Um dos aspectos mais interessantes da estratégia da Netflix em produzir conteúdo para vários mercados e nichos de públicos é o intercâmbio de obras audiovisuais. Em outras palavras, uma vez buscando produzir conteúdo para um mercado nacional, a própria empresa – detentora dos direitos – também o distribui para mercados de outros países. Isto traz alguns fenômenos interessantes, como o da série brasileira 3% que fez mais sucesso lá fora do que aqui.

Já no Brasil, vimos séries alemães (Dark), espanholas (La Casa de Papel), turcas (8 em Istambul e O Último Guardião), francesas (Lupin) e dinamarquesas (The Rain), fazerem tanto (ou mais sucesso) do que obras nacionais e de língua inglesa. É nessa conjuntura de distribuição internacional que surgiu em meados de 2021 a série italiana Geração 30 e Poucos (Generazione 56k) no catálogo brasileiro.

A série conta a história de Daniel, em dois diferentes períodos. Na atualidade, quando ele e dois amigos tentam emplacar uma startup de aplicativos de smartphone na litorânea e urbanizada Napóles, e no passado, em 1998 – quando os três ainda moravam na pequena ilha de Procida, e, entre as lembranças de infância, experimentavam a chegada da Internet (daí o 56k do título original, referente a velocidade dos modems do período). Enquanto isso, somos apresentados à uma história de amor desenrolada entre os dois períodos envolvendo Daniel e sua colega Matilda.

Além dos personagens carismáticos, do romance água com açúcar e dos cenários deslumbrantes da costa italiana, a série investe em um profundo sentimento de nostalgia para fazer com que o espectador simpatize com a história e acompanhe os oito episódios da primeira temporada. Para além de uma característica de sua narrativa, no entanto, esse aspecto nostálgico guarda interesses mais amplos – e que dizem a respeito da própria Netflix e suas estratégias mercadológicas. Afinal, não é coincidência que entre as séries e filmes de maior orçamento e/ou mais assistidos da empresa estejam Stranger Things, Glow, Everything Sucks!, Black Mirror: Bandersnatch, Pose e a trilogia Fear Street todas passadas nas décadas de 1980 e 1990.

Iris Du (2018) vai discutir, baseada em Stranger Things, como essa nostalgia busca mitigar os efeitos da própria digitalização representada pela Netflix. Ela se questiona se “essas narrativas de nostalgia romântica e a estética que elas carregam não são uma maneira de abrandar as experiências digitais que se tornaram muito enervantes” (2018, p.5). Uma das maiores referências em estudos sobre nostalgia, Svetlana Boym (2001, XIV) dá subsídio à esse questionamento ao pontuar que  “o contraponto à nossa fascinação com o ciberespaço é (…) a epidemia de nostalgia (…) como um mecanismo de defesa contra os ritmos acelerados da vida”. Ou seja, segundo essas autoras – em um mundo marcado pelo digital e pelo algoritmo, a nostalgia pelos tempos mais “simples” surge como uma necessidade de respiro.

John Campopiano (2014) vai então trazer o termo “tecnostalgia” para se referir à nostalgia tecnológica por dispositivos antigos. Quanto a isso, é provável que o leitor já tenha se deparado (ou mesmo colecione) com o retorno e a celebração do vinil, das mixtapes ou da polaroide nos últimos anos. Este fenômeno também incorre de forma estética: como por exemplo, o uso de filtros imitando VHS no Instagram – inclusive em suas falhas. Pois bem, uma das formas que a Netflix consegue acessar essa tecnostalgia, é através da utilização destes dispositivos em suas narrativas – algo marcante em Stranger Things (quem não lembra do dueto musical envolvendo uma torre de rádio amador na Season Finale da terceira temporada?) e que também encontra ressonância na série italiana.

Além disso, esse aspecto nostálgico de Geração 30 e Poucos também apela a um nicho geracional. Em outras palavras, ele mira justamente na nostalgia do público de “30 e poucos” (a geração millenial) que agora se encontra na “vanguarda financeira e cultural” – tendo finalmente idade e autonomia financeira para produzir e consumir conteúdo. Logo, é mais do que normal que ela mire em suas memórias e lembranças do passado. Vale ressaltar que também é esse público que era jovem quando testemunhou a transição da Netflix – de uma simples locadora de vídeos, para o modelo de streaming que hoje define todo o mercado audiovisual, tendo grande ligação afetiva e cultural com a empresa.

