Comparada a outras artes como pintura, escultura, teatro ou música, o cinema é relativamente novo. Ao longo de um século ele procurou descobrir, inventar, experimentar e estabelecer uma forma de se conectar com o público, em outras palavras, uma linguagem. A linguagem cinematográfica – assim como qualquer outro dialeto, é composta de símbolos e signos que nos permitem visualizar, refletir e entender de que maneira aquilo está se comunicando conosco. A partir disso, surgem convenções, ou seja, ordens estabelecidas que são aceitas por nós receptores. 

Exemplificando para ficar de maneira mais clara: em Pearl, de 2022, do diretor Ti West, temos a cena em que a personagem interpretada por Mia Goth está conversando com a sua mãe. Enquanto ela olha para o lado direito da câmera, a outra olha para o lado esquerdo, e nesse contexto, o público compreende que as duas estão interagindo. Outra maneira mais subjetiva de se comunicar com o espectador está em como a câmera é colocada para filmar: em Ataque dos Cães, de 2021, várias vezes a diretora Jane Campion escolhe filmar um grande plano geral da zona rural de Montana, justamente para enfatizar a grandiosidade do local. Vendo o espaço na sua totalidade, nos permite sentir essa imagem, coisa que não seria tão eficiente caso ela optasse mostrar uma pequeníssima parte da região.

Esses exemplos são um entre muitos que existem para mostrar que linguagem é essa que vemos na sétima arte. Vale ressaltar que ela está estabelecida em praticamente todos os filmes que assistimos, ou seja, os dois modelos não são as únicas obras que usam e fazem essas convenções. Também não foi um processo do dia pra noite, sendo definido durante décadas de história.

Da mesma forma, surge o conceito de metalinguagem, que é falar sobre os próprios símbolos.

“Mas o que quer dizer ir ao pau?” “A mesma coisa que levar bomba.” “E levar bomba?” “Levar bomba é ser reprovado no exame.” (JAKOBSON, 1896-1982, p.162)

Logo, assim como precisamos usar as próprias palavras para explicar outra, no cinema não será diferente por ainda estar em um sistema de códigos, a diferença é que os conceitos mudam. Exemplificando novamente, em Pânico, famosa franquia de terror iniciada em 1996, temos em todos os momentos, personagens que conhecem todos os elementos que envolvem o gênero de terror: assassinos de outras obras, regras de não entrar em lugares escuros ou fazer sexo e até mesmo o que acontece no fim. Em Deadpool, de 2016, temos um protagonista que sabe que está dentro de um filme de super-herói, e através disso brinca e experimenta estar no universo, quebrando e criando novas regras. Assim sendo, através de um conceito de linguagem cinematográfica, diversas formas de uso podem surgir.

Contudo, não basta só saber, usar e falar a linguagem, é preciso quebrar; e Jean Luc-Godard foi um diretor que sabia fazer os três. O artista francês é um dos mais conhecidos e renomados para os entusiastas da área, pois além de estar inserido dentro da tendência que dita até hoje como o cinema é feito – a famosa Nouvelle Vague surgida em meados de 1958, também ao longo de seus 130 projetos soube mostrar como toda exibição não passa de uma mera ilusão. Tendo Acossado como seu primeiro longa-metragem, rapidamente ganhando aclamação de crítica e considerado por muitos como um divisor de águas no cinema, pouco se fala sobre seu segundo longa: Uma Mulher é Uma Mulher, feito em 1961. Não só esses dois, como vários de sua filmografia trabalhavam com o tema da anti ilusão no cinema, em outras palavras: um furo, uma quebra na linha narrativa do espetáculo, trazendo o conceito da descontinuidade. Ao contrário da arte clássica e romântica, que buscava diversão, aparência e vidas idealizadas, Godard buscava a agressividade, histórias sem começo, meio e fim definidos e principalmente: o cinema é um sonho. Com isso, muitos desses temas foram trazidos em Uma Mulher é Uma Mulher.

