Por Micaela Ayer

Texto originalmente escrito para a disciplina “A Gênese do American Dream” do professor Pedro Lauria, pelo programa de Cinema e Audiovisual da UFF.

Introdução

Na década de 1920, nos Estados Unidos, um grande boom imobiliário ocorreu incentivando famílias a se mudarem para o subúrbio devido ao próspero cenário econômico da época. O subúrbio se tornou um “status econômico” tal qual “a casa própria” no Brasil. Contudo foi apenas na década de 1950 que esses espaços se consolidaram como a realização do “American Dream”. Por meio de propagandas e produtos audiovisuais, os valores do American Way Of Life foram estabelecidos a partir de um padrão de beleza, gênero e consumo. Este artigo propõe uma breve análise sobre como era a realidade daquelas mulheres que representavam o estereótipo “bela, recatada e do lar” [1] que marcou a época a partir da análise da personagem Betty Draper do seriado norte-americano Mad Men.

 

O subúrbio americano: uma representação dos valores estadunidenses

Após a Segunda Guerra Mundial, o governo estadunidense incentivou seus ex-combatentes (brancos) a irem morar nos subúrbios e construir família. Tal estímulo tinha como objetivo evitar o superpovoamento de cidades e consequente deterioração de sua infraestrutura e equipamentos (JACKSON, 1987; BEUKA, 2004; HALLIWELL, 2007). Entre 1945 e 1960, 85% das novas casas em solo estadunidense foram construídas nos subúrbios (COONTZ, 2000).

Estabelecer-se nos arredores de uma grande cidade era considerado um modo de vida quase perfeito. Afastado da turbulenta agitação dos centros urbanos, as famílias podiam tanto atender seus impulsos por uma vida privada, quanto sentirem que tinham alguma participação comunitária, uma vez que fariam parte de uma vizinhança (SPIGEL, 2001). Assim, como parte de um modelo baseado em casa, carro, família, trabalho e consumo, os subúrbios passaram a serem vistos como um símbolo do “American Dream” e dos valores americanos.

“O subúrbio simboliza a personificação mais completa e não adulterada da cultura contemporânea [estadunidense]; é uma manifestação de características fundamentais da sociedade americana como o consumo, a dependência do automóvel, a capacidade de ascender socialmente, a separação da família em unidades nucleares, a divisão cada vez maior entre trabalho e lazer e uma tendência à exclusividade racial e econômica.” (JACKSON, 1987)

A partir do momento em que os primeiros conjuntos habitacionais de massa começaram a se espalhar pelos Estados Unidos, os subúrbios serviram de cenários para diversas obras norte americanas. Uma produção que retrata a vida nesse ambiente é aclamada série Mad Men (2007 – 2015), exibida originalmente pelo canal AMC.

Ambientada em Nova Iorque entre os anos 1960 e 1970, Mad Men é um seriado de TV norte-americano que conta a história do publicitário Don Draper (Jon Hamm), diretor de criação da agência de publicidade Sterling Cooper, que guarda um importante segredo sobre seu passado. Ao longo das sete temporadas, com foco no dia a dia na agência e nas vidas pessoais dos personagens que fazem parte do círculo social de Don, a trama se desenvolve sob a luz das mudanças sociais ocorridas nos Estados Unidos daquela época.

Primeira e única série de basic cable[2] a conquistar o Emmy de Melhor Série de Drama, vencendo-o pelas primeiras quatro temporadas, a obra foi largamente elogiada pela crítica especializada por sua precisão histórica (WIKIPEDIA, s.d). E não é atoa. “Mad Men” é um retrato autêntico da vida dos americanos no início dos anos 1960.

“Are you two sold separately?” [3]: O Self Made Man e sua Esposa Troféu

O protagonista de Mad Men, Donald Draper, é a representação do “Self Made Man”. O termo cunhado por Henry Clay se refere ao homem que conseguiu sucesso por si mesmo, por meio de seus próprios esforços e sem a ajuda de ninguém (WIKIPEDIA, s.d). Na série, Don, já em seus 40 anos, é um homem branco bem sucedido, mas que não nasceu em berço de ouro. Filho de uma prostituta que morreu ao dar à luz a ele, Richard “Dick” Whitman, nome verdadeiro de Don, passou a infância numa humilde fazenda e na adolescência foi morar num bordel. Ao completar a maioridade, Don serviu durante a Guerra da Coréia e, ao voltar para os Estados Unidos, assumiu a identidade de Donald Draper. A partir daí, ele trabalhou em concessionárias e lojas de roupas até conquistar seu emprego na agência de publicidade Sterling Cooper. Don é a personificação do ideal americano: crescido em raízes humildes, é um ex-combatente que, após servir o seu país, obteve sucesso por meio do trabalho duro (GARCÍA, 2012).

