“Corto, costuro e crio, materializo uma ideia.” Frase do cineasta e professor, Nelson Pereira dos Santos, um dos fundadores do Cine Arte UFF que a mais de cinco décadas resiste e mantém viva a aliança entre ensino, pesquisa e extensão. Uma ideia materializada em 12 de setembro de 1968, e que ao longo dos seus 54 anos vem testemunhando os registros de quem teve e tem também, uma câmera na mão.
O Brasil vivia um de seus momentos mais obscuros sob a chancela do regime ditatorial, estabelecido com o golpe de 1964, contudo, foi na contramão do autoritarismo que a sétima arte fincava seu marco histórico em solo fluminense. Junto com o Cine Arte UFF, nascia o Instituto de Artes e Comunicação Social (IACS) e o curso de graduação em cinema, o segundo do Brasil, que formou e segue formando gerações de cineastas, e nomes solidificados na história do cinema brasileiro.
Como diria a canção do maluco beleza, Raul Seixas: “sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto, é realidade.” Neste pontapé inicial, junto a Nelson Pereira dos Santos, outras forças foram somadas, como a de Fabiano Canosa, Luiz Alberto Sanz, Roberto Duarte, Cosme Alves Neto e o reitor da época, Manoel Barretto Netto. E ao longo dos anos, outros nomes como João Luiz Vieira, Tunico Amâncio, Paulo Máttar, Lívia Cabrera, foram sendo agregados a fim de manter essa conquista, muitas vezes abaladas pelo descaso com a educação, a cultura e a arte, e tão duramente atacadas no atual governo. Mas, apesar deles, amanhã será outro dia.
Para a atual chefe da divisão de cinema do Centro de Artes da UFF, Lívia Cabrera, o Cine Arte UFF, que é o mais antigo em funcionamento, é uma referência e conecta o tripé: ensino, pesquisa e extensão com a cultura. “Atuamos na formação, na formação de público, somos uma casa que está sempre aberta a divulgação, a valorização do cinema nacional e dos futuros trabalhadores do cinema.” Completa. Ela lembra que o filme Marte Um, que representará o Brasil na lista dos indicados a categoria melhor filme internacional no Oscar, estreou no Cine Arte UFF, e está em cartaz há mais de cinco semanas mantendo uma plateia significativa, apesar da escassez de público que os cinemas em geral vêm sofrendo, que foi acentuada na pandemia, em virtude da concorrência com o streaming,
Além da exibição de em média três a quatro sessões diárias de filmes, com funcionamento de domingo a domingo, O Cine Arte UFF é também palco de importantes festivais como o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra de Realizações, onde são exibidos os filmes dos alunos produzidos no final do curso. Além do recém criado Festival Sol Maior, pontuado por uma maior conexão entre cinema e música, e o Festival Varilux de Cinema Francês que é uma das maiores atrações do cinema.
O Cine Arte UFF vai além da exibição de filmes, há a promoção de cine debates, seminários, cineclubes, mostras temáticas, aulas abertas à comunidade, é um espaço para os produtores de filmes independentes, como forma de oportunizar e oferecer ao público outro tipo de produção, como os filmes de arte, assim como, aqueles com pouco ou nenhum espaço para exibição, e que comumente não são exibidos em salas comerciais. Destacamos a realização de projetos, como o Projeto Cine Escola que leva alunos de escola públicas para seu espaço, inclusive, tal projeto foi retomado pós pandemia, na semana passada com a exibição do já mencionado Marte Um, filme de baixo orçamento, com elenco primordialmente negro, assim com o seu diretor e que traz a periferia para o primeiro plano com temas de grande relevância e representatividade.