Inicialmente, vemos grandes letreiros: comédia, musical, sentimentos e ópera, são algumas palavras que aparecem, nos dando (ou não), pistas de como será o filme. A voz anuncia: luzes, câmera, ação e o espetáculo começa. Angela (Anna Karina) chega a uma cafeteria, mas percebe que Tu T’Laisses Aller, música de Charles Aznavour já está na metade, então decide tocá-la desde o começo, assim a trilha sonora começa exatamente no momento em que ela chega ao local. Ao pedir um café curto, percebe que seu tempo é tão pequeno quanto, olha para câmera e vai embora. Ao se encontrar com seu marido Emille (Jean-Claude Brialy) na banca de jornais, através de enquadramentos de revistas (e sem nenhum diálogo), a premissa surge: a moça quer engravidar, mas seu marido não deseja ter filhos. Assim, ela faz um pacto com ele para que engravide do amigo do casal Alfred (Jean-Paul Belmondo). Através desse simples embate, surge toda a quebra que Godard tanto usou ao longo de sua filmografia.

Angela sonha estar em um musical ou comédia romântica, porém, sabe que não está no lugar certo. Ela está em um filme de baixo orçamento, com equipe de produção muito reduzida, aumentando a liberdade criativa do cineasta, que experimenta filmar nas ruas, captando o som direto e a iluminação natural. Essas são algumas características não só dessa obra em específico, como de vários diretores dessa tendência. A história não acontece por típica causa e consequência, mas por insistência dos próprios personagens, portanto, a ação enquanto elemento que move a narrativa é quase anulada aqui, justamente por fazer parte de uma ilusão. A crise do casamento se inicia com a tentativa de um melodrama, até porque antes de começarem a discutir, Angela e Emille olham para a câmera e “saúdam o respeitável público”. Muitas vezes, tudo pode soar extremamente artificial, amador e cansativo, justamente porque os personagens entram num tipo de loop eterno que parece nunca acabar. Eles tomam atitudes fora do nosso entendimento, brigam e questionam sem motivo, tem crises, sorriem, choram, rapidamente se levantam e recomeçam.

O casal que usa vermelho, azul e mora numa casa completamente branca, satirizam a própria França e sua bandeira, país mundialmente famoso por seus longas carregados de romances poéticos. A mulher que trabalha de stripper, tem seus momentos de fama quando entra em palco e faz suas performances. Contudo, diferente dos majestosos musicais que temos em Hollywood, cheios de estrelas e enquadramentos que colocam todo o seu corpo à mostra para performance de voz e dança, Angela é mostrada apenas de ombros para cima, desfavorecendo a performance para o espectador. Em momentos fora do cabaré, até tenta algumas notas para iniciar um musical, mas sem sucesso. Todavia, é interessante como a personagem assume o palco e a tela para si, afirmando que “mulheres modernas são estúpidas por não chorarem” e logo após cair em lágrimas, ou sempre estar sem tempo para coisas que não importam para ela e o próprio filme.

As cenas na rua são agitadas, confusas e turbulentas, do jeito que a Nouvelle Vague se propunha a filmar através de câmera na mão sem nenhum suporte. Os cortes entre uma cena e outra são confusos, nada parecido com Cinema Clássico. Se normalmente estamos acostumados a quando um personagem saí de um local para outro, o acompanharmos, aqui esse percurso não é mostrado, como na cena que Angela encontra sua amiga, e ao invés de mostrar as duas conversando em direção ao destino, apenas em voz escutamos o diálogo, enquanto a câmera filma momentos da rua – com pessoas reais que provavelmente não foram avisadas que estavam participando da produção. Esse recurso foi muito popularizado na época e é conhecido como jump cut, que basicamente corta de maneira inesperada a continuidade que ocorre em um plano ou cena. Se na época, foi motivo de confusão e controvérsia para maioria das pessoas, hoje está completamente normalizado na cultura da internet, principalmente pelos famosos vlogs ou produtores de conteúdo para YouTube e Tik Tok