E para todo cidadão de bem, há sempre uma esposa troféu. Em Mad Men, Betty Draper (January Jones) assume esse papel. Elizabeth “Betty” Hofstadt é a esposa de Don e a típica dona de casa dos anos 1960. Branca, magra e loira de olhos azuis, a senhora Draper vive uma vida tranquila no subúrbio estadunidense, onde cria os dois filhos pequenos, Sally (Kiernan Shipka) e Bobby (Jared Gilmore). Por fora, Betty é tudo que uma mulher daquela época deveria ser: uma linda jovem que foi criada para acreditar que a beleza era a passagem para o casamento e o matrimônio era o destino final (THE TAKE, 2020). Mas, ao olhar mais de perto, podemos observar que Betty é extremamente infeliz. Ao ser criada para ser uma imagem decorativa, ela acaba se tornando uma mulher dependente e sem aspirações próprias. Apesar de levar uma vida confortável como manda o sonho americano, Betty se sente frustrada com as limitações impostas pelos papéis tradicionais de gênero e as privações da vida pós-casamento (LUIZA, 2018). Para compreender melhor a realidade dela, e de outras tantas mulheres daquela época, vamos analisar o nono episódio da primeira temporada de Mad Men.

“Birdie” e sua gaiola de cerca branca

O plano de abertura do episódio é a família Draper no jardim de casa. Enquanto os filhos Sally e Bobby brincam com o labrador da família no gramado, Betty poda as plantas. Uma cena que faz jus as revistas da época. Na casa ao lado, o vizinho abre uma gaiola e liberta seus pombos, e Betty e as crianças assistem os pássaros voarem para longe.

Horas depois, Don está fumando no intervalo de uma peça de teatro quando é abordado pelo publicitário Jim Hobart (H. Richard Greene) que tenta sondá-lo para que Draper vá trabalhar em sua empresa. A conversa dos cavalheiros é interrompida quando a esposa de Hobart e Betty aparecem. Don e a companheira de Jim saem para buscar bebidas, deixando Betty a sós com o publicitário.

“Além de ficar com o belo príncipe, você é atriz ou algo do tipo?” pergunta Jim Hobart. Betty nega e com orgulho diz que é dona de casa. Mas, ao perceber que isso não vai além de “ficar com o belo príncipe”, ela comenta que já foi modelo “há muito tempo atrás”. O rapaz não fica surpreso e diz que ela é muito parecida com Grace Kelly. Em seguida, ele conta que a Coca Cola está preparando uma grande campanha internacional e um rosto europeu como o de Betty seria o ideal. Apesar de explicar que está aposentada, Betty guarda o cartão de Jim em sua bolsa.

No carro, Betty comenta que o publicitário deu seu cartão para ela. Don questiona se ele pediu que ela entregasse para ele, mas Betty nega e conta que eles conversaram sobre ela ter sido modelo. Enquanto Don acredita que Jim só está usando a situação para convencê-lo a mudar de agência ou para flertar com Betty, a ex-modelo acha que ele viu potencial nela. A esposa de Draper pergunta ao marido se ele pretende ir para a empresa de Hobart, mas ele não responde. 

No dia seguinte, na cozinha de sua casa, Betty conta sobre a proposta que recebeu para Francine (Anne Dudek), sua vizinha e única amiga. Apesar de não saber que Betty já foi modelo, a moça não fica surpresa e, assim como Jim, a compara com Grace Kelly. Durante a conversa, Betty relembra com nostalgia sua antiga carreira.

Betty Draper: “Eu era uma modelo [em Manhattan] quando conheci o Don. Era empolgante. Quando comecei, após a faculdade, na Itália, tinha esse estilista italiano, Giovani. […] A relação foi mais do tipo artista-musa.”