Considerando estes pontos, a série Geração 30 e Poucos, parece ocupar este lugar híbrido dentro da plataforma de streaming. Ao mesmo tempo que a série busca chamar a atenção do público internacional a partir de sua ambientação e peculiaridades, ela conta uma história universal (sobre escolhas profissionais e desencontros amorosos) e de forma a suscitar a nostalgia por um período corroborado por toda uma geração (do início da Internet). Ou seja, uma estratégia que une tanto a particularização geográfica (como diferencial para seu espectador, que busca poder viver um pouco daquele país e sua cultura) quanto à universalização geracional (buscando falar diretamente com eles através do recorte de um período).

Quanto à sua “particularização geográfica”, é bastante interessante como a série se aproveita de sua localização (a costa de Napóles e suas ilhas) para mostrar uma ambientação paradisíaca e que parece pertencer a tempos mais antigos. Para isso, ela se utiliza de muitos takes aéreos e muitas cenas nas ruas de Nápoles. Além disso, ela incorpora em sua trilha sonora músicas italianas de ambos os períodos. O destaque é claro, vai para Come Mai, da banda 883, lançada no álbum de 1993 Nord sud ovest est – e que surge em momentos bastante importante da série com seu grudento refrão.

 

Já quanto à sua “universalização geracional”, é bastante explícita a estratégia da narrativa em incorporar à trama o uso tanto de tecnologias analógicas como telefones com fio, fitas VHS e walkmans, quanto do início de Internet. Chamo a atenção principalmente pro “tráfico de disquetes”, pra Internet “lenta” (que demora minutos pra carregar uma foto) e que ocupa a linha telefônica. Também existem referências à cultura pop estadunidense, seja no passado, com referências a Exterminador do Futuro 2 e Space Jam, seja no presente, com a incorporação de músicas de hits de língua inglesa à trilha sonora. Além disso, a série romantiza tecnologias mais antigas como cartas, cartões postais e – até mesmo – escadas. Uma fala muito marcante de um personagem, por exemplo, diz que ele nunca haveria conhecido sua esposa se pegasse elevadores (algo que a série brinca em sua season finale).

A romantização do passado, no entanto, não se restringe somente no aspecto nostálgico de suas narrativas (trabalhando com dois períodos temporais). Ela brota, por exemplo, no conflito amoroso da série. Afinal, Daniel é mostrado como uma figura que não tem sorte com encontros amorosos via aplicativos online. Quando este finalmente se apaixona isto ocorre por acaso – uma vez que ele acaba se confundindo e saindo com a pessoa errada, após seu “date” desmarcar com ele. Se trata, é claro, de Matilda – amiga de infância a quem ele não reconhece.

Matilda é retratada como uma pessoa avessa à tecnologia (algo, reafirmado pela sua profissão em restauração e produção de móveis) – fazendo com que Luca não consiga achá-la nas redes sociais após o encontro, como uma espécie de “Cinderela moderna”. Em outro momento, Daniel incorpora a “máquina do tempo” (uma garrafa onde seriam colocadas mensagens para serem abertas no futuro) como ideia de aplicativo para sua startup – sendo celebrado como uma ideia “romântica”. Ao mesmo tempo, a série trabalha com problemas típicos das redes sociais – como a já citada dificuldade de se conhecer alguém por aplicativos, a prática do “ghosting” e do “bloqueio”.

Por conta destes aspectos dicotômicos, Geração 56k ocupa lugares híbridos entre ser uma série local e internacional, nostálgica e contemporânea – que, ao fazê-lo, evidencia estratégias da Netflix para manter sua relevância. De tal forma, será interessante acompanharmos nos próximos anos, quais outras séries se utilizarão de estratégias parecidas e como elas serão recebidas pelo público. Para além disso, torna-se atrativo a possibilidade de visualizarmos como tais momentos nostálgicos de toda uma geração são comungados por outros países, ajudando a descobrir suas particularidades e semelhanças.

Artigos Citados:

BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books, 2001.

CAMPOPIANO, John. Memory, Temporality & Manifestations of Tech-Nostalgia. Preservation, Digital Technology & Culture (PDT&C), 43(3), 75-85. 2014

DU, Iris. Rose-Tinted Screens and Ruined Dreams. Digital Decay and Nostalgia on Netflix. Master Thesis, Faculty of Humanities. Utrecht University, 2018

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