Maioria da tensão se concentra dentro da residência do casal, que funciona como uma espécie de palco, na qual o interior está sempre iluminado e com grande espaço para suas maluquices, enquanto o lado de fora a noite é sombrio, quieto, mas vibrante com grandes néons, semelhante a nós espectadores quando estamos em arquibancadas assistindo um espetáculo. Em alguns momentos, não brigam com palavras, mas com mensagens de livros em suas estantes, simulando um cinema mudo com seus grandes letreiros em tela. Em vários momentos, Emille domina a esposa e aos poucos vai à convencendo que talvez um filho não seja boa ideia, seja pelo seu retrato completamente machista, ou a mudança de figurino de Angela, que no começo veste um vibrante vermelho e aos poucos vai cedendo ao azul, cor usada pelo marido. Entretanto, nas palavras da própria protagonista: o terceiro ato é onde a mocinha hesita aceitar seu destino.

Em resumo, novas formas de linguagem cinematográfica foram inauguradas com Godard, principalmente porque ele sabia o que veio antes. O Cinema Clássico surgiu há quase 100 anos, e até hoje continua dominando em diversos aspectos os filmes que consumimos. Contudo, não só ele como diversos que participaram da Nouvelle Vague, iniciaram grandes pontos de virada para novas formas de experimentar e conversar com o público, que também amadureceu e desenvolveu novas percepções ao longo do tempo. Certamente, não foi um movimento popular, ainda restrito à uma parcela de pessoas, principalmente críticos e amantes da área. Entretanto, essa nova tendência rapidamente se espalhou para vários países, se adaptando a necessidade de cada lugar. No Brasil por exemplo, muito influenciado pelos franceses, o Cinema Novo ia contra a maré dos grandes estúdios e trazia longas mais focados na desigualdade social e opressão, produzindo clássicos como Terra em Transe (1967) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, entre outros.

Sendo assim, Uma Mulher é Uma Mulher é um entre diversos trabalhos de Jean Luc-Godard que trazia certa proposta completamente anti ilusionista. Enquanto Hollywood mostrava ao mundo seus explosivos faroestes ou suspenses noir, que fazia o público sentir como se estivesse dentro do filme, este em específico fazia totalmente o contrário. Por mais que Angela quisesse estar em uma ilusão, o seu criador a conhece, mas justamente por conhecer tão bem que ele prefere quebrá-la e impedir que aconteça.

Você pode assistir Uma Mulher é Uma Mulher pelo Vizer

 Uma Mulher é Uma Mulher, Jean Luc-Godard – 1961

REFERÊNCIAS

PEARL. Direção de Ti West. Estados Unidos: Little Lamb e Mad Solar Productions, 2022. 102 min

THE POWER OF DOG. Direção de Jane Campion. Nova Zelândia e Reino Unido: New Zealand Film Commission e BBC Film, 2021. 126 min.

JAKOBSON, Roman. Lingüística; poética; cinema. 1896-1982. Disponível em <https://monoskop.org/images/d/d3/Jakobson_Roman_Linguistica_poetica_cinema_2a_ed.pdf>

SCREAM. Direção de Wes Craven. Estados Unidos: Woods Entertainment, 1996. 111 min.

DEADPOOL. Direção de Tim Miller. Estados Unidos: 20th Century Fox, 2016. 108 min.

ANZAVOUR, Charles. Tu T’Laisses Aller. França, 1960. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=T-8SJcCyZxU>

ROCHA, Glauber. Terra em Transe. Brasil: Mapa Produções Cinematográficas Ltda., 1967. 115 min. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=OqgnXHvy9L0>

ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol. Brasil: Glauber Rocha, 1964. 120 min. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=RyTnX_yl1bw>

SANTOS, Nelson. Vidas Secas. Brasil: Herbert Richers, 1963. 103 min. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=09y5700wLcA>

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