade machista e misógina amparada por instituições que deveriam as acolher e proteger mas ao invés disso abafam, relativizam e desprezam o sofrimento das vítimas.

A protagonista lida muito bem com o gênero e constrói uma personalidade potente e justiceira a medida que lida de maneira assíncrona com seus fantasmas do passado, com toda a sujeira que reveste nossas instituições de poder e com seus problemas pessoais já existentes mas agravados pela decisão de embarcar nessa jornada frustrante de tentar expurgar o que há de mais podre na sociedade.

A trama se desenvolve a partir da relação de Verônica e Janete (Camila Morgado), uma mulher que sofre com os abusos do marido, o policial militar Brandão (Eduardo Moscovis). Nessa primeira temporada, dividida em oito episódios de cerca quarenta minutos cada, a série se compromete em percorrer os inúmeros métodos de violência contra a mulher e, mesmo que estejamos acostumados a assistir obras bastante violentas, este tema específico ainda é tabu. Isso porque está muito próximo da realidade brasileira: no Brasil, uma mulher é agredida a cada 4 minutos, segundo informações do Ministério da Saúde.

Eduardo Moscovis interpreta um Coronel da Polícia Militar, uma figura amedrontadora e desprezível e Camila Morgado tem grande destaque na construção de uma personagem rica em receios e anseios. Esse arco é o principal da trama ao explorar a pauta de relações abusivas e traz de maneira verossímil as atitudes do abusador, onde em meio aos surtos e agressões, também há momentos de ternura e carinho, comportamento padrão dessas figuras masculinas. Com isso, a série aproxima o público de um problema latente que está mais perto do que podemos imaginar.

Essa dupla veterana do audiovisual, Morgado e Moscovis, traz à trama momentos de tensão extrema do início ao fim, através de atuações naturais, orgânicas e convincentes. A série dá um soco no estômago do espectador a cada respiração descompassada por conta do medo sentido por Janete e traz revolta e indignação ao escancarar um relacionamento onde a submissão se sobrepõe à própria existência de Janete, que parece “morrer um pouquinho” a cada ida a rodoviária, local onde Brandão obriga Janete a capturar sua próxima vítima.

No entanto, a presença da ligação de Brandão com questões espirituais não me parece relevante, para não dizer um desserviço. Justificar sua barbárie e atrocidades através do que pode se ver como um ritual de magia negra pode distanciar o espectador da proposta reflexiva trazida pela série e, mais uma vez, reafirmar a relativização do sofrimento das vítimas. É bom frisar que trata-se de uma obra de advertência, não de ficção.

As transformações vividas pela personagem fio condutor de toda a série, deixa claro que seu título não é apenas uma expressão, mas uma indicação do despertar de Verônica para o mundo real, que é violento e injusto. A série satisfaz tanto como suspense policial, terror psicológico ou pedido de socorro. A trilha sonora é impecável, a tensão visual é presente do início ao fim e o trio principal é excelente.

“Bom dia, Verônica” é de extrema importância para o cenário audiovisual brasileiro, por mostrar que a produção nacional é capaz de entregar títulos de qualidade de gêneros ainda não tão bem explorados mas não é para qualquer tipo de espectador pois mostra a todo momento a que ponto pode chegar a violência e a maldade do ser humano. Ao final de todo episódio um aviso orienta para que caso algum gatilho tenha te atingido, que procure ajuda imediatamente. O que nos lembra que apesar de estarmos assistindo uma obra com roteiro e atores, a violência doméstica é urgente e é real.

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