Por Ilana Paula Ivanicksa da Silva

Texto escrito originalmente para a disciplina “A Gênese do American Dream” de Pedro Lauria, na UFF.

Introdução: Euphoria (2019)

Euphoria é uma série estadunidense produzida pela HBO, já com duas temporadas estreadas, que desenvolve o enredo de um grupo de personagens adolescentes, com narração e foco em uma jovem dependente química chamada Rue Bennet (Zendaya Coleman). Toda a trama se desloca entre as casas e as ruas de um bairro suburbano dos Estados Unidos e sua escola local. Ao invés de retratar o subúrbio “belo, recatado e do lar”, como estabelecido pelo sonho americano, a série criada por Sam Levinson desde o início mostra a vida conturbada dos jovens envoltos por drogas, perigos e situações traumáticas, mostrando o lado ruim do subúrbio desde o começo e o que de errado poderia acontecer para além das cercas de uma casa de classe média.


Euphoria se encaixa no que Bernice Murphy descreve como Suburbanismo Gótico: um subgênero da tradição gótica americana mais ampla que muitas vezes dramatiza as ansiedades que surgem da suburbanização em massa dos Estados Unidos e geralmente apresenta cenários, preocupações e protagonistas suburbanos.” (Murphy, 2009, tradução da autora). Dessa forma, o subgênero explora medos e anseios da classe média estadunidense, de forma que dentro das casas aparentemente perfeitas da vizinhança, segredos obscuros podem se esconder. O perigo está na própria configuração social, isso se manifestando explicitamente ou não

No entanto, ao mesmo tempo, existia uma narrativa paralela mais sombria, e não menos visível, que tinha muito em comum com aquelas que desde o início obscureciam o sonho americano de progresso e otimismo: uma que percebia os subúrbios como a personificação física de tudo isso que estava errado com a sociedade americana (…)

(MURPHY, 2009, tradução da autora).

Euphoria é um dos exemplos contemporâneos dessas preocupações enraizadas da sociedade estadunidense, que nunca cessaram de existir – muito pelo contrário, apenas se intensificam. Na série, a vida suburbana não é o foco abordado, mas os assuntos principais do enredo entram de embate ao modelo padrão pré estabelecido do subúrbio. Aqui, os holofotes estão nas questões de sexualidade, principalmente queer, e relações interpessoais conturbadas, além do abuso de substâncias entorpecentes. Porém, a série coloca a classe média americana em questão uma vez que grande parte dos desenvolvimentos apresentados são originados por seus núcleos familiares desestabilizados, embaçando a imagem da família “margarina” estabelecida no senso comum.

O suburbanismo gótico contemporâneo na série

Euphoria aborda problemas bastante discutidos na atualidade e, desde o início, destrói o mito da classe média perfeita tantas vezes divulgada pela máquina midiática dos Estados Unidos. Em Euphoria ainda há jardins bem cuidados e jovens se locomovendo livremente com bicicletas. Entretanto, com a narração pessimista de Rue, em momento algum o subúrbio é colocado como paraíso. E ao mesmo tempo que explicita tudo que o pai suburbano tem medo que seus filhos estejam fazendo nas horas vagas, expande a crítica para o próprio núcleo familiar que na maioria das vezes está ruído – sendo, inclusive, o principal causador dos problemas dos adolescentes.

A principal metáfora do gótico suburbano é, claro, a revelação, de novo e de novo, de que não importa quão pitoresco e pacífico um bairro, casa ou família possa parecer na superfície, segredos sombrios e geralmente terríveis estão por baixo. seja de natureza psicológica, sobrenatural ou familiar. (MURPHY, 2009, tradução da autora)

Geograficamente, em Euphoria o subúrbio apresenta áreas mais incongruentes com a paisagem normalmente residencial e homogênea: o comércio (lojas de conveniências, postos, pequenos comércios) já começa a invadir os arredores do bairro e jovens se drogam em becos e garagens. O cenário de casinhas iguais e limpas já não é predominante. Algo que pode até ser visto como metáfora para as drogas terem chegado tão a fundo nesse local – afinal, drogas e crime seriam coisas da cidade que começa a invadir a paz suburbana. Poderia-se fazer até uma analogia com a visão distópica do subúrbio apresentada em De Volta para o Futuro (Robert Zemeckis, 1989), quando McFly visita sua família no futuro. Estaríamos entrando no futuro em que o sonho americano começa a decair?

