Vencedor do Leopardo de Ouro, Regra 34 constrói um retrato dos prazeres e perigos de experimentar a sexualidade. Julia Murat não está interessada em apresentar respostas, mas sim, expor as contradições do desejo. Como a protagonista fala, o tesão nem sempre é politicamente correto e é isso que faz com que o filme da cineasta carioca se torne extremamente político e importante de ser realizado e assistido em um país governado pela extrema direita. Em uma sociedade que oprime os corpos feminilizados e racializados, a protagonista de Regra 34 vê nos prazeres de seu corpo uma forma de resistir às violências.  Murat consegue construir um excelente estudo de como o corpo fílmico faz um convite sensorial ao corpo do espectador. Não é à toa que na exibição do filme no Festival do Rio, a cineasta citou a atriz pornô Sasha Grey, que afirma que a pornografia é uma ferramenta capaz de fazer com que ela expanda seus limites corporais e emocionais. As sensações que Regra 34 produzem no público exemplificam como o cinema é poderoso em construir afetos que atravessam o corpo do espectador através das mais contraditórias sensações.

O longa-metragem apresenta a história de Simone, interpretada magistralmente por Sol Miranda, uma defensora pública recém ingressada na carreira que também trabalha como camgirl. O corpo negro de Simone não é só um mero objeto de desejo em uma sociedade racista, é um corpo que deseja. A personagem começa a investigar formas de sentir prazer que envolvem dor, como asfixia, tapas e cortes É aí que o pensamento de Sasha Grey se presentifica na obra: a personagem expande sua sexualidade a partir de práticas não normativas e o público é convidado a experimentar as sensações de ver aquele corpo pulsando desejo, tensionando os limites de o que é prazer e o que se deve fazer para alcança-lo.

É a partir da pornografia que a personagem decide ampliar seus prazeres sexuais. Após assistir um vídeo pornô, Simone sente repulsa, mas seu corpo é incontrolavelmente afetado por aquelas imagens. A imagem cinematográfica é uma catalisadora dos prazeres corporais, é através dela que a protagonista começa a pensar seu corpo. Da mesma forma, não é por acaso que o trabalho sexual exercido por Simone envolve as câmeras. Excitação x repulsa, prazer x perigo, empoderamento x exploração, não são categorias opostas e binárias, todas estas contradições existem ao mesmo tempo na pele, nas relações e na sociedade. Se o Estado não garante liberdade e justiça para todos os corpos que habitam a sociedade, é através das práticas sexuais dissidentes que os corpos das mulheres negras reivindicam sua própria liberdade.

Regra 34 consegue transformar a sexualidade em um tema político ao complexificar as construções do desejo. Em termos de representação sexual, é interessante como o filme, protagonizado por uma personagem bissexual, apresenta o sexo distante dos ideais românticos. Além disso, apesar de apresentar várias cenas sexuais, o filme não possui nenhuma cena de sexo penetrativo, criando um outro imaginário fílmico do que é o sexo. As cenas de BDSM entre os amigos é permeada por risos, cuidados e afetos. Simone investiga seu desejo através de relações sexuais com seus amigos e a partir do trabalho sexual. Ao invés de generalizar a experiência do que é ser camgirl, Julia Murat constrói um retrato único de uma trabalhadora sexual, que não é vítima mas sim, uma trabalhadora que é capaz de negociar seus limites com os seus clientes, coisa que muitas vezes não acontece em relações sexuais que não envolvem dinheiro ou em trabalhos que não envolvem sexo.

No debate após a sessão no Festival do Rio, Julia Murat afirmou que não queria moralizar ou glamuralizar o trabalho sexual. O final do filme é ambíguo, segundo ela, justamente para não ceder a nenhum dos dois. É nesta trama complexa que a diretora nos entrega personagens que se permitem desejar e serem desejados, mas que devem lidar com as consequências destes desejos, seja em suas relações pessoais ou profissionais. Desde 1967, com Terra em Transe que o Brasil não vencia o Festival de Locarmo, e o prêmio para Regra 34 neste ano é mais que merecido. Segundo o site da distribuidora Imovision, o filme entra em cartaz nos cinemas brasileiros dia 12 de janeiro de 2023.

Ir para o conteúdo