O Cine Arte UFF passou por algumas intervenções em virtude do acirramento da então ditadura militar, e uma das retomadas aconteceu em 1982, e teve a frente o professor João Luiz Vieira, que é uma grande referência, e que foi aluno da primeira turma do curso de cinema da UFF. Em entrevista à Revista Contracampo, o professor pontua que o Cine Arte UFF além da questão da educação, da formação de um público interno, tem uma consciência muito grande do papel do cinema. Ele destaca que em 68 o papel do cinema tinha uma outra agenda, talvez muito maior do que a de um passado recente. Quer dizer, muito mais ambiciosa, num certo sentido.
Dentre várias ações, o professor criou junto com os alunos, o Ciclo de Estudo Glauber Rocha, após a morte do cineasta. E para a sua satisfação e dos alunos envolvidos, o evento que foi a primeira retrospectiva de Glauber, a menos de dois meses da morte do cineasta, foi um grande sucesso. Na ocasião, foi exibido pela primeira vez no Brasil, e na UFF, o filme História do Brasil, mais um feito histórico, dentre tantos, do Cine Arte UFF.
O professor recorda que havia um projeto, em 69, chamado bolsa-escola, em que eram feitos cartazes de filmes para o cinema. “Eu lembro que fiz cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, imagina.” Comenta surpreso. Filme considerado um dos marcos do Cinema Novo, e que foi restaurado e exibido em 4k, em primeira mão, no último dia 23 de setembro no Cine Arte UFF.
Dentre os alunos que o professor João Luiz Vieira leva consigo quando retorna ao Cine Arte UFF, foi o hoje servidor e programador, Paulo Máttar, que ingressou no curso de cinema no primeiro semestre de 1980, foi estagiário com uma bolsa e se torna servidor quatro anos depois, em 1984. Paulo destaca que um dos projetos mais antigos é o da recuperação da memória, embora reconheça que entre setembro de 1968 até 1973, se tem pouca coisa, em decorrência da ditadura. E só a partir de 1974, se passa a ter registros da programação em agendas, mas isso nunca foi digitalizado. “Durante muito tempo a programação de rotina era com um único filme a semana toda. Essa rotina era quebrada com mostras e eventos especiais. Muito mais tarde, com a crise de público, fomos diversificando a programação e trabalhando com mais filmes na grade de rotina.” Lembra.
Além de Paulo, o programador Alexander Vancellote, também ex-aluno do curso de Cinema, faz parte da equipe atual, além de outros membros que saíram ou se aposentaram são egressos do curso. Paulo destaca que um ponto muito importante é a atuação dos estagiários do curso. “Fiz grandes amigos e a maioria deles conseguiu se colocar profissionalmente muito por conta da experiência no Cine Arte UFF.” Destaca. Ele admite a dificuldade que vem sentindo durante o seu processo de aposentadoria que vem tramitando, afinal, se desligar de algo que se faz por amor não é tarefa fácil. “A despeito de uma série de problemas, amo muito o que eu faço e sei o quanto o nosso trabalho tem sido fundamental na vida de tantas pessoas ao longo de décadas. Isso é muito gratificante.” Finaliza.
E assim, como um filme da vida real, a trajetória do Cine Arte UFF vai sendo tecida, embora algumas vezes interrompida, mas sempre renascida. Dentre as vezes que o cinema teve suas atividades suspensas, a maior delas se deu no período entre 2009 e 2014, contudo, essa reforma rendeu uma atualização técnica bastante positiva, deixando-o como mencionou Lívia Cabrera, “tecnicamente impecável.” Para ela, o Cine Arte UFF tem sido uma missão, um ato de resistência, algo vocacional. “Tem sido um prazer enorme trabalhar aqui. Tenho aprendido muito.” Comemora. E para fechar, voltamos ao início do texto, recordando a citação de Nelson Pereira dos Santos, que comparando sua prática de cineasta com a do pai alfaiate, diz que corta, costura e cria, para materializar uma ideia, e em tempos tão sombrios, setembro que traz a boa nova e trouxe o Cine Arte UFF que resiste há 54 anos, findo com um trecho da escritora e poeta modernista Cecília Meireles: “Aprendi com a primavera a ser cortada e voltar sempre inteira.”