Betty e Francine sobem para o quarto e a ex-modelo mostra os vestidos que seu amigo estilista fez para ela. A vizinha não acredita que o rapaz fez todas aquelas belas roupas apenas por algo platônico. Aqui cabe destacar que tanto Don como Francine têm dificuldade de acreditar que os homens se interessem por Betty para além de sua aparência. Durante toda a série, a beleza de Betty é sua característica definidora. É o que atrai os homens e o que ela mais valoriza em si mesma. Por isso, a possibilidade de alguém se aproximar dela por sua personalidade ou para interesses além de sua aparência ou seu marido causa estranheza nos demais.  Enquanto isso, no escritório, Don recebe presentes de Jim Hobart. O publicitário segue tentando convencer Draper a mudar para sua agência.

Na cena seguinte, Betty tem sua sessão com o terapeuta. A dona de casa passou a fazer acompanhamento psicológico após suas mãos dormentes causarem um acidente de carro. Segundo a psicóloga Marisa de Abreu, sintomas no corpo como dormência e formigamento podem ser indícios de um desequilíbrio emocional.

“As sensações de dormência e formigamento podem se referir a questões psicológicas. Essas sensações ligadas a emoções e outras questões psicológicas são chamadas de sintomas psicossomáticos. Esses sintomas são expressões de conflitos emocionais, internos, com os quais a pessoa lida de maneira menos do que eficiente, às vezes até mesmo ignorando as próprias emoções ou, ainda, tentando controlar sua expressão afetiva comprometendo seu auto-equilíbrio.” (ABREU, s.d)

No caso de Betty, ao viver das aparências e se recusar a assumir para si mesma que ela não está feliz, sua dor emocional se manifesta de maneira física por meio das mãos dormentes. Na consulta, Betty conta da proposta e novamente relembra seus tempos como modelo. Dessa vez ela revela mais sobre sua antiga carreira e sobre a criação que recebeu de sua mãe.

Betty Draper: “Eu já fui modelo. Na verdade, conheci Don numa sessão de fotos. […] Ele me convidou para sair. […] Acho que só trabalhei mais duas vezes, talvez três, antes de nos casarmos. Depois engravidei. É sempre um pesadelo criar filhos em Manhattan então nos mudamos para Ossining. De repente eu me senti tão velha. [….] Minha mãe se preocupava muito com aparência e peso. Nunca fui de comer muito, mas eu gosto de cachorro quente. Minha mãe sempre dizia: “você vai engordar”. E então eu me tornei uma modelo. E ela detestou. […] Ela me chamou de prostituta.”

Como manda o sonho americano, Betty se casou e largou a carreira na cidade grande para se dedicar a vida doméstica no subúrbio. Mais do que os cabelos loiros e os olhos azuis, essa talvez seja a maior semelhança de Betty com Grace Kelly. Assim como a Princesa de Mônaco, que após estrelar vários filmes importantes no início da década de 1950 se aposentou em tenra idade para se casar com o Príncipe Rainier III (WIKIPEDIA, s.d), Betty também abandonou a carreira para se casar com o que ela acreditava ser seu príncipe encantadom. Após o terapeuta alegar que Betty tem mágoa de sua mãe, a dona de casa se irrita e nega que seja esse o caso.

Betty Drapper: “Eu sinto falta dela. Eu compreendo isso. É bom e ruim. Ela queria que eu fosse bonita para que eu conseguisse me casar. Não tem nada de errado com isso. Mas… e depois? Você senta, fuma e deixa tudo acontecer até que você morra? Eu não ligo para o porquê ele me deu o cartão.”

Em Mad Men muitos dos personagens tem embates com suas mães e se opõem a seus valores. Mas Betty não é um deles. A mãe de Betty morreu três meses antes da série começar e, apesar de ela reconhecer que a matriarca era uma mulher muito critica, Betty idolatra sua falecida mãe e é apegada à sua maneira antiquada de pensar. Como podemos observar em sua fala, Betty não vê nada de errado em sua mãe criá-la apenas visando sua aparência física e seu status de relacionamento. Seu problema está com a vida depois do casamento e todas as limitações que ela gera.  

Quando Betty diz “Mas… e depois? Você senta, fuma e deixa tudo acontecer até que você morra?” ela mostra o mesmo sentimento de vazio que a escritora e ativista Betty Friedan aborda em seu livro “A Mística Feminina” [4] (1963) ao falar sobre o que ela chamou de o “problema sem nome”.

“O problema permaneceu mergulhado, intacto durante vários anos, na mente da mulher americana. Era uma insatisfação, uma estranha agitação, um anseio de que ela começou a padecer em meados do século XX, nos Estados Unidos. Cada dona de casa lutava sozinha com ele, enquanto arrumava camas, fazia as compras, escolhia tecido para forrar o sofá, comia com os filhos sanduíches de pasta de amendoim, levava os garotos para as reuniões de escoteiro e deitava-se ao lado do marido, à noite, temendo fazer a si mesma a silenciosa pergunta: ‘É só isto?’” (FRIEDAN, 1971).

Ao questionar se depois do casamento a vida se resume em se sentar e esperar a hora da morte, Betty praticamente previu seu final trágico. Na sétima e última temporada de Mad Men, quando finalmente decide fazer algo para além de sua vida doméstica e retoma aos estudos para um mestrado em psicologia, Betty é diagnosticada com câncer de pulmão já em estado terminal. O criador da série Matthew Weiner, em entrevista para o site Archive of American Television, contou que até mesmo a escolha da doença foi pensada levando em conta a principal característica da personagem: a sua bela aparência.

“Eu sempre soube que Betty iria morrer de câncer de pulmão. A mãe dela morreu antes do começo da série, ainda muito jovem, e Betty tem essa sensação de tragédia em relação a ela. Mas, o que aconteceu [para eu tomar essa decisão] é que eu tenho um parente que teve câncer de pulmão e ele brincava ‘eu tenho o único câncer que te faz engordar’” (WEINER, 2016)

Ao dizer que não se importa com o porquê Jim lhe deu o cartão, Betty mostra que está ciente que talvez o publicitário esteja fazendo isso apenas para alcançar Don, mas, como ela mesma disse, não está nem aí. Esta é a sua oportunidade de tirar umas férias da entediante e infeliz vida de dona de casa no subúrbio para voltar a época agitada e empolgante em que era uma modelo na cidade grande.

De noite, Betty está na cozinha lendo uma revista quando Don chega do trabalho. Enquanto ele se senta, Betty levanta e vai preparar um sanduíche para seu amado. Após explicar que não tem comida pronta porque achava que ele iria ficar na cidade, Betty confessa que sente falta de ser modelo. Don comenta que achava que ela detestava. “Talvez o passar do tempo tenha feito eu ver as coisas de outro modo” alega Betty. “Talvez tenha sido Jim Hobart” rebate Don. Novamente, Betty mostra que não se importa com a real motivação do trabalho ao dizer “E daí? Ainda assim é uma oportunidade”. Don demora a aceitar que ela está falando sério e relembra que as sessões de fotos duram de 3 a 4 horas. Betty mostra que já pensou numa forma para equilibrar o trabalho de modelo com o trabalho doméstico: “Eu serei paga. Ethel pode cuidar das crianças. […] Não faltará presunto. Eu prometo.” Ao final, Don concorda, ou melhor, não discorda, das vontades de Betty e diz “Eu não posso impedi-la de fazer o que você quer.”

No dia seguinte, Betty aparece na agência de Jim Hobart para fazer o teste para a campanha. Vestindo um vestido de festa, enquanto as outras modelos estão com roupas mais casuais, Betty se desculpa e relembra que está fora do mercado de trabalho há alguns anos.

Mais tarde, em casa, Betty recebe a notícia que é a nova garota propaganda da Coca Cola. Com um enorme sorriso no rosto, ela conta a novidade para Don. O marido não diz nada, mas sorri. Betty rapidamente relembra que são apenas dois dias de trabalho. Don a tranquiliza dizendo “Não se preocupe. Não vou estragar nada. Estou muito feliz por você.”

No dia seguinte, Betty tem seu primeiro dia de trabalho. Com roupas e cabelo muito parecidos com o que ela usa em seu dia a dia, e ao lado de um homem branco, um casal de crianças e um cachorro, Betty posa para as fotos segurando duas garrafas de Coca Cola. Pode-se dizer que ela trocou uma fantasia pela outra.

Na primeira foto (acima) Betty posa para a campanha da Coca Cola no episódio “The Shoot” (T01XE09). Na segunda imagem (embaixo) Betty e Don aproveitam um piquenique em família no episódio “The Gold Violin” (T02XE07).

