“Eu faço Cinema porque eu não consigo fugir do cinema, o Cinema já é parte de quem eu sou.” Foi a resposta do diretor Gabriel Martins à Luisa Clasen quando questionado sobre seu fazer cinematográfico.[1]

Aos doze anos, Gabriel, ou “Gabito” – que assina a direção de Marte Um e a codireção de No Coração do Mundo – se recorda de ter assistido a Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2001) na Mostra de Cinema de Tiradentes. Para Gabito, a Mostra foi um elemento fundamental em sua formação, pois foi ali que ele pôde descobrir outros tipos de salas de cinema e entrar em contato com produções independentes. Foi ali que ele percebeu que o cinema não precisava ser algo assim tão distante de um menino que vivia na periferia de Contagem; da mesma forma que ser astrofísico não deveria ser um sonho tão estranho para Deivinho, um dos personagens de Marte Um.

É através do olhar de Deivinho que se dá a primeira imagem do filme: a câmera-ponto-de-vista nos mostra o céu estrelado. Corta. Vemos agora um menino negro olhando para cima. Ele olha para as estrelas e as estrelas olham para ele. Ele sonha sozinho.

Sutilmente, o filme nos situa no espaço-tempo: Minas Gerais, periferia, 2019, Bolsonaro eleito. A família Martins é o nosso protagonista. Sim, a família. Deivinho, Eunice, Tércia e Wellington, os quatro personagens tem peso igual na trama. Em uma montagem paralela cuidadosamente feita por Tiago Ricarte e Gabriel Martins, acompanhamos a delicada construção desses personagens, potencializada pelo excelente trabalho dos atores.

Como toda família, os Martins têm seus problemas internos, suas frustrações e seus momentos de afeto. Enquanto os filhos vivem o desafio de se desvencilhar dos velhos padrões dos pais, algumas coisas continuam sendo passadas de geração em geração – como lunetas e cadeiras, sonhos e esperanças.

Os arquétipos e questões familiares, assim como o espaço domiciliar são elementos pertencentes ao gênero melodramático.  Historicamente, o melodrama tem como pano de fundo um ambiente predominantemente burguês e branco. Realocar esse universo para uma família negra de classe média baixa é uma forma de ressignificar não só o gênero, mas também a representação dos corpos negros no cinema brasileiro.

Marte Um escolhe o afeto em meio a um Brasil violento e conturbado. É um ato político. O longa consegue se estruturar no duro realismo característico do cinema brasileiro, mas coloca uma camada sublime de suspensão da realidade que enriquece a experiência cinematográfica. É um Brasil que te abraça com todas as suas contradições e belezas entrelaçadas.

O filme em sua completude consegue despertar em nós emoções aparentemente contraditórias, uma beleza que nos afaga; uma indignação que nos entristece. A fotografia de Leonardo Feliciano intercala luzes quentes – vindas do planeta vermelho, ou do calor da periferia – com o azul frio da noite, onde os sonhos se revelam e se compartilham – sou difícil de chorar em filme, mas aquela cena do beliche me pegou. A trilha sonora sensível de Daniel Simitan conduz as cenas de forma comovente – destaco o momento em que Wellington entrega à Eunice a cadeira que ele restaurou – e não por acaso foi premiada como Melhor Trilha Musical no Festival de Gramado. Para os amantes da música brega – assim como eu – Saigon, de Emílio Santiago, toca nossos corações em uma linda sequência entre Eunice e Joana. Por mais que a música apareça em um momento íntimo entre as duas personagens, ela engloba os quatro integrantes da família Martins – e todos nós brasileiros, que “sonhamos para não dormir”.

Marte Um termina da forma como começa: um céu estrelado. Mas se antes Deivinho sonhava sozinho com o futuro, ele agora sonha junto de sua família. “Se emocionar coletivamente virou uma coisa estranha. Marte Um é um filme que é sobre essa ideia de coletividade. Pensando a ideia de família, colocando ela para brigar e se encontrar. Encontrar esse otimismo como solução, que parece algo meio fora de moda, meio proibido de sentir.”[2]

Mais uma vez, a produtora mineira Filmes de Plástico nos presenteia com uma peça que “ressoa Minas Gerais” – pegando emprestado o termo usado por Gabito -, que ressoa o Brasil e seu cinema. O filme foi viabilizado graças ao incentivo financeiro advindo de políticas públicas: um edital de 2015 voltado para longas de baixo orçamento e realizadores negros – outro fruto desse mesmo edital é o belíssimo Um Dia com Jerusa (Viviane Ferreira, 2021). Marte Um recebeu quatro premiações no Festival de Gramado e agora foi escolhido como o representante do Brasil no Oscar.

Paralelamente, no cenário do cinema brasileiro, a Condecine[3] sofre ameaças de extinção pelo Governo Federal e filmes como Marte Um – deveriam ser amplamente acessadas pela população – lutam por seu espaço nas salas de cinema. Em meio às boas e às más notícias, o cinema brasileiro “agoniza, mas não morre” graças àqueles que, como Gabito, não conseguem fugir do cinema e ousam sonhar um futuro diferente.

[1] Retirado da entrevista de Gabriel Martins concedida à Luisa Clasen, disponível em https://www.instagram.com/p/Ch8WjQtJ9uw/

[2] Retirado da entrevista de Gabriel Martins concedida à Luisa Clasen, disponível em https://www.instagram.com/p/Ch8WjQtJ9uw/

[3] Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional 

Crítica escrita por Helena de Araujo Zimbrão – Graduada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense.

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