 Assuntos que envolvem o patriarcado, como homens problemáticos protegidos pela sociedade e mães “incompetentes”, também são mostrados na série. A masculinidade tóxica, por exemplo, é amplamente abordada. Primeiro com Nate (Jacob Elordi), sendo um personagem problemático desde sua introdução, até seu pai, Cal (Eric Dane), que ganha o holofote na segunda temporada.

Além do modelo de masculinidade hegemônica, Nate pode ser diretamente associado ao conceito de masculinidade tóxica, que se refere a “um conjunto de normas, crenças e comportamentos relacionados à masculinidade, que são prejudiciais para mulheres, homens, crianças e sociedade em geral ” (Sculos, 2017, p. 1). (…) Entretanto, quando eventos ameaçam a posição de poder de Nate, ele adota um comportamento violento que ilustra a dependência do personagem de uma concepção de masculinidade e poder. (…) Os malefícios da heterossexualidade compulsiva ou compulsória também são ilustrados por Cal, pai de Nate (…) (PALANQUE, 2022, tradução da autora)

Vale ressaltar como a sexualidade de Cal e Nate sempre é colocada em pauta. Cal é mostrado transando com mulheres trans e Nate tem diversas fotos íntimas masculinas na sua galeria do celular. Se ambos começam ainda apresentados como héteros pelo público, isso muda na segunda temporada quando Cal é revelado queer – ainda sem rótulos, mas explicitamente gostando de se relacionar com homens. Entra aqui em questão como ambos sofreram com a heterossexualidade compulsória imposta pelo padrão heteronormativo suburbano.


Esse é um dos temas no qual a segunda temporada toma uma curva diferente da primeira: enquanto a 1a temporada se encaixa mais em padrões narrativos, sendo cada episódio dedicado a desmistificar uma das famílias ou um dos adolescentes que vivem naquela vizinhança, a segunda temporada funciona como uma montanha russa. Dentro de suas sinuosas curvas, sem dúvidas o episódio que representaria o início de uma subida narrativa (ou uma queda, de acordo com a vida dos personagens) é o quinto. É nele, afinal, que constatamos que o sonho suburbano falhou definitivamente com Rue e sua família.

3. 2×05: o Subúrbio em ruínas

Segundo a própria Zendaya (atriz que interpreta a protagonista da série), a segunda temporada é onde Rue chega “ao fundo do poço”. Simbolicamente, e até embasado pela opinião do público, o quinto episódio representaria esse ponto. Tal episódio se inicia quando o problema com drogas da adolescente é redescoberto pela sua família, e o seu envolvimento com uma traficante é comprometido na trama.

A mãe de Rue pega o seu carro para levá-la à cidade ou uma parte mais distante do próprio bairro, onde estaria o centro de reabilitação. Dali, Rue surta, sai do carro e foge, a pé, indo para onde poderia correr. Corre entre as ruas do subúrbio tomadas pela modernidade, ruas que são conhecidas por ela e melhor exploradas a pé do que de carro, visto que não pôde ser alcançada pela mãe e pela irmã. Assim, começa a pular de casa em casa para tentar adiar seu destino e agindo como um furacão que destrói ou piora os lugares por onde passa. Ali, também, começa a primeira crise de abstinência de Rue.


Sua principal crise ocorre na casa de suas amigas Lexi (Maude Apatow) e Cassie (Sydney Sweeney). Também é ali que se introduz Suzie (Alanna Ubach), a mãe solteira alcoólatra de suas amigas, estereótipo negativo de uma mãe “incompetente”. É ela que identifica a abstinência da adolescente e aciona a mãe de Rue. E aqui, há uma menção ao pai ausente das irmãs:

Suzie: Ei, você lembra quando seu pai me mandou para o AA, aquela vez?
Eu chutava e gritava, um bando de babacas dando conselhos, tendo pedido ou não.