Enquanto isso, no subúrbio, Sally e Bobby estão observando os pássaros do vizinho voarem quando o labrador da família Draper morde uma das pombas. O vizinho ameaça que, se o cão voltar a pisar em seu jardim, ele irá atirar nele. Sally volta chorando para dentro de casa. De noite, Don chega do trabalho e Betty está sentada na mesa da cozinha jantando com as crianças. Ela conta como os filhos passaram o dia, mostrando que, mesmo longe, ainda exerce seu papel como mãe. Já de madrugada, Don e Betty estão dormindo quando Sally entra no quarto do casal chorando. Ela conta sobre a mordida e a ameaça do vizinho. Ao saber do que realmente aconteceu, Betty tenta aliviar a situação dizendo que ninguém vai matar o cachorro e leva Sally de volta para o seu quarto.

Após colocar a filha para dormir, Betty volta para o quarto do casal. Don diz que irá resolver a situação, mas Betty pede que ele deixe esse assunto com ela. Don sugere que coloquem a babá das crianças para conversar com o vizinho. Entendendo a alfineta, Betty explica que as crianças também brincam no jardim quando ela está em casa. Isso poderia ter acontecido independente de quem estava olhando os pequenos. Para encerrar o assunto, Betty se deita no peito de Don e relembra que ela só tem mais um dia de trabalho. 

No dia seguinte, Don recebe um novo presente de Jim Hobart. Dessa vez, são as fotos de Betty para a companha da Coca Cola. Mas se Hobart achava que elas fariam Don aceitar a proposta, ele não poderia estar mais engano. Após ver as imagens, Don renegocia seu salário e avisa seu chefe que permanecera na Sterling Cooper. Em seguida, ele liga para Jim e recusa a oferta. “Estou surpreso. Achei que com sua esposa aqui você estaria interessado.” responde o publicitário. Don nega e comenta que a ideia foi dela. “É uma pena perder vocês dois. Você é um homem de sorte por ter essa mulher.” finaliza Hobart.

Na sessão de fotos, Betty termina mais um dia de trabalho quando um dos responsáveis pela campanha avisa que tem más notícias. Ele explica que a Coca Cola mudou a campanha para Londres, então eles vão precisar de “mais Audrey Hepburn e menos Grace Kelly”. Betty alega que entende, mas engole o choro na frente do rapaz. O cavalheiro nota e, numa tentativa de tranquilizá-la, ele explica que a decisão não tem nada a ver com ela. E talvez esse seja o grande problema de toda essa situação.

Apesar de estar ciente, mesmo que quase inconscientemente, que Jim só a contratou para chegar até seu marido, Betty viu na proposta uma oportunidade de fazer algo por si mesma. Mas, mesmo quando ela consegue fugir da realidade da vida suburbana, Betty ainda é dependente de Don. Nesse caso, ela só faz parte da campanha se ele entrar para a agência. Betty não consegue assumir controle de sua vida e tomar uma atitude para mudar sua infeliz realidade justamente porque as decisões nunca são tomadas pensando nela. As pessoas não enxergam a mulher Betty Draper e sim a dona de casa, esposa de Don e mãe de Bobby e Sally. E isso inclui a própria Betty.

Assim como outros personagens de Mad Men, Betty também não consegue se ver para além da máxima dona de casa-esposa. A referência dela sobre felicidade está baseada nos ideais ensinados por sua mãe, onde beleza e uma aliança no dedo são a garantia do sucesso. Logo, todas as tentativas de Betty de preencher o vazio giram em torno de sua aparência ou sua vida amorosa. Ao longo das sete temporadas de Mad Men, enquanto outras personagens femininas abriram sua própria empresa ou foram promovidas em seus empregos, Betty apenas trocou de marido.

De noite, Don chega do trabalho enquanto Betty serve a comida. Dessa vez, eles jantam na sala de jantar e tomam vinho. Ela novamente comenta sobre como os filhos passaram o dia e, ao perceber seu humor, Don pergunta como foi o dia dela. Sem saber que seu marido é o grande responsável por sua demissão, Betty mente que foi tudo bem e inventa que os responsáveis pela campanha falaram de novas possibilidades para ela. Ela diz que, apesar das propostas, não quer mais trabalhar.

Betty Drapper: “Não quero que você volte para casa para comer qualquer coisa ou restos da geladeira. E, francamente, não gosto de estar em Manhattan sozinha. É desagradável. [….] E o que eu faria? Correr pela cidade com o meu book, como se eu fosse uma adolescente, bancando a boba?”

Betty mente para Don não apenas por vergonha de admitir seu fracasso, mas também porque ela tem uma tendência a rescrever as narrativas de sua vida para se convencer que ela está feliz. Betty moldou seus valores em cima da ideia de que a beleza e o casamento seriam a fórmula para a felicidade. Quando esses ideais deixam de ser uma realidade para ela, Betty não pode simplesmente questionar todo o seu sistema de crenças. Isso porque ela não tem as ferramentas emocionais para enfrentar ou entender sua infelicidade (THE TAKE, 2018). No sétimo episódio da primeira temporada, intitulado “Red in the Face”, ao relatar para Don como Betty está se sentindo, o terapeuta dela diz: “Estamos lidando com as emoções de uma criança”. Na falta de recursos emocionais para entender o que está sentindo, Betty Draper lida com seus problemas da mesma forma que cuida de sua aparência: os maquiando.

Em resposta ao questionamento de Betty do que faria se voltasse a ser modelo, Don diz: “Se for o que você quer. É meu trabalho te dar o que você quer.” Betty o tranquiliza alegando que ele cumpre o seu dever. A chamando de “Birdie” (passarinha), Don diz que Betty já tem um trabalho como mãe e que ela é a melhor no que faz. “Eu teria feito qualquer coisa para ter tido uma mãe como você: bonita e gentil, cheia de amor, como um anjo.” finaliza Draper. O casal sorri um para o outro e janta em silêncio.

Quando Don fala que é seu trabalho dar tudo que Betty quer, mesmo sabendo que acabou de tirar o que ela mais queria, ele é tão cínico quanto quando diz “Eu não posso impedi-la de fazer o que você quer” no meio do episódio. Por mais de não proibir diretamente que ela volte a trabalhar, Don usa de recursos indiretos para impossibilitar que isso aconteça. Ele faz chantagem emocional ao insinuar que o incidente com os pássaros não aconteceria se Betty estivesse em casa e manipula a situação ao negar a proposta de Jin, sabendo que ele iria despedir sua esposa em seguida.

Na manhã seguinte, Betty, de camisola, está na cozinha preparando o café da manhã dos filhos quando Don sai para trabalhar. Ambos voltaram a exercer seus papeis: ele como provedor e ela como dona do lar.

Após servir o café da manhã, Betty faz os serviços domésticos enquanto cuida das crianças. Quando o relógio bate uma da tarde, ela está sentada fumando e lendo uma revista. Pode-se dizer que já está entediada. Ao ouvir o bater das asas das pombas do vizinho, Betty vai ao jardim segurando um rifle e atira nos pássaros. O episódio, intitulado “Shoot”, termina com a imagem da dócil dona de casa, com suas unhas rosa choque e um cigarro em sua boca, atirando em direção aos passarinhos que voam livremente enquanto a música “My Special Angel” de Bobby Helms toca no fundo.

O título do episódio é um feliz trocadilho com tudo que ele representa. Apesar de “shoot” significar fotografia/filmagem e poder ser usado como uma abreviação de “photoshoot” (sessão de fotos), ao ser pronunciado ele também pode soar como atirar/disparar. Se ao atirar nos pássaros Betty acaba com a liberdade deles, ao tirar a chance dela de participar da sessão de fotos, Don corta as asas de sua “Birdie”.

Além disso, a escolha da trilha sonora também não foi por acaso. Na noite anterior, Don compara a esposa a um anjo. E, enquanto Betty atira nos “birdies”, Bobby Helms canta “Você é meu anjo especial / Pela eternidade / Eu vou ter o meu anjo especial / Aqui para cuidar de mim” (LETRAS.MUS).

Se os pássaros podem voar para longe quando eventualmente um vizinho decide libertá-los da gaiola, a passarinha criada para ser dona de casa está presa nas cercas do subúrbio para cuidar do marido e dos filhos. Pela eternidade.

Conclusão

Elizabeth “Betty” Hofstadt desmistifica o caráter feliz da dona de casa e rompe as promessas idealistas daquela época. Ela não se realiza no trabalho doméstico, tampouco na maternidade.

Mad Men não deu um final feliz para Betty. Como brinca a youtuber Guilia, dona do canal Seriesable[1], ela não teve seu momento de libertação onde teria encontrado uma cópia do “A Mística Feminina” e finalmente iniciado uma jornada de auto-realização. Com o passar das temporadas, ela não progrediu. Considerando que a série se passa num período em que as normais sociais começaram a mudar e os papéis de gênero foram desafiados, é possível dizer que, de muitas maneiras, ela até regrediu. E é aí que o realismo de Mad Men funciona no seu melhor. Betty é um produto da década. Ao seu redor, as coisas estavam mudando. No entanto, ela não mudou. Afinal, tudo o que ela sabe foi moldado por estas (antigas) normas sociais, independente do quão opressoras elas sejam.

Como aponta o canal The Take[6], “os arcos narrativos das outras personagens femininas de Mad Men podem ser mais emocionantes, porém as decepções de Betty talvez sejam a versão mais realista e representativa da vida de muitas mulheres que viveram na época em que a série se passa. Provavelmente foi muito mais comum para as mulheres se sentirem como Betty: vítimas das circunstâncias sociais que não viam uma saída para acabar com a sua infelicidade.”

Em seu artigo “Why ‘Mad Men’ is TV’s most feminist show”, a historiadora Stephanie Coontz aponta que “o retrato autêntico de Mad Men da vida das mulheres no início dos anos 60 torna difícil para algumas mulheres assistirem a série.”

“Ao longo das três primeiras temporadas, entrevistei quase 200 mulheres que viveram na mesma época em que se passa a série. […] No entanto, para minha surpresa, a maioria dessas mulheres se recusou a assistir “Mad Men”. Não porque achavam a representação das relações de gênero irrealistas – na verdade, muitas relataram tratamentos na vida real que foram ainda mais dramáticos e aterrorizantes do que o mostrado no programa. Foi precisamente porque “Mad Men” retratou o sexismo daquela época de forma tão inflexível, que elas me disseram que não suportavam assistir.” (COONTZ, 2012)

Ao longo do texto, Coontz celebra que os roteiristas da série estejam “resistindo à tentação de transformar suas personagens femininas em heroínas contemporâneas.” Ela explica que “elas não são, e não podem ser.” E em seguida faz um parâmetro histórico sobre a questão da mulher em 1965 (período em que se passa a quarta temporada de Mad Men), lembrando que precisaria de mais um ano para que a Organização Nacional de Mulheres, grupo que deu a tantas mulheres americanas os meios legais para combater a discriminação, fosse fundada.

Betty Draper não encontrou uma cópia de “A Mística Feminina” e se tornou um ícone feminista como muitos dos espectadores desejavam, contudo, a personagem é possivelmente um dos retratos mais realistas da mulher produzida pelo American Dream: uma jovem e infeliz dona de casa que teve suas expectativas moldadas pelo contexto em que estava inserida e que se ressente pela vida que não está vivendo. Assim como muitas mulheres daquela época, Betty não tem recursos emocionais para se libertar de sua gaiola de cerca branca porque simplesmente nunca lhe foi permitido imaginar uma vida para além do ambiente doméstico.

[1] Título da reportagem de 2016 da Revista Veja sobre Marcela Temer. Na matéria, Marcela é descrita como “uma vice-primeira-dama do lar. Seus dias consistem em levar e trazer Michelzinho da escola, cuidar da casa, em São Paulo, e um pouco dela mesma.” (LINHARES, 2016)  

[2] Canais de televisão por assinatura que tem como fonte de arrecadação a taxa paga pelos assinantes e a receita das propagandas publicitarias que são transmitidas nos intervalos comerciais. 

[3] [“Vocês dois são vendidos separados?”] Referência ao episódio “The Benefactor” (T02XE03) de Mad Men quando Don apresenta Betty, sua esposa, para um cliente.

[4] “A Mística Feminina” é considerado um dos mais importantes livros do século XX e tem como ideia central a observação de que a mulher foi mistificada após a Crise de 1929 e a mobilização para a Segunda Guerra Mundial, sendo considerada fundamentalmente como mãe e esposa zelosa. Assim, desde a infância, a educação das mulheres não as estimulavam a serem independente, mas a desenvolverem habilidades apenas para se casar e viver em função dos filhos e do marido. Com o passar dos anos, a mulher se sentia frustrada e desenvolvia diversos distúrbios psicológicos que oscilavam da depressão ao consumismo. A obra é resultado de anos de pesquisa de Betty Friedan que entrevistou diversas donas de casa dos anos 1940 e 1950, assim como médicos, empresários e publicitários. (WIKIPEDIA, s.d)

[5] Canal no YouTube que faz análises sobre filmes, séries e cultura pop por meio de vídeos ensaios.