Rue ao ser questionada sobre sua sobriedade, dedura a amiga Cassie – contando que ela transava com o ex namorado de Maddy, causando um caos entre as amigas. Após roubar a casa, Rue foge novamente e corre até Fezco (Angus Cloud), em busca por mais drogas para parar com a abstinência. A própria ilustração de que Rue poderia ir, correndo, para encontrar seu traficante, ilustra o quão perto o perigo está, com gente “desse tipo” morando perto da vizinhança. Rue é contrariada por Fezco que alega não possuir as drogas. É então que Rue desce mais em seu mergulho na crise: ela tenta roubar os comprimidos da avó doente de Fez. Até para o traficante do bairro, o que ela está fazendo não é certo, o que desencadeia numa briga. Quando Rue finalmente é expulsa, a jovem segue para outra casa suburbana, agora de um desconhecido, apenas para roubá-la. Nesse meio tempo, a abstinência de Rue piora ainda mais. Em certo momento, ela chega a vomitar na frente de policiais, iniciando mais uma perseguição. Dessa vez, pelas autoridades. Por conhecer as familiares ruas suburbanas, Rue se mostra mais efetiva que os policiais, fugindo deles, mesmo estando a pé. O furacão se intensifica: quase como num videogame, a personagem de Zendaya pula muros de casas suburbanas invadindo a redoma de seus habitantes. Causa acidentes na rua, invade mais casas e incorpora o caos na terra.

Rue é o fantástico perturbador que tem que ser erradicado.

Sua maratona só acaba quando a jovem chega na casa de Laurie (Martha Kelly) traficante para quem deve dinheiro,. Ali, Rue é drogada diversas vezes, chegando ao fundo do poço. Há então um diálogo muito significativo sobre o passado da traficante.

Laurie: Eu sei que pode ser difícil de acreditar, mas eu era uma atleta universitária. Eu era muito durona, mas aí me machuquei. E ao longo dos anos, fiz cirurgias e coloquei parafusos no ombro. Até que me deram Oxicodona. Eu era professora na época e tinha uma família. Você deveria ter nos visto. Éramos, tipo, saídos de um catálogo da Sears. Eu nem sabia que era viciada até ficar sem. E foi aí que eu descobri que faria qualquer coisa para evitar a abstinência, porque é um inferno. Você está passando pelo inferno, não está?

O sonho americano falhou com Laurie. A “família margarina” ruiu graças a opióides dados pelo próprio sistema de saúde estadunidense. Logo depois, vemos um flashback da vida de Rue: o seu pai doente em casa (provavelmente por falta de dinheiro para arcar com os custos de um hospital) e seu funeral. Aqui, talvez em comparação com a série Breaking Bad (2008), a maioria do enredo da série provavelmente seria diferente se os sistema americano de saúde e o Estado funcionasse.

O sonho americano também falhou com Rue.

4. Conclusão

O Suburbanismo Gótico, a exemplo da série de Sam Levison, tem ganhado cada vez mais espaço e relevância na mídia estadunidense. O audiovisual e o social estão diretamente ligados, já que no mundo contemporâneo se questiona mais e mais sobre a veracidade e aplicabilidade do sonho americano, inclusive pela própria população a qual o sonho foi prometido. Euphoria reflete o cenário caótico atual dos Estados Unidos, que sofre com uma inflação desenfreada, divisão e instabilidade política. Esse panorama funciona como um combustível para a insatisfação da população com o modelo atual de sociedade, e, consequentemente, essa insatisfação e esses problemas sociais são representados na arte.

Assim, Euphoria, por sua essência, ilustra o medo suburbano do que os jovens possam estar aprontando pelas costas dos pais, sem isentá-los da responsabilidade dos problemas dos adolescentes. Ainda, vai mais a fundo com críticas sociais inerentes à classe média estadunidense. As ruas dos subúrbios não são seguras: são repletas de drogas, sexo, traições e abusos. O estado é falho, as famílias são disfuncionais e os jovens, o futuro da nação, estão perdidos. É uma série com várias camadas para debates, mas sem dúvida reflete os estereótipos e decepções de crianças que cresceram com o ideal americano sendo posto como padrão e, que, com a aproximação da vida adulta perceberam que o sonho americano, nunca existiu. 

5. Referências:
MURPHY, Bernice. The Suburban Gothic in American Popular Culture. New York, NY: Palgrave Macmillan, 2009,
PALANQUE, Aurore. Les discours télévisuels sur l’identité sexuée: une analyse de la représentation de la diversité sexuelle et de genre dans les séries de chaînes câblées Euphoria et Shameless. Montréal, Université du Québec à Montréal, 2022.

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