[6] Maior canal do YouTube de análise de entretenimento feminino.

Referências bibliográficas

A Mística Feminina. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_M%C3%ADstica_Feminina. Acesso em 9 de julho de 2022.

ABREU, Marisa. Sente dormência e formigamento no corpo? Entenda os sintomas psicossomáticos!. Psicólogos em São Paulo. Disponível em: https://www.marisapsicologa.com.br/ajuda-emocional/blog/38-blog/637-sente-dormencia-e-formigamento-no-corpo-entenda-os-sintomas-psicossomaticos.html. Acesso em 9 de julho de 2022. 

BEUKA, Robert. Suburbianation. Palgrave Macmillan, NY, 2004.

COONTZ, Stephanie. The Way We Never Were: American Families and the Nostalgia Trap. Editora Basic Books, 2000.

COONTZ, Stephanie. Why ‘Mad Men’ is TV’s most feminist show. The Washington Post, junho de 2010. Disponível em: http://www.stephaniecoontz.com/node/415. Acesso em 9 de julho de 2022.

COONTZ, Stephanie.. The Way We Never Were: American Families and the Nostalgia Trap. New York: Basic Books.  2ed. 2000.

DEGUZMAN, Kyle. Betty Draper: How They Wrote Mad Men’s Most Tragic Character. StudioBinder, dezembro de 2020. Disponível em: https://www.studiobinder.com/blog/betty-draper-mad-men/. Acesso em 9 de julho de 2022.

FRIEDAN, Betty. A Mística Feminina: o livro que inspirou a revolta das mulheres americanas. Editora Vozes Limitada, 1971.

GARCÍA, Armando. THE DRAPERS: MAD MEN AND THE PERSUIT OF THE WHITE AMERICAN DREAM. Skaz. Disponível em: http://skaz-media.blogspot.com/2013/10/the-drapers-mad-men-and-pursuit-of.html. Acesso em 9 de julho de 2022.  

Grace Kelly. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Grace_Kelly. Acesso em 9 de julho de 2022.

GUILIA. Mad Men: In Defence of Betty Draper. Seriesable. Youtube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pilvtDc-dds. Acesso em 9 de julho de 2022.

HALLIWELL, Martin. American Culture in the 1950s.. University of Leicester. Edinburgh University Press, UK,. 2007.

JACKSON, Kenneth. Crabgrass Frontier: The Suburbanization of the United States. Oxford University Press, New York. 1987.

LINHARES, Juliana. Marcela Temer: bela, recatada e “do lar”. Veja. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/. Acesso em 9 de julho de 2022.

LUIZA, Ana. De Betty Draper a Emily Gilmore: entendendo as péssimas mães da ficção. Valkirias, maio de 2018. Disponível em: https://valkirias.com.br/de-betty-draper-a-emily-gilmore-entendendo-as-pessimas-maes-da-ficcao/. Acesso em 9 de julho de 2022. 

MAD MEN. Criação de Matthew Weiner. Estados Unidos: AMC, 2007. Serie exibida atualmente pela HBO Max.

Mad Men. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mad_Men. Acesso em 9 de julho de 2022.

Mad Men: The Tragedy of Betty Draper. The Take. Youtube, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gHrnNwrz5TU&t=319s. Acesso em 9 de julho de 2022. 

Matthew Weiner discusses Betty’s Season 5 storyline on “Mad Men”. FoundationINTERVIEWS. Youtube, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tb1TFjR-h_Y. Acesso em 9 de julho de 2022.

MY SPECIAL ANGEL (Tradução) – Bobby Helms. Letras.mus. Disponível em: https://www.letras.mus.br/bobby-helms/17898/traducao.html. Acesso em 9 de julho de 2022.

Self-made man. Wikipedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Self-made_man. Acesso em 9 de julho de 2022.

SHOOT. Mad Men [Seriado]. Criação de Matthew Weiner. Direção: Paul Feig. Estados Unidos: AMC, 2007. Temporada 1, episodio 9. Serie exibida atualmente pela HBO Max. Acesso em 9 de julho de 2022.

THE BENEFACTOR. Mad Men [Seriado]. Criação de Matthew Weiner. Direção: Lesli Linka Glatter. Estados Unidos: AMC, 2008. Temporada 2, episodio 3. Serie exibida atualmente pela HBO Max. Acesso em 9 de julho de 2022.

